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10 países recebem 75% das vacinas, um grande fracasso moral

18 de fevereiro de 2021

Com só 10 países recebendo 75% das vacinas, fracasso moral vem em elevadas doses

Enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, governos colocam limites às exportações de imunizantes contra a covid-19. E se eles estivessem do outro lado da fronteira?

Jamil Chade, El País Brasil, 17 de fevereiro de 2021

Na semana passada, as Bolsas de valores de todo o mundo foram informadas que, em 2020, a empresa AstraZeneca obteve um faturamento de 27 bilhões de dólares e dobrou seu lucro em comparação ao ano de 2019. Há poucos dias, pelos jornais financeiros, a constatação era de que a Pfizer previa que as vendas com sua vacina contra a covid-19 gerariam uma receita de 15 bilhões de dólares.

Pelas redes sociais, proliferam selfies de famílias sinceramente felizes e emocionadas que brindam a chegada da vacina aos braços de avós e avôs repletos de planos. O abraço tão humano que nos fez falta durante meses parece cada vez mais próximo. O abraço que, na falta de palavras,

 

Esse abraço, porém, corre o risco de ser um privilégio de apenas uma porção da humanidade. Basta um mergulho nos números de distribuição das vacinas para entender que a ideia de um planeta comum é ainda um sonho distante de uma utopia necessária. 

Um total de 181 milhões de doses da vacina já foi distribuído pelo mundo. Uma conquista, sem dúvida. Pela primeira vez na história, o desenvolvimento de uma vacina foi realizado enquanto entidades internacionais erguiam um mecanismo para garantir que erros do passado não fossem repetidos. Ou seja: que a inovação e que a ciência pudessem chegar a todos. E não a uma minoria no planeta. 

Nos bastidores, especialistas e representantes de governos mais pobres arregaçaram as mangas para preparar a distribuição nesses locais onde falta energia elétrica, estradas e água. Tudo isso aconteceu. 

Mas ficou faltando algo fundamental: solidariedade, limitada a discursos diplomáticos e fechada em cofres acumulados em armazéns em poucos países do mundo.

O assunto da distribuição de vacinas levou o Conselho de Segurança da ONU a realizar uma reunião de emergência nesta quarta-feira, pois a paz mundial está em jogo. 

Mas o fracasso moral vem em elevadas doses. Apenas 10 países receberam o equivalente a 75% desses imunizantes —20% desse total apenas nos EUA. 

Outros 130 países ainda vivem a expectativa da primeira dose, com uma fila que já soma 2,5 bilhões de pessoas. No atual ritmo, o mundo apenas conseguirá vacinar 70% da população do planeta e atingir uma imunidade de rebanho em quatro anos e nove meses. 

Para que o mecanismo de distribuição funcione e que a disparidade seja alvo de uma transformação profunda, o mundo precisa de 27 bilhões de dólares em 2021. O valor é elevado. Mas não passa de uma fração dos 11 trilhões de dólares injetados pelos governos para salvar suas economias durante a pandemia. 

Entre 2008 e 2009, apenas o Tesouro americano destinou 204 bilhões de dólares para salvar os bancos do país. Apenas o JPMorgan Chase & Co recebeu o equivalente ao que o mundo precisa hoje para garantir a vacina para bilhões de pessoas. Mas, no caso dos bancos, a aprovação dos recursos foi garantida. Afinal, o que estava sendo salvo era o sistema financeiro, e não meras vidas. 

Também descobrimos, nesses primeiros meses da vacinação, que o sigilo de contratos é mais importante que a transparência com recursos públicos. 

Em debates acalorados entre governos, ouvimos de diplomatas que a propriedade intelectual continua vigente, mesmo diante de corpos que se acumulam, e que a quebra do monopólio para a produção global da vacina não é um caminho racional. 

Fomos confrontados com governos que, enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, optam por colocar limites às exportações das vacinas.

Fico me perguntando: e se eles estivessem do outro lado da fronteira, o que fariam? E se não fossem eles os donos do monopólio sobre a vacina? 

Enfim, como será que definem o que é a humanidade? 

Eça de Queirós decifrou a fronteira dessa noção em um de seus textos reunidos em “Cartas familiares e bilhetes de Paris”. Ele nos lembra que essa humanidade “consiste especialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro”. “Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente distanciando também em relação ao seu sentimento, de sorte que aos mais remotos já quase os não distingue da natureza inanimada”, escreveu no final do século XIX. 

