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A necessidade de mudanças dos sistemas de inteligência no Brasil

31 de janeiro de 2024

Julia Almeida V. da Silva. 29 de janeiro de 2024. Para Le Monde Diplomatique.

Importante operação da Polícia Federal, que aponta monitoramento ilegal, chega no cerne de um aparato que precisa ser revisto e passar por processos de gestão e democratização civis.

A revelação da utilização inadequada da Abin para mapear opositores do governo Bolsonaro, com cerca de 30 mil pessoas monitoradas ilegalmente (incluindo a promotora do caso Marielle Franco e responsáveis por inquéritos da família Bolsonaro), sob o comando de Alexandre Ramagem e a gestão de militares, demonstra a fragilidade institucional brasileira no tema de sistemas de inteligência e autoritarismo. Sobretudo, suscita a questão de por que é possível essa interferência governamental e qual deveria ser o marco de regulamentação e proteção dos sistemas de inteligência. Para apontar possíveis respostas a essas perguntas precisamos recuperar o desenho institucional da Abin e dos sistemas de inteligência na sua perspectiva histórica e política.

Os sistemas de inteligência no Brasil foram, desde a sua criação, ferramentas importantes de controle político interno, com mapeamento dos denominados “inimigos públicos” (pobres, comunistas, subversivos e opositores de qualquer espécie), pessoas que de alguma forma ameaçavam o status quo. Seu embrião, nos marcos de papel institucional e como política do governo central, data do final da década de 1920 (embora sempre tenha existido polícias investigativas), durante o governo de Washington Luís, e teve um percurso de consolidação a partir do avanço da necessidade de controle social na ditadura do Estado Novo e, em especial, a partir de 1946 (com a criação do primeiro sistema de espionagem propriamente dito, o Sistema Federal de Informações e Contra-Informações – SFICI), e após o processo de fundação da Escola Superior de Guerra (ESG), de natureza militar e influenciada pelos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, com a introdução no Brasil da Doutrina da Segurança Nacional.

A ESG teve seus principais precursores formados e treinados nos Estados Unidos nas escolas de espionagem e esse feito fez com que finalmente fosse turbinado o Sfici em 1956, sendo os primeiros quarenta funcionários cedidos das Forças Armadas e, Humberto de Souza Mello, um dos oficiais treinados em Washington, escolhido para chefiar o serviço secreto. Será depois, em 1961, que a chefia será transferida para Golbery de Couto e Silva, durante o governo Jânio Quadros, e sua estrutura permanecerá ocorrendo em paralelo (de forma clandestina), quando da assunção de João Goulart até o golpe de 1964. Esse serviço secreto “privado” (munido de documentos roubados do SFICI) foi fundamental no planejamento e articulação do golpe de 1964. Posteriormente, haverá uma sofisticação e unificação das diversas atividades de inteligência no regime autoritário da ditadura empresarial militar, sob a supervisão inicial de Golbery, que colocará em outro patamar a utilização desse sistema para a desarticulação de opositores e resistências à ditadura.

Em relação ao sistema de inteligência e informações das Forças Armadas, destaca-se, sobretudo, a sua alteração a partir do endurecimento na ditadura civil militar. Por idealização de Costa e Silva, os sistemas de informações passam a não apenas coletar dados e analisar informações, mas também participar diretamente da repressão (grupos de elite trabalhando com formação e força). Além disso, também ampliaram seu poder, passando a responder apenas ao gabinete do ministro de sua respectiva Força. Sendo assim, em 1969, é criado o Centro de Informações do Exército (CIE) e, em 1970, já com Médici, são criados o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Esses três órgãos contavam com a participação do Serviço Nacional de Informações (SNI), que foi criado logo após o golpe de 1964 pelo general Golbery e que unificava os sistemas.

Além destes, também era formada a repressão e perseguição através de uma série de outros serviços de inteligência, nas mais variadas esferas federativas, tais como: Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), Destacamentos de Operações Internas (DOI) e Operação Bandeirante (Oban), os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), e das P-2 (serviços secretos das polícias militares).

