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A estratégia "armada" de Bolsonaro e as eleições

29 de setembro de 2022

29 de setembro de 2022. Por Julia Almeida Vasconcelos*

As eleições mais importantes da história da Nova República se aproximam. Indefinições e receios tensionam as esperanças mais firmes. Vimos, por tempo demasiado, o abismo. Não há escolha difícil: entre o chão de terra onde ainda podemos semear e o vão obscuro do vazio, lutaremos pela nossa possibilidade de futuro.

Bolsonaro talhou, num desenho com aparente incongruência, uma imagem nítida e violenta. Sua estratégia para o Brasil e para as eleições de 2022 vem sendo cuidadosamente trabalhada ao longo dos últimos quase quatro anos. Anos em que a confusão era tanta, que chegamos a nos ver como Dom Quixotes, que, no auge da sua “paranoia”, enxergavam monstros onde havia moinhos de vento. No nosso caso, eram monstros que nos espreitavam mesmo e a sensação, por vezes certa, de fantasia foi mais um recurso para tornar possível um enredo tão absurdo.

Hoje, a estratégia está mais evidente, e mesmo para os mais incautos, a possibilidade de aumento da radicalização política e ruptura institucional são reais – embora não sejam certas. A questão central que permeia as eleições é se Bolsonaro aceitará um resultado eleitoral de derrota e como a sua relação com as polícias e as Forças Armadas se desenrolará neste cenário, já que estas são detentoras do monopólio da força pelo Estado e estão no centro político e institucional do governo Bolsonaro e de sua candidatura à reeleição.

Num contexto de crise econômica global do capitalismo e de encruzilhada histórica, onde há aumento vertiginoso da desigualdade no mundo, após anos de implementação do neoliberalismo, com significativa precarização das condições de trabalho e vida, somadas a uma crise ambiental que se torna a cada dia mais evidente e que a pandemia da Covid-19 escancarou, temos experimentado um período de consolidação de movimentos da nova esquerda, por um lado, e o ressurgimento de uma extrema direita com peso social e político, por outro (com destaque para a vitória eleitoral de Trump nos EUA em 2016, que, apesar de ter perdido as eleições de 2020, ainda pauta a política nacional estadunidense).

Bolsonaro faz parte desse contexto mundial da nova extrema direita, sem dúvida. Porém, o caso brasileiro possui seus próprios caminhos e características que agravam a situação. Temos um germe, gestado ao longo de toda a República, que altera a dinâmica geral de um governo de extrema direita. A militarização da política, ou melhor, a centralidade dos militares na manutenção do status quo no Brasil, quando em períodos de crise, de disputa maior de setores da burguesia para manutenção de sua taxa de lucro, entra em cena e assume diretamente ou indiretamente o controle.

Numa democracia liberal e frágil, cuja própria formulação sempre foi objeto de críticas profundas, como a de Florestan Fernandes, que compreendia (mesmo após o processo de redemocratização) estarmos diante de uma autocracia burguesa. Florestan alertava que em sociedades periféricas e dependentes não existia um caminho evolutivo linear para sequer uma democracia burguesa. O convívio com o extermínio nas periferias (que aumentaram com chacinas como a do Jacarezinho) de jovens negros é um exemplo dessa fissura e, em certa medida, da necessidade de construção de um controle social violento para a manutenção do status quo. Os diversos mecanismos institucionais militarizados, presentes mesmo após a redemocratização, foram fundamentais para a possibilidade desse avanço atual.

Ao mesmo tempo, o governo Bolsonaro expressa um tipo autoritário que nunca experimentamos no país. Uma liderança popular, com apoio de massas protofascistas e com uma agenda absolutamente antidemocrática, não é uma conjunção da qual tenhamos outro parâmetro na história. A relação umbilical do governo com a construção das Forças Armadas aponta caminhos relevantes para a composição desse desfecho. A tentativa de acabar com a barreira que separa as Forças Armadas, como instituição do Estado, do governo vem sendo uma estratégia importante de Bolsonaro. Essa estratégia faz parte de uma lógica maior de aumento da parcela armada da população brasileira e de controle e liderança de Bolsonaro sobre ela.

