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A pandemia é a maior ameaça à democracia na América Latina

25 de outubro de 2020

O cientista político estadunidense traça um horizonte duro para as democracias na América Latina, mas também nos Estados Unidos. O professor da Universidade Harvard considera que a pandemia acentuará os problemas enfrentados por muitos países da região, onde a onda democrática pode ficar para trás e nos deixar com governos muito diversos – alguns democráticos, outros nas mãos de ditadores e outros mais híbridos -, ao mesmo tempo em que em seu país antecipa uma polarização crescente até que o Partido Republicano acumule derrotas eleitorais o suficiente para impulsionar sua renovação. Ou seja, assim como aconteceu com o peronismo, após as derrotas de 1983 e 1985. “A derrota”, disse, “serve para repensar a estratégia”.

Mesmo com semelhante panorama, o autor de Como as democracias morrem (Saraiva: 2018) e de La transformación del Justicialismo: Del partido sindical al partido clientelista se sente esperançoso. Resgata que os latino-americanos ainda querem ir às urnas, mesmo que não seja para outra coisa a não ser retirar os maus governantes. Mas isso não faz com que deixe de ficar muito nervoso com o retorno dos militares ao debate político, seja na Bolívia, no Brasil ou na América Central. “Isso é perigosíssimo”, ressalta.

Hugo Alconada Mon entrevista Steven Levitsky, La Nacion, 17 de outubro de 2020.

Dada a sua especialidade e sua experiência, o que mais lhe preocupa destes tempos de pandemia?

O futuro a médio prazo da democracia em várias partes do mundo, mas sobretudo na América Latina, que foi e continuará sendo uma das regiões mais golpeadas pela pandemia. Até agora, a grande maioria das democracias resistiu, mas estou muito preocupado. Primeiro, porque viemos de vários anos de medíocre ou mau rendimento econômico, o que mina a confiança pública na democracia e aumenta a possibilidade de uma crise ou colapso. Vimos isto na Europa e na América Latina, nos anos 1930, sendo que o nível de confiança pública nos governos democráticos já era muito baixo antes da pandemia.

A pesquisa do Latinobarómetro de 2018 mostrou que cada vez menos mexicanos e brasileiros confiam na democracia e se olhamos para o futuro, temo que continuará diminuindo. Há países com Estados que não funcionam bem, com alto nível de desigualdade, com sistemas públicos de saúde que não funcionam, com fome e que registrarão um aumento da dívida pública muito preocupante. O espaço de manobra que esses governos terão será muito limitado, com cortes no gasto social e o quase certo aumento da desigualdade social.

Um mal endêmico da América Latina.

Sim. Umas das conquistas dos primeiros anos do século XXI, em muitos países da América Latina, foi a redução da desigualdade social. Agora, isso irá pela janela. Estamos diante de um período de pobre rendimento econômico, de crise fiscal, de aumento da desigualdade social e, como lhe dizia, com um aumento da desconfiança e o do descontentamento público em relação aos governos democráticos. É, sem dúvida, a maior ameaça para a democracia, desde os anos 1980, com um fator a mais que não ocorreu na Argentina, mas em outros países: o retorno dos militares à arena política. Vimos isto na Bolívia, em El Salvador, em Honduras, no Brasil. Não necessariamente como governo, mas como árbitro no jogo político. Isso é perigosíssimo. Retirar os militares da política talvez tenha sido a conquista política mais importante da América Latina, dos últimos 40 anos, mas estamos vendo um retrocesso nesse sentido.

Por acaso, caminhamos para um regime híbrido, para um autoritarismo competitivo, como você define, em certos países da América Latina?

Os anos 1990 foram uma década muito especial, de pós-guerra fria, com certa homogeneização dos regimes políticos na região. Quase todos os governos eram democráticos porque existia uma altíssima pressão internacional, uma grande legitimidade da democracia liberal e uma quase ausência de alternativas. Mas o mundo mudou de muitas maneiras, desde então. Veremos uma diversidade mais parecida com a que houve em meados do século XX, com democracias, ditaduras e regimes híbridos.