Esse patamar de encadeamento e repressão colocou o sistema brasileiro como um dos mais autoritários do mundo, com características próprias de autonomia e status institucional pouco vistas. E foram fundamentais no arranjo institucional de controle social no país, em especial no período ditatorial. Não é circunstancial que dois presidentes (Médici e Figueiredo) vieram do SNI para a presidência. No processo de repressão, o sistema de inteligência teve um papel crucial para a manutenção da ditadura.

Durante o início do processo de redemocratização, já na década de 1980, os sistemas das Forças Armadas mudaram de nome, mas não deixaram de existir (possuem as mesmas leis até hoje). Já o SNI passou por um longo processo, mesmo após a Constituição de 1988 até a criação da Abin. É apenas em 15 de março de 1990, no governo Collor, que é dissolvido, sendo substituído pelo Departamento de Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos (DI/SAE), ligada à Presidência da República. Essa nova alteração significa redução no status do serviço de inteligência e obrigatoriedade das secretarias regionais serem lideradas por um civil, dentre outras mudanças. No governo Itamar, entre recuperação e perdas de poderes provisórios, em 1994 é realizado o primeiro concurso público para ingressar no Serviço. E, apenas em 1999, teremos a primeira Agência Civil de serviço de inteligência, com a criação da Abin, no governo FHC.

No entanto, apesar da lei prever algum controle externo (que nunca foi efetivamente exercido), ela submeteu ao Gabinete da Presidência a sua vinculação, em especial ao GSI. Além da Abin, o projeto criava o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que reunia informações de todos os órgãos federais que produzissem informações de defesa externa e segurança interna, tais como Receita, Polícia Federal, Correios …), sob a coordenação da Abin.

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que protagonizou um espaço importante nos atentados de 8 de janeiro de 2023, veio para substituir a antiga Casa Militar (que tinha status de ministério, era uma espécie de paralelo ao papel da Casa Civil, só que para militares, e persistia nas estruturas governamentais desde a redemocratização).

Ademais, em outubro de 2015, Dilma também promulgou a MP 969, de 2 de outubro de 2015, que propôs uma reforma ministerial e extinguiu o GSI, recriando a Casa Militar, mas sem status de ministério, circunscrevendo as suas atribuições apenas à segurança da presidência e vice. A Casa Militar passa a se subordinar à Secretaria de Governo, assim como a Abin – que pela primeira vez na história fica submetida a um “ministério” civil.

Fato curioso é que, no mesmo dia da posse interina de Temer na presidência, ele recria o GSI, que será então chefiado por Sérgio Etchegoyen, recuperando seu status de ministério e subordinando novamente a Abin a ele e, portanto, aos militares. Ainda será criada a Política Nacional de Inteligência (PNI), que concentra no GSI, pela primeira vez desde a ditadura, essas atribuições num único órgão.

É importante ressaltar que, mesmo quando o sistema de inteligência e espionagem tinha natureza civil, o controle em regra foi sempre exercido por militares, em especial por meio do GSI (que, desde a extinção da Casa Militar, tem sua chefia ocupada por um militar, com raros períodos provisórios de exceção). Ele foi um braço fundamental de controle dos militares ao longo da Nova República e de permanência de militarização institucional do Estado brasileiro. Informação é controle social e político, por isso os militares nunca abriram mão desse papel e estiveram apoiando o golpe de 2016 também para recuperar esse domínio (dentre outros interesses).

Não é circunstancial que a aquisição da ferramenta de monitoramento First Mile tenha sido realizada durante a intervenção federal militar na segurança pública do Rio de Janeiro, em 2018, sob o comando do general Walter Braga Netto (que depois seria ministro de Bolsonaro e vice na chapa de 2022) e durante a vigência de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), sem licitação e de forma ilegal. A gestão estatal de militares na segurança pública e na ordem interna é um fator fundamental para a militarização da política. O retorno de forma protagonista de militares atuando diretamente em cargos civis do governo central aponta para a intensificação de um modus operandi autoritário das instituições militares para a segurança pública. O próprio fato de a aquisição ter sido sem licitação e, portanto, ilegal, já demonstra como fere princípios básicos republicanos.

