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8 de janeiro: contradições e alternativas na luta contra o fascismo

14 de janeiro de 2023

Abriu-se uma luta democrática decisiva contra a impunidade, a violência, o descaso pela vida, a milicianização e a militarização da sociedade. Seu foco é a responsabilização criminal de Bolsonaro e associados pelo golpe que tentaram perpetrar contra o resultado da eleição de 2022.

José Correa Leite, 13 de janeiro de 2023

A posse de Lula se deu em 2 de janeiro, em um Brasil de fantasia em que sete representantes de oprimidas/os e exploradas/os, representando o “povo” brasileiro, entregavam a faixa presidencial ao novo mandatário. Este é o país desejado pelas/os eleitores de Lula, inclusive as/os que votaram nele apenas para retirar Bolsonaro do poder, coroando o processo de dois meses de negociações para a formação do novo governo.

Da ilha da fantasia ao Brasil real

Mas este não é o Brasil real, o país que inclui também milicianos, fanáticos religiosos, latifundiários e seus jagunços, empresários ultraliberais, garimpeiros… - tudo que está expresso na sigla BBB, simbolizando as bancadas do "boi", da "bala" e da "Bíblia" no Congresso Federal. 40% dos consultados na Pesquisa Atlas de 10 de janeiro de 2023 achavam que Lula não ganhou as eleições presidenciais de outubro e 37% se declararam a favor de uma intervenção militar para invalidar seus resultados ilegítimos - ainda que apenas 10% seja a favor de instaurar uma ditadura militar. Tem razão Vladimir Safatle quando lembra que o que aconteceu em 8 de janeiro se chama “princípio de realidade”.

É, pois, apropriado que vários analistas estejam chamando o 8 de janeiro de “a segunda posse de Lula”. Os bolsonaristas fanáticos, que promoveram o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes em Brasília, fizeram o que prometiam a muito tempo e ofereceram a recepção que achavam que Lula merecia. Uma ação exemplar de bandas fascistas. Mas, segundo a pesquisa Atlas acima citada, somente 18% dos entrevistados concordavam com a invasão do Congresso pelos bolsonaristas. Os ataques de 8 de janeiro são um acontecimento incontornável, síntese de tendências múltiplas e contraditórias, sobre o qual o conjunto da população é obrigado a ter uma opinião - a pesquisa Quaest sobre a popularidade de Bolsonaro nas redes sociais mostra que ela caiu ao seu pior índice em quatro anos, de 40% na semana anterior para apenas 21% em 9 de janeiro. Na pesquisa Datafolha de 11 de janeiro, já 93% condenavam os ataques e a maioria defendiam a prisão dos envolvidos. Na pesquisa Ipsos de 13 de janeiro, 81% condenavam os ataques - enquanto 9% aprovavam totalmente e 9% parcialmente a depredação. As invasões foram tanto um choque para instituições de poder estatal que se creem longe das arruaças quanto uma experiência prática com o bolsonarismo militante fanatizado para imensas massas brasileiras.

Os jornais estão comparando o 8 de janeiro de 2023 em Brasília ao 6 de janeiro de 2021 em Washington. Todavia, para além de buscarem a negação dos resultados eleitorais e revelarem os desafios hoje colocados para os sistemas políticos de corte liberal pelos movimentos iliberais ou neofascistas, as comparações têm limites. Bolsonaro já tinha deixado o cargo e Lula assumido como presidente, enquanto Trump ainda estava no poder e se tratava de o Congresso estadunidense reconhecer o resultado eleitoral. A mobilização fascistizante estadunidense tinha como objetivo que o Congresso mantivesse Trump no poder e não concedesse o mandato a Biden. A insurreição golpista brasileira foi uma destruição generalizada das sedes dos três poderes - o Palácio da Alvorada, o Congresso Federal e o Superior Tribunal Federal (STF) -, cujo sentido é o de um golpe de estado, buscando criar uma situação caótica, de confrontação civil e desgoverno, que justificaria a intervenção das Forças Armadas. E o controle civil secular sobre os militares estadunidenses coloca o 6 de janeiro de 2021 em um marco estrutural completamente distinto do 8 de janeiro de 2023 em um país que encerrou sua última ditadura militar em 1985, mas que manteve a militarização das forças policiais e um estatuto especial para os militares no serviço público.

Felizmente, a reação institucional no Brasil - inclusive dos conservadores - foi muito mais saudável do que a que vimos com os republicanos nos EUA. Que Lula tenha gerido a seu favor uma crise dessa magnitude com apenas uma semana de mandato e perfilado em torno de si as autoridades políticas, testemunha muito sobre sua capacidade política. Mas expressa também o pavor que as elites brasileiras têm de desordens e de gente na rua.