Mas, hoje, qual seria exatamente o nosso bairro? Diante de um vírus que usou os mesmos canais da globalização virtuosa para chegar a todo o planeta, essa fronteira de quem faz parte da humanidade ou não foi borrada dos mapas. A era do mundo infinito da mentalidade vigente na realidade de Eça de Queiroz chegou ao fim, se é que um dia existiu. 

Para que eu sobreviva, meu inimigo precisa ser vacinado. Para que a rica cidade de Genebra esteja segura, Uagadugu precisa receber vacinas. Para que patroas durmam protegidas de uma eventual nova variante do vírus, aquelas senhoras que passam noites acordadas cuidado de seus filhos precisam estar vacinadas. 

A realidade é que a vacina fez o planeta tirar uma selfie. Mas a imagem refletida é de uma sociedade disforme, injusta e egoísta. 

Hoje, Charles Darwin está sendo sacudido. Não exatamente por criacionistas rejeitados até pelo Vaticano ou terraplanistas que despencaram do abismo intelectual. Mas por um imperativo moral de que o futuro de uma sociedade não pode ser deixada à sobrevivência do mais apto e nem às regras cruas e cruéis do mercado. 

O vírus —e agora a vacina— revelam o que o membro da resistência francesa na II Guerra Mundial, Jean Bruller, já havia constatado. “A humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista.”

130 países sem uma dose da vacina. A vergonha nas mesas do G7 e do G20

Para os especialistas, “não há saída da pandemia sem acesso justo e rápido”. Guterres (ONU) apela aos grandes nomes do mundo.

Giulia Belardelli, Huffington Post, 18-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

“Apenas 10 países administraram 75% de todas as vacinas Covid. Mais de 130 países não receberam uma única dose. Pessoas atingidas por conflitos e insegurança são deixadas para trás. Todos, em todos os lugares, devem ser vacinados o mais rápido possível”. Com essas palavras, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, denunciou os desenvolvimentos "enormemente desiguais e injustos" da campanha de vacinação no mundo, desejando a criação de "um plano global de vacinação que reúna todos os que possuem o poder, as competências e as capacidades de produção exigidas". Guterres prometeu "mobilizar todo o sistema das Nações Unidas na defesa desse esforço", o que, no entanto, requer a vontade política dos grandes do mundo para decolar. A questão da equidade no acesso à vacina - definida pelo líder da ONU como “o maior teste moral aos olhos da comunidade global - chega assim às mesas virtuais do G7 e do G20 sob a presidência italiana.

Em seu apelo, Guterres convidou as principais potências econômicas mundiais do Grupo dos 20 para instituir uma força-tarefa de emergência para estabelecer um plano e coordenar sua implementação e financiamento. A força-tarefa - sugeriu ele - deve ter a capacidade de “mobilizar empresas farmacêuticas e os responsáveis-chave da indústria e logística”. A videoconferência de amanhã entre os sete países mais industrializados do mundo - Estados Unidos, Alemanha, Japão, Grã-Bretanha, França, Canadá e Itália - “pode criar o impulso para mobilizar os recursos financeiros necessários”, acrescentou.

O premiê italiano Mario Draghi é a grande novidade das duas mesas, e o fato de ter a presidência do G20 pela primeira vez aumenta a responsabilidade da Itália na resposta global à pandemia. O próprio Draghi disse isso em seu discurso ao Senado: “A Itália terá a responsabilidade de liderar o Grupo para a saída da pandemia e de relançar um crescimento verde e sustentável para o benefício de todos. É uma questão de reconstruir e reconstruir melhor”.

A questão é que - de acordo com vozes influentes na comunidade científica - não pode haver saída da pandemia sem igualdade de acesso às vacinas. Isso foi reiterado em uma carta aberta publicada na revista médica Lancet por um grupo de especialistas em saúde pública, segundo a qual o desenvolvimento de novas vacinas Covid-19 não será capaz de acabar com a pandemia a menos que todos os países recebam as doses rapidamente. e de forma equânime. No texto, os autores criticam o armazenamento de vacinas em países mais ricos, alertando para os perigos do "nacionalismo vacinal" que ao prejudicar as chances de sucesso da Covax (iniciativa da OMS para distribuição de vacinas em países mais pobres) corre o risco de prolongar a emergência sanitária global.

"A dura realidade é que o mundo agora precisa de mais doses de vacinas Covid-19 do que qualquer outra vacina na história para imunizar pessoas suficientes para atingir a imunidade vacinal global", disse o principal autor Olivier Wouters, professor de Política de Saúde da London School of Economics and Policital Science. "A menos que as vacinas sejam distribuídas de forma mais equitativa, pode levar anos até que o coronavírus seja colocado sob controle em nível global".