As milícias cresceram durante o governo Bolsonaro[1], e os elos de conexão entre ambos não são pequenos. A necessidade do crescimento de grupos armados produz para Bolsonaro uma lógica que fortalece a sua política. Ademais, certa falta de controle sobre esses grupos, numa aposta corriqueira de caos, também pode justificar medidas mais drásticas por Bolsonaro, ou até mesmo o deflagrar de uma situação de maior aumento autoritário conduzido por ele. Um caso como o Capitólio nos EUA teria aí um encontro possível, mas com uma grande diferença, que é a articulação de Bolsonaro nas polícias e nas Forças Armadas.

Desde o Golpe de 2016, os militares retomaram um papel de interventor nos rumos da política institucional. Estavam nas articulações para o Golpe e obtiveram, como moeda de troca, objetos do seu interesse, como o Ministério da Defesa (que não era ocupado por um militar desde sua criação em 1999). Em 2018, consagraram o início de uma intervenção mais agressiva: primeiro, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, através do general Braga Netto. E, logo depois, a construção de ameaças explícitas a outras instituições, como no caso do tuíte do general Villas Boas (com aval do Estado-Maior) ao STF, diante do julgamento do Habeas Corpus de Lula.

A falta de normalidade democrática das eleições de 2018, com Lula inelegível e preso -mesmo liderando as pesquisas, a violência simbólica e política, o tom de ameaças, o desfile militar no Rio de Janeiro no dia de eleição do Bolsonaro não foram meras coincidências, havia um projeto em curso. O símbolo da arminha não é apenas um slogan, mas uma política consciente, que tem alimentado alas radicais bolsonaristas – incluindo células fascistas. A ampliação do acesso e a flexibilização do controle de armas e munições e a multiplicação significativa de clubes de caça e tiro[2] têm representado uma ameaça armada também de civis.

Além dos ministérios, e do cargo de vice, há mais de seis mil militares em cargos comissionados da administração pública federal (TCU. Relatório/2021). A restrição que impedia que militares da ativa ocupassem esses cargos por mais de dois anos foi alterada ano passado, e agora eles podem fazê-lo por tempo indeterminado. Essa construção apresenta uma projeção de manutenção da militarização no Estado brasileiro, pois a pressão política dos militares – que tiveram aumento significativo de suas rendas com esses cargos – não é pequena. Diga-se, aliás, que o orçamento militar foi um dos que mais cresceu e que as Forças Armadas ficaram de fora da reforma da previdência.

Não é circunstancial, portanto, que o Instituto General Villas Bôas (que recebe dinheiro do governo federal) tenha publicado um plano (Projeto Nação-O Brasil em 2035) de participação ou intervenção dos militares no governo brasileiro até 2035. Esse plano prevê medidas econômicas de austeridade e aprofundamento da perspectiva neoliberal, como o caso de pagamento de mensalidades nas universidades públicas. De igual modo, ele reproduz a falácia do marxismo cultural, do risco das urnas eletrônicas, da cruzada contra o judiciário, dentre outras questões. Representa a visão conservadora dos militares que apoiam Bolsonaro, e que pretendem permanecer no Estado brasileiro, com ou sem o presidente. Embora o “Plano A” seja com Bolsonaro, a perspectiva é de negociação para manutenção de privilégios e algum controle sobre o Estado, que mantenha o centro da militarização do Estado, na velha máxima “mais vale perder os anéis do que os dedos”.

Ressalta-se, embora não seja o conjunto dessas instituições militares que apoiam Bolsonaro (vide a assinatura de 2 mil integrantes das forças armadas da Carta pela democracia da USP)[3], não há, até o presente momento, outra força política com capacidade real de disputa desses setores. Esse é o maior problema: os militares não são todos bolsonaristas, mas o único projeto político que, de forma organizada, efetivamente disputa hegemonia dentro das Forças Armadas é o bolsonarismo. Para aqueles que não estão completamente imbricados com Bolsonaro, não é fácil voltar para o isolamento da caserna.