A reação imediata da esquerda ideológica e do progressismo foi, até agora, bastante unitária, a julgar pelas consignas dos atos organizados pelo país em 9 de janeiro. É necessário superar o descaso e conivência para com à violência política e a milicianização da sociedade; não oferecer nenhuma trégua ou anistia aos envolvidos na tentativa de golpe; fazer com que Bolsonaro e seu núcleo respondam por seus atos; desmontar o núcleo de poder fascistizante que se instalou nas forças armadas e outros órgãos estatais; combater pela retirada dos militares da vida política e desmilitarização das polícias, da política e da sociedade… Parece que 34 anos depois da Constituição de 1988 ter sido promulgada, o significado do seu “entulho autoritário” voltou à consciência da esquerda.

Contradições do governo Lula

Mas este acontecimento maior da vida nacional coloca uma pergunta incontornável: como foi possível que se organizasse um ato como o de Brasília sem conhecimento e reação prévia pelo governo federal?

A explicação que nos foi imediatamente oferecida é a da conivência do governo do Distrito Federal com os protestos bolsonaristas. Em consequência, o ex-Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e secretário da Segurança do governo do Distrito Federal, Anderson Torres (que estava providencialmente viajando aos EUA), se tornou o suspeito principal pelo complô que culminou nos atos. Lula decretou, ainda no dia 8, uma intervenção na área da segurança no DF até 31 de janeiro. Em seguida, na madrugada para o dia 9, o ministro do STF Alexandre de Moraes afastou do cargo por 90 dias o governador bolsonarista do DF, Ibaneis Rocha, e determinou uma série de medidas visando a dissolução total dos acampamentos pelo Brasil em 24 horas, a prisão dos ativistas de direita e a localização dos financiadores dos atos. No dia 9, mais de 1500 envolvidos tinham sido presos em Brasília. Atos dos movimentos sociais em defesa da democracia e contra qualquer anistia para os golpistas foram realizados por todo o país. No dia 10, o ministro do STF Alexandre de Moraes decretou a prisão de Anderson Torres, que teria se encontrado com Jair Bolsonaro em Miami, no dia 7 de janeiro. No dia 11, a Força Nacional, composta por policiais de diferentes estados e não de militares, foi encarregada da segurança da Esplanada, cujo acesso foi fechado.

A cumplicidade do governo do DF com os ativistas de extrema-direita parece evidente. Mas representa tão somente a superfície dos acontecimentos. Na medida em que as investigações avançam, parece que o 8 de janeiro foi o Plano B do bolsonarismo. A minuta de um decreto encontrada pela Polícia Federal na casa de Anderson Torres mostra que o Plano A proposto pela entourage de Bolsonaro era um golpe de estado, no qual, com o apoio das Forças Armadas, ele instauraria um Estado de Defesa sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mudaria o resultado da eleição de 2022. Isso colocaria os militares como poder moderador de um segundo governo Bolsonaro. Se o Plano A não foi executado, é porque não obteve o apoio da maioria dos comandantes efetivos de tropas, provavelmente do Comandante do Exército. Na medida em que o processo de conjunto se torna visível, Plano B se revela uma alternativa ao Plano A.

O problema de fundo da falta de reação prévia do governo federal está ligado às características do governo Lula e dos desafios que ele precisa equacionar. Ele foi montado como um governo da frente democrática que levou a chapa Lula e Alckmin ao poder federal - um governo do PT e seus aliados progressistas (a exceção do PSOL que não aceitou participar do novo executivo), passando por Marina Silva e Sonia Guajajara e o movimento indígena, e chegando até Simone Tebet e os liberais. Isso faz com que uma parte da esquerda se veja a partir da dinâmica desta frente e busque equacionar os seus desafios ao redor, essencialmente, da ideia de neutralizar a pressão ultraliberais dos mercados e da "Faria Lima". O problema é real e a preocupação é correta, mas leva parte da esquerda a um economicismo delirante. Em um artigo intitulado “Desbolsonarizar o Brasil. Como?”, de 11 de janeiro, Elias Jabbour afirma: “O bolsonarismo só começará a ser passado quando algum consenso em nossa sociedade for alcançado em torno da necessidade de crescimento econômico acelerado, industrialização e construção das bases materiais para um Welfare State brasileiro”. Vale perguntar: em que planeta o autor está, quando o bem-estar reflui em todo o mundo? A luta contra o fascismo contemporâneo é uma luta mais ampla por sentido e significado, por projetos que não se reduzem a demandas econômicas ou a políticas que se contraponham à atomização social das massas populares.