Dito isso, tenho a esperança de que não estejamos perto de um retorno aos anos 1970. Espero que os militares não voltem a governar diretamente e que a variante mais provável sejam as democracias fragilizadas e os regimes híbridos, liderados por outsiders, populistas de esquerda ou de centro-direita, que prometam solucionar os problemas de outra maneira, assim como [Hugo] Chávez ou [Alberto] Fujimori, que ganharam porque as pessoas estavam cansadas da classe política, dos políticos tradicionais, dos governos do status quo.

Entre os fatores que podem colocar em risco uma democracia, você inclui a pouca disposição em acatar as regras do jogo democrático, negar a legitimidade da oposição, certa tolerância à violência e restrições aos direitos e liberdades da oposição. Podemos dizer, então, que a democracia norte-americana está em risco? Ou a cultura democrática estadunidense é tão sólida que resistirá?

Quando publicamos Como as democracias morrem, em 2017, Donald Trump estava recém-eleito presidente e muitos analistas disseram que a democracia estadunidense não podia morrer. Agora, poucos analistas nos Estados Unidos dizem que tudo caminha bem e que é impossível que a democracia entre em colapso. É muito incerto. Há muitas e muito fortes razões para acreditar que a democracia norte-americana sobreviverá. Para começar, nunca na história um regime democrático tão antigo e tão rico entrou em colapso, mas o risco existe. Porque estamos em um terreno novo e acredito que o mais importante é o nível da polarização.

Repassando os colapsos democráticos mais importantes da história, não há muitas democracias estáveis que tenham entrado em colapso. Uma foi a do Chile. Na Alemanha e na Espanha, as democracias não eram tão estáveis quando entraram em colapso, nos anos 1930. E não se esqueça dos Estados Unidos quando entraram em guerra civil, durante o século XIX. Todos esses casos ocorreram em um contexto de altíssima polarização e hoje há estudos com muita evidência de que a extrema polarização mina o compromisso de atores e cidadãos com a democracia.

Pode explicar?

Se a distância entre você e eu é tão grande, se nossas visões são tão diferentes que começo a vê-lo como uma ameaça à minha segurança, ao meu modo de viver, e deixo de percebê-lo como um rival, mas como uma ameaça, farei tudo o que for possível para evitar o seu triunfo, por qualquer método e não necessariamente jogando dentro das regras. É o que se está vendo na Venezuela, que é outro exemplo de colapso democrático, com uma altíssima polarização, com uma oposição antichavista apoiando um golpe e o chavismo obviamente disposto a destruir a democracia.

Agora, nos Estados Unidos, o nível de polarização é altíssimo. Mas não é entre o socialismo e o livre mercado, mas pela raça e a cultura. É uma polarização entre cristãos brancos e o restante do país. Por uma razão muito simples: os cristãos brancos fundaram o país e dominaram os estamentos político, econômico, social e cultural nos Estados Unidos por 200 anos. Todos os presidentes, senadores, juízes da Corte, governadores e até jornalistas, até os anos 1970, eram brancos e cristãos, mas isso mudou de maneira dramática.

A população branca e cristã está deixando de ser maioria eleitoral e perdeu sua posição dominante na sociedade. É inevitável – e a meu parecer é positivo e normal -, mas há um setor dessa população branca, cristã e sem formação universitária que está perdendo na nova economia, que se sente infeliz e que estão roubando o país em que cresceu. Sentem-se ameaçados e sua reação alimenta a polarização. É algo muito sério.

Não conheço nenhum país no mundo em que uma maioria étnica tenha perdido essa maioria e que a democracia tenha sobrevivido. Por tudo isto, nos Estados Unidos estamos vivendo um terremoto. Não é do nada, não é acidente, não é culpa de Trump. É um terremoto sociopolítico que acredito que podemos sobreviver, mas não será fácil.

Trump como resultado, não a causa, do que os Estados Unidos vivem.

Exato. Com ele, o processo piorou muito, mas é mais sintoma do que causa. O problema começou antes.

