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#19J: Protestos contra Bolsonaro se consolidam no xadrez de 2022

20 de junho de 2021

Rumo de atos dos viventes para fora da bolha da esquerda depende da procissão dos mortos

Igor Gielow, Folha de S.Paulo, 19 de junho de 2021

A rua, ente esotérico que tanto assusta o mundo político, dá sinais de que veio para ficar no panorama brasileiro com a renovada jornada de protestos contra Jair Bolsonaro.

O fato de os atos terem coincidido com a macabra efeméride dos 500 mil mortos da Covid-19 no Brasil, dez vezes mais pessoas que o país perdeu no seu maior conflito, a Guerra do Paraguai (1864-70), apenas ampliou o simbolismo deste sábado (19).

A comparação entre o que ocorreu de forma espraiada por todo o país com a "motociata promovida pelo presidente no sábado passado, que juntou cabalísticos 6.661 motociclistas num ato de força pontual, é francamente desfavorável a Bolsonaro.

Se no evento em São Paulo a imagem de uma horda mecanizada avançando e atrapalhando o trânsito servia aos propósitos propagandísticos do bolsonarismo, a presença em diversas capitais e o termômetro da avenida Paulista indicam um outro fenômeno.

Por ora, assim como no grande, mas menor, protesto anterior de 29 de maio, estamos falando de um protesto majoritariamente de esquerda. O caráter eleitoral, contudo, foi diluído justamente pela dimensão humana da tragédia contra a qual ao fim os manifestantes protestam.

Não foi casual o cálculo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de não aparecer na Paulista e fazer um comício de campanha, assim como Bolsonaro faz dia sim, dia sim. Há uma linha tênue da exploração política da tragédia, ainda que seja um truísmo o DNA do que se viu neste sábado.

De todo modo, é possível argumentar que uma parte considerável dos presentes, ainda que não se incomodem com a profusão de bandeiras vermelhas e poderão votar em Lula em 2022, não queria se ver associada à disputa eleitoral imediata.

São pessoas que se opõem à anomia que caracteriza a era Bolsonaro no Brasil, seja nos aspectos sanitários ou nos democráticos.

Também é preciso dar descontos pontuais da dinâmica normal desse tipo de ato. Uma das faixas mais chamativas na frente do Masp era do algo folclórico Partido da Causa Operária. Tirando quem a segurava, se tanto, é duvidoso que alguém lá fosse eleitor da sigla.

Havia também, como ocorreu em Brasília, políticos de legendas de oposição não lulistas, como a Rede e o Cidadania. Mas daí a negar o caráter esquerdista do ato, como tentaram os organizadores Brasil afora, há uma distância razoável.

Ainda assim, o principal lugar-tenente de Lula, o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad, que concorreu contra Bolsonaro no nome do então condenado ex-presidente em 2018, deu as caras para espezinhar o rival.

Sobrou também, claro, para João Doria (PSDB), governador paulista que assumiu sua conhecida pretensão presidencial na terça passada (15).

Haddad é pré-candidato ao governo estadual no ano que vem, afinal, e irá enfrentar o grupo de Doria. Mas há também aí um recibo cautelar do petismo acerca do desprezo com que aliados potenciais tratam as chances do tucano na tentativa de encarnar a tal terceira via em 2022.

O campo dos antibolsonaristas e antipetistas passa por uma mudança. Doria entrou oficialmente em campo, o apresentador Luciano Huck desistiu de concorrer, conversas ora infrutíferas abundam. Ciro Gomes (PDT), identificável à esquerda, sofre para escolher se ataca Lula ou Bolsonaro.

Seja como for, esse grupo não foi às ruas de forma objetiva. Por sorte, reacionarismos como a temerária ação bolsonarista da PM de Pernambuco contra os atos também não apareceram.

Se os manifestantes gritam contra o risco de um golpe militar, o contexto em alguns estados, em especial do Nordeste, sugere que que eles devem ficar de olho é no proverbial guarda da esquina

Enquanto o aspecto político-partidário das manifestações se desenvolve, ​e o peso do caráter sem controle dos atos de 2013 sempre será lembrado, um fato é incontornável: as ruas voltaram ao xadrez eleitoral.

Se elas tomarão corpo além do formato à esquerda e emularão a pressão que cresceu ao longo de 2015 contra Dilma Rousseff (PT), é incerto. Isso dependerá da influência que a procissão de mortos da pandemia terá sobre a dos viventes.