A composição do novo governo procura responder, todavia, também a duas outras questões interligadas. De um lado, a moderação no tratamento do bolsonarismo e seu núcleo organizado em um setor do comando das Forças Armadas, essencial em função do protagonismo que os militares da reserva foram ganhando nos últimos anos. José Múcio foi indicado para o Ministério da Defesa, escudado pelo pragmático Flávio Dino no Ministério da Justiça, como tentativa de fazer uma transição pactada com os militares e importantes setores da direita encastelados nas instituições do Estado. Para isso, Lula trouxe para o governo gente moderada, particularmente afeita à chegar a acordos com apoiadores do ex-presidente Bolsonaro ou, pelo menos, com muitos setores conservadores antipetistas. Este vem se revelando a grande contradição dos eventos de 8 de janeiro, na medida em que o Plano A de Bolsonaro vem à luz e a cumplicidade de alguns setores das Forças Armadas com os ataques ficam evidentes.

De outro lado, o governo que se inaugura sempre foi, na visão de Lula e do PT, um espaço para a “comprar” sua governabilidade no Legislativo pagando o preço exigido pelos deputados e senadores do “Centrão”, o bloco de parlamentares conservadores que participam de qualquer governo, oferecendo-lhes ministérios com polpudos orçamentos. Os dois objetivos estão interligados: a conciliação é com apoiadores não bolsonaristas de Bolsonaro, que em boa medida estão nos três partidos do Centrão puxados para o governo (o MDB, o PSD de Kassab e a União Brasil). São, formalmente, 9 dos 31 ministérios (inclusive o estratégico Ministério das Comunicações), o que já fez com que Lula engolisse uma ministra da União Brasil ligada à milicianos do Rio de Janeiro no Ministério do Turismo.

É porque existe o espaço político criado por estas três dinâmicas contraditórias que os fascistas se movimentaram com tanta desenvoltura, sem uma reação prévia, no último domingo.

A vida própria dos acontecimentos

Mas os fatos têm vida própria. Lula soube aproveitar as circunstâncias que se apresentaram e também está tendo que tentar se deslocar à frente a elas. A enorme violência revelada pelos manifestantes no 8 de janeiro, própria às bandas fascistas clássicas, foi repudiada pela imensa maioria da população e dos líderes políticos. Parece ter isolado e enfraquecido significativamente o bolsonarismo militante. Governadores eleitos na esteira da votação de Bolsonaro no primeiro turno - como o novo governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, uma possível liderança política capaz de herdar os setores conservadores - tiveram que ir a Brasília repudiar os “atos terroristas” e a atuação de "vândalos" (como a imprensa está chamando) e se solidarizar com Lula. Até Valdemar Costa Neto, presidente do PL, onde Jair Bolsonaro está hoje filiado, criticou os atos. Os acampamentos bolsonaristas estão sendo desmontados pelo país afora a partir de ordens diretas do TSF.

Lula pareceu, em seu discurso na noite do dia 8, estar abandonado a zona de conforto das políticas de conciliação que o orientaram desde que saiu da prisão, na sua estratégia de alianças, na campanha eleitoral e na montagem do governo. Depois de decretar a intervenção na segurança do DF, chamou os fascistas de fascistas, criticou Bolsonaro, lembrou o desmatamento da Amazônia e sua importância para toda a humanidade, apontou o dedo para o “agronegócio maldoso”, que que destrói a floresta e envenena a comida e disse que irá atrás dos financiadores dos golpistas. Isso é uma ruptura, ao menos parcial, com a estratégia de buscar uma transição pactuada com o bolsonarismo mesmo sem o aval de Bolsonaro. Ao longo da semana, Lula explicitou outros pontos, em especial afirmando que não confia nos militares e que o papel que lhes é definido pela Constituição não é o que eles pensam que têm, de ser um “poder moderador”.

Mas o “agronegócio maldoso” é o dínamo das exportações brasileiras e o coração do aparato de poder oligárquico que é o Estado brasileiro. De outro lado, a pactação é também a busca de um acordo com as Forças Armadas, que Bolsonaro procurou transformar no pilar de sustentação de seu governo. A Constituição de 1988 define um papel ambiguo aos militares na ordem política. Lula, seus assessores e ministros mais próximos procuram o caminho das alianças mais amplas e da conciliação. Poderão encaminhar rupturas, ainda que pontuais? Como fazer isso e manter os três alicerces de sua estratégia política moderada (governo da frente democrática, transição pactada com os militares e conservadores e integração a "baixo custo" do Centrão no pacto de governabilidade)?

Qual via seguir contra o bolsonarismo?