Qual é o caminho, então? Obviamente, não lhe peço a fórmula mágica.

Teria um salário muito mais alto se tivesse a solução [risos]. Passa pelos republicanos. Mas, hoje em dia, são um partido perigoso, cada vez mais autoritário e antidemocrático. Não porque sejam pessoas ruins, mas porque representam esse grupo de cristãos brancos que perdeu poder e status, que cada vez é menor e que precisam então brigar cada vez mais para sobreviver.

A base social do Partido Republicano sente que está em guerra e que está perdendo, então, é uma base muito radicalizada e disposta a apoiar medidas extremistas. Trump é apoiado por 90%, faça o que fizer. Por isso, a mudança passa pelo Partido Republicano. O dia em que decidir mudar sua estratégia e ampliar sua base, poderá ser um partido que atraia eleitores entre os negros conservadores e os latinos conservadores que se opõem ao aborto. Mas para isso precisam deixar de ser racistas. Dito isso, hoje, não há muitas formas de reformar ou ampliar sua base para incluir pessoas que não sejam brancas e cristãs.

Quais seriam essas vias, então?

Uma é caso sofram uma série de derrotas eleitorais, como aconteceu com o peronismo, em 1983, que os obrigou a deixar para trás o peronismo de Lorenzo Miguel, dos anos 1970. O peronismo foi muito mal em 1983 porque a Argentina havia mudado. Perderam feio outra vez em 1985 e veio a renovação. Tiveram que pensar na classe média e assim fizeram. A derrota serve para repensar a estratégia.

Pode acontecer, mas hoje há um problema nos Estados Unidos que passa por duas instituições contramajoritárias muito fortes: o colégio eleitoral e o Senado, que favorecem as zonas rurais dos estados menos povoados. E como o Partido Republicano é o partido dessas zonas menos povoadas, hoje pode vencer. Porque podem perder o voto popular por três ou quatro pontos percentuais e ainda assim ganhar a presidência pelas características de nosso sistema eleitoral.

De fato, os republicanos podem perder o voto popular até cinco ou seis pontos e conservar a maioria no Senado. Isso faz com que possam governar sem conseguir maiorias nacionais, o que fragiliza esse incentivo para mudar.

Há algo que lhe dê esperanças na América Latina?

Sou menos pessimista sobre o futuro da democracia no mundo do que muitos, em parte porque acredito que por mais descontentamento que exista com as instituições democráticas na América Latina, as pessoas continuam querendo eleições. O argentino, o brasileiro, o mexicano e o peruano podem insultar seu governo, os partidos, o Congresso, mas ninguém na Argentina quer deixar de ter a possibilidade de retirar um governo ruim nas urnas. As pessoas querem votar e isso continua sendo tão popular na América Latina como em 1983. Não há ninguém na rua pedindo o sistema político chinês. Não há um modelo de regime mais atrativo que a democracia hoje em dia.

 

Haverá, sim, episódios de governos populistas que fragilizem as instituições democráticas, que terminem em uma espécie de autoritarismo competitivo, mas os países, sobretudo da América Latina, até agora, sempre voltam à democracia. Aconteceu após as quedas dos governos de [Alberto] Fujimori, no Peru, de [Rafael] Correa, no Equador, e de Evo Morales, na Bolívia, todos querem eleições. Isso me dá esperança.

 

Em relação aos Estados Unidos, o tema racial sempre foi o problema mais duro para a nossa democracia, embora seja possível o superarmos. Surgiu uma maioria heterogênea, difusa, complicada, mas real, a favor de uma democracia racial. Esta coalizão jovem, grande e multirracial é algo totalmente novo no mundo. Esse é o futuro, que poderia ser um modelo positivo para outros países. Penso no Brasil e em outros países muito heterogêneos e que têm um nível altíssimo de desigualdade racial. Poderíamos passar a ser um modelo bastante interessante de democracia multirracial. Essa é a minha esperança.

Reproduzido de IHU-Unisinos. A tradução é do Cepat.