Após esse período, é com o general Augusto Heleno, durante o governo Bolsonaro, que teremos o desenvolvimento do atual escândalo da Abin, com o monitoramento ilegal de mais de 30 mil pessoas. Heleno se identificava com o grupo mais radical da linha dura da ditadura e, em verdade, era um membro relevante dessa vertente, sendo exonerado no mesmo dia que Sylvio Frota do gabinete do Ministério do Exército. Frota fazia parte do grupo que entende que os ideais do golpe de 1964 foram traídos pelos militares que defenderam e organizaram a transição. Esse grupo já tinha à época uma visão econômica mais neoliberal e uma série de bandeiras ajustadas pela noção do marxismo cultural e a perspectiva de uma nova forma de anticomunismo. Inúmeras ideias organizadas nessa época sobreviveram ou foram ressignificadas pelo núcleo central militarizado do governo Bolsonaro.

Essa breve e reduzida recomposição histórica demonstra as linhas centrais do problema atual da Abin. O aparato de inteligência teve uma continuidade com a estrutura herdada da ditadura, mesmo após a redemocratização. Essa estrutura é tanto do ponto de vista ideológico, na dimensão de um inimigo público interno a ser destruído (resquícios da doutrina da segurança nacional, inclusive com a aplicação por Bolsonaro da LSN de 1983 para perseguir opositores); quanto estrutural e institucional (desenho e atribuições, pessoal e parte de equipamentos e estrutura física herdada do SNI). A Abin, apesar de ter controle legislativo previsto, nunca foi efetivamente controlada e prestou contas ao Congresso, e pôde ser ainda mais aparelhada e instrumentalizada no momento em que um governo militar e autoritário voltou a se consolidar, através do comando de um general pelo GSI.

Portanto, a importante operação da Polícia Federal, que aponta esse monitoramento ilegal, chega no cerne de um aparato que precisa ser revisto, juntamente com o GSI, e sobretudo, precisa passar por processos de gestão e democratização civis. Esse pode ser um ponto de chegada para a responsabilização de importantes comandantes militares que estiveram à frente do governo Bolsonaro (incluindo o próprio). É mais uma oportunidade que precisa ser utilizada para, efetivamente, iniciar um processo de desmonte de uma máquina autoritária e militarizada do Estado brasileiro.

Essa lógica de monitoramento e de violação dos direitos fundamentais (a ferramenta não passou por ordem judicial e viola os dados pessoais com a localização de georreferenciamento), utilizada com a justificativa do combate ao crime organizado que pressupõe medidas excepcionais e extralegais, é um modus operandi da construção de um Estado policial. É evidente que essa prerrogativa de intervenção de militares na ordem interna está no centro da viabilidade desse tipo de atuação e representa a mesma lógica dos serviços de inteligência desde a sua criação no Brasil.

Num balanço recente do 8 de janeiro, apontamos o quanto a agenda de desmilitarização do Estado e democratização da segurança pública é essencial e permanece em disputa e com dificuldades concretas de avanço. Os riscos de não enfrentarmos essa agenda nesse momento importante de reconstrução nacional fica ainda mais evidente com os resultados dessa operação e como ela se relaciona também com os atentados e desdobramentos do 8 de janeiro.

Julia Almeida V. da Silva é pesquisadora, autora do livro “A militarização da política no Brasil Contemporâneo” (Ed. Alameda, 2023), doutoranda em Direito pela USP, mestre em direito pela UFRJ, pesquisadora do DHCTEM/USP e NEV/USP e professora na Anhembi Morumbi/SP.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Rubim Santos Leão de. Um tempo Para Não Esquecer (1964-1985). Rio de Janeiro: Consequência, 2012.

BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014.

BERNER, Vanessa (Coord.). Relatório Final do Projeto de Pesquisa: justiça autoritária? o judiciário do Rio de Janeiro e a Ditadura Militar (1964-1988). Rio de Janeiro: 2015.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.

FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio: A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927 – 2005). Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

SILVA, Julia Almeida Vasconcelos da. A Militarização da Política no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Alameda, 2023.

ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civis-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988 in: Teles, Edson e Safatle (orgs). O Que Resta da Ditadura: a Exceção Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019.