Os acontecimentos são implacáveis com as contradições políticas e as aquelas que estão na base do governo Lula emergiram com toda força em 8 de janeiro. José Múcio é um embaixador dos militares junto ao governo e a omissão ou cumplicidade deles parece ter sido central para que os manifestantes pudessem ocupar sem obstáculos as sedes dos três poderes. Múcio saiu bastante desgastado do episódio, mas Lula debateu abertamente o problema e reafirmou sua confiança nele, certamente considerando a continuidade do diálogo com setores militares. De outro lado, a reação de Lula vem sendo de confrontar os golpistas e nisso está se apoiando em outra figura que vem se mostrando central, o ministro do STF Alexandre de Moraes.

Moraes tem uma trajetória político-jurídica de duas décadas ligada ao PSDB de São Paulo e ao ex-governador Geraldo Alckmin. Foi Ministro da Justiça de Michel Temer, sendo por ele indicado para o STF. Mas, nos últimos quatro anos, passou a confrontar duramente o governo Bolsonaro, a “combater o extremismo”. Isso levou o ex-presidente a solicitar, sem êxito, o impeachment de Moraes ao Senado Federal em agosto de 2021. Moraes conduz, entre outros, um inquérito sobre os “atos antidemocráticos” e outro sobre as “milícias digitais”, cujo alvo é um dos filhos de Jair Bolsonaro, Carlos Bolsonaro. Foi Moraes que conduziu a Justiça Eleitoral brasileira (o STE) com mão de ferro em 2022, criando procedimentos draconianos de proscrição de fakenews das redes sociais durante a campanha, e que vem tomando medidas igualmente duras contra várias iniciativas bolsonaristas. Tornou-se o ícone do ativismo jurídico anti-bolsonarista, necessário, mas preocupante por sua concentração de poderes.

O senador Flávio Bolsonaro, outro filho do ex-presidente, teria dito que “a pacificação do país passa pelo arquivamento dos inquéritos que (miram bolsonaristas e) estão com o Alexandre de Moraes no STF”. Moraes afirmou depois, ao validar o resultado da eleição de Lula e Alckmin, em 12 de dezembro, que "essa diplomação atesta a vitória plena e incontestável da democracia e do Estado de Direito contra os ataques antidemocráticos, contra a desinformação e contra o discurso de ódio proferidos por diversos grupos organizados que, já identificados, garanto serão integralmente responsabilizados para que isso não retornem nas próximas eleições".

Tudo isso parece ter vindo à tona, nos últimos dois dias, com a revelação do fracassado Plano A do golpe na minuta de Anderson Torres e com a cobrança de punição dos golpistas. Hoje, 13 de janeiro, o Procurador Geral da República indicado por Bolsonaro, o reacionário Augusto Aras, sob pressão de 79 integrantes do Ministério Público Federal, solicitou ao STF a inclusão de Bolsonaro no inquérito sobre a autoria dos atos golpistas, imediatamente acatada por Alexandre de Moraes.

Desbolsonarizar a sociedade brasileira exige medidas que não discutimos aqui, como a retomada da organização autônoma da sociedade civil e a reocupação das ruas pelos movimentos sociais, a regulação e democratização das plataformas e redes digitais que alimentam e lucram com o ativismo radical de direita, políticas voltadas para ampliar a confiança dos setores populares em suas próprias forças e um sistema econômico que rompa com o extrativismo e o agronegócio, reproduzido por todas as forças no governo nos últimos quarenta anos. Exige também alternativas internacionais. A inteligencia política revelada pelo bolsonarismo foi construída articulada no terreno global em conjunto com forças nacionalistas conservadoras que estão em "guerra contra a modernidade". Nenhuma vitória democrática será definitiva se não se projetar como parte de uma alternativa para toda a humanidade e para a teia da vida no planeta.

Porém, abriu-se agora uma luta democrática decisiva, uma oportunidade para confrontar a impunidade, a violência, o descaso pela vida (as mortes criminosas da pandemia como caso mais gritante), a milicianização e a militarização da sociedade, vinculando tudo isso à criminalização das atividades golpistas de Bolsonaro e seus associados. A mobilização para que os golpistas respondam pelos seus atos pode - e deve - catalisar um processo de auto-organização popular sob bandeiras de esquerda. Tal golpe contra o fascismo brasileiro, se consolidado, colocará também o conservadorismo tradicional em uma posição defensiva e incidirá fortemente sobre a correlação de forças estratégica.

Aproveitar esta oportunidade exige que o governo Lula e o judiciário brasileiro naveguem por zonas conflitivas que não frequentaram nas últimas décadas. Exige também que a esquerda institucionalizada saia de sua inércia, reavivando sua capacidade - esquecida - de alavancar a auto-organização popular. Todos devemos buscar as rotas para isso. O próximo período não será nada tranquilo!

13 de janeiro de 2023