Este é o ponto no qual as organizações internacionais vêm martelando há meses, da Emergency a Médicos sem Fronteiras, de Oxfam a Save The Children: governos e a indústria farmacêutica devem aumentar a produção superando lógicas nacionalistas e monopolistas. Guterres exortou os grandes nomes do mundo a assumir a responsabilidade pelo problema, mesmo de forma egoísta: “Se permitirmos a disseminação descontrolada do coronavírus no hemisfério sul, ele mudará novamente. Novas variantes poderão se tornar mais transmissíveis, mais mortais e potencialmente ameaçar a eficácia das vacinas”.

Parte do problema é certamente representado pelas patentes dos gigantes farmacêuticos que desenvolveram - ou estão desenvolvendo - os soros mais promissores. No entanto, trata-se de uma questão complexa, que também inclui o papel de grandes investimentos públicos no desenvolvimento e implementação, como explica Tancredi Buscemi doutorando em Economia pela Universidade de Perugia, em artigo publicado no site Sole24Ore intitulado "Vacinas e patentes: o que as holdings e os governos não dizem”. “A liberalização das patentes e seu uso como bem público levaria à produção em larga escala em tempos muito mais rápidos, colocando os países em segurança e garantindo o acesso também aos países em desenvolvimento. O caminho em que o mundo se encontra é bastante estreito e prolongar-se nesta questão pode até ser fatal, dado o surgimento de novas variantes”.

No momento são poucas as marcas no mercado que realmente atuam em regime de cartel: Pfizer, Moderna e Astrazeneca, às quais a Johnson & Johnson deverá em breve se somar. “A Moderna é a única das três marcas que autorizou o uso de sua patente, uma comunicação que é, contudo, uma espécie de campo minado”, observa Buscemi: “a empresa estadunidense, de fato, reservou-se apenas de não citar em juízo as empresas que desenvolverão vacinas semelhantes até o fim da pandemia”.

O que faltou até agora, porém, é principalmente vontade política dos governos para assumir um problema de dimensões globais, diante dos desafios de uma campanha de vacinação que se mostra difícil para todos. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, garantiu que o governo Biden "trabalhará com nossos parceiros em todo o mundo para expandir a capacidade de produção e distribuição e para aumentar o acesso, inclusive às populações marginalizadas".

O que está em jogo não é 'apenas' a saúde, mas também a geopolítica, como demonstra o ativismo chinês e russo na exportação de suas vacinas. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, criticou a crescente "divisão da imunidade" e convidou ao mundo a se unir para rejeitar o nacionalismo das vacinas, promover uma distribuição justa e equitativa das vacinas e tornar seu desenvolvimento acessível. A pedido da OMS, disse ele, a China vai contribuir "preliminarmente" com a Covax com 10 milhões de doses de vacinas.

O G7 e o G20 serão chamados a dar uma resposta clara e coerente, tendo em conta aquele adjetivo - “endêmico” - que cada vez mais aparece nos textos científicos ao lado da palavra “coronavírus”. É o Economist que exorta os governos a pensar no futuro: “À medida que o mundo começa a ser vacinado, tornou-se claro que esperar que as vacinas apaguem o Covid-19 é um erro. A doença vai circular por anos e parece provável que se tornará endêmica. Quando a Covid-19 começou a atacar, os governos foram pegos de surpresa. Agora eles têm que pensar no futuro [...]. A adaptação para viver com o vírus começa com a ciência médica. Já está em andamento um trabalho para desenvolver vacinas para fornecer proteção contra as novas variantes. Isso deveria andar de mãos dadas com o aumento da vigilância de mutações que estão se disseminando e uma aprovação normativa acelerada para os reforços. Enquanto isso, serão necessários cuidados médicos para salvar mais pessoas que contraem a doença da morte ou dos sintomas graves. O melhor resultado seria uma combinação de imunidade adquirida, reforços regulares de vacinas modificadas e uma combinação de terapias para garantir que a Covid-19 seja raramente uma ameaça à vida. Mas esse resultado não é garantido”.

O certo é que o mundo não pode se dar ao luxo de continuar a tratar as vacinas anti-Covid como se fossem um artigo de luxo, inacessível em 130 países ao redor do mundo até mesmo para profissionais de saúde, doentes crônicos, os mais frágeis entre os frágeis.