O debate de voto impresso e, agora, auditoria das urnas eletrônicas sempre foi uma estratégia de agitação política e de disputa, no seio de sua base radical, do próprio conceito de democracia. No momento da votação do voto impresso, em agosto passado, Bolsonaro deslocou o desfile militar, que sempre ocorreu nos arredores de Brasília, para o Congresso. Ali ele não tentou negociar com emendas (como fez em todas as votações importantes para o governo) para aprovação do voto impresso; ele não queria aprovar o voto, mas ter uma hipótese de “Plano B” para questionar as eleições – caso a configuração de uma derrota se confirmasse -, assim como medir até onde as Forças Armadas iriam em seu apoio. Já havia trocado o alto comando das três Forças em abril de 2021 e vinha testando sua capacidade de controle, vide sua vitória na não punição de Pazuello.

No 7 de setembro de 2021, embora as manifestações tenham ficado muito abaixo do esperado, elas foram expressivas. Foi um feito impressionante no contexto da pandemia, da precarização da vida e do retorno da fome como problema massivo, uma mobilização com as bandeiras de liberdade e democracia, contra o STF, sem nenhuma pauta concreta sobre os principais problemas que assolam o país. Ali, ele também mediu a capacidade de mobilização das polícias militares, que soltaram nota[4] da sua associação nacional apontando que devem obediência às Forças Armadas em última instância e não aos governadores de Estado.

No contexto eleitoral mais próximo, o grave erro do TSE de criar e convidar para composição de uma Comissão de Transparência das Eleições as Forças Armadas, um dia após os atos do 7 de setembro de 2021, tem servido de subterfúgio para aprofundar o debate de que há questionamento sobre a lisura das urnas e, portanto, das eleições, que dão combustível para o ódio e a violência política nas eleições (com uma população armada).

De igual modo, vale destacar a mudança exigida por Bolsonaro de alteração do desfile militar de 7 de setembro deste ano, no Rio de Janeiro, da Avenida Presidente Vargas para Copacabana, onde haverá uma manifestação de sua base social, e que foi acolhida, sob o disfarce de uma caminhada. A manifestação, em meio ao período eleitoral, pode ser o início de uma escalada de radicalização política. Mas, para isso, Bolsonaro precisa, desesperadamente, de um fato político. Ele também joga para negociar, mas, mesmo para viabilizar a negociação, necessita subir a pressão. Sabe que cometeu crimes de responsabilidade e que seus filhos estão envolvidos em vários esquemas de corrupção e de milícias.

Em síntese, esse processo de aprofundamento da militarização possui um conjunto de medidas de forma planejada: a ocupação de cargos de primeiro escalão; a ocupação de mais de sete mil cargos comissionados na administração federal direta ou indireta (e a alteração legislativa de 2021 que permitiu a militares da ativa permanecerem indefinidamente nesses cargos); o programa e a implementação de ensino cívico em escolas públicas; o aumento do armamento da população; a recorrência de operações de Garantia da Lei e da Ordem (e atribuição de competência da justiça militar para julgar os crimes e execuções dessas operações já realizada no governo Temer); a alteração da lógica da separação entre atividade civil e militar (tentando construir uma simbiose que altera até mesmo o marco republicano); a exaltação da violência e dos símbolos relacionados à lógica da Guerra; a reivindicação da subordinação militar nos planos de execução da administração pública; a construção de um inimigo público que precisa ser exterminado; as ameaças constantes do uso da força militar para a resolução de conflitos institucionais; a decretação de sigilo para documentos e processos de interesse público.

Desse modo, é imprescindível garantirmos a vitória de Lula, mas sem esquecermos que há medidas significativas de alteração da institucionalidade brasileira e de militarização do Estado que precisarão de uma pauta específica e direta. Caso contrário, poderemos manter os germes novamente no escuro, mas permanecerá a ameaça constante de que eles sempre poderão se revelar à luz do dia.

*Julia Almeida Vasconcelos da Silva é da Executiva Nacional da Insurgência (PSOL), doutoranda em Direito pela USP, pesquisadora do DCHTEM/USP e NEV/USP, advogada e professora de Direito na Anhembi Morumbi.

[1] A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Relatório Final. Org: GENI/UFF e IPPUR/UFRJ. Jan, 2021.

[2] Coluna de Rafael Nunes no Uol online de 16/07/2022, com base em dados do Exército.

[3] Folha de São Paulo. Coluna Mônica Bergamo de 11/08/2022.