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Amartya Sen: As crises nunca foram grandes niveladoras

Distante do marxismo, Sen é um companheiro de rota na luta contra as desigualdades e injustiças.

12 de outubro de 2020

Amartya Sen, nascido há 86 anos, no atual estado indiano de Bengala Ocidental, é um talento multidisciplinar. Economista e filósofo, acima de tudo é um pensador excepcional. O ser humano ou, melhor dito, o bem-estar do ser humano está no centro de seu pensamento e de seu trabalho. O próprio Sen sempre se viu como um advogado dos pobres e desfavorecidos. Sua tese mais conhecida demonstra, com dados históricos, como não apenas a escassez de alimentos produz as grandes catástrofes alimentares, mas, sobretudo, a distribuição injusta da riqueza.

Amartya Sen foi professor em Oxford, Harvard, Cambridge, Stanford e Berkeley. É assessor da Organização das Nações Unidas e é considerado o pai do índice de desenvolvimento humano, um indicador de bem-estar que não mede o desenvolvimento e a qualidade de vida somente em função de critérios materiais, também inclui fatores como a educação, a saúde e a liberdade. Em 1998, ganhou o Prêmio Nobel de Economia. Sen vive em Boston com Emma Georgina Rothschild, economista e historiadora, e ensina em Harvard.

Michael Streck entrevista Amartya Sen, XL Semanal, 9 de outubro de 2020

Muitos o chamam de ‘a consciência da economia’. Sabia disso?

Não, mas me parece exagerado. Seria possível dizer o mesmo com igual ou maior confirmação de Adam Smith, o Marquês de Condorcet e, é claro, Immanuel Kant. Muitas vezes, meu nome é mencionado junto aos destes grandes pensadores, e é uma honra, mas nada mais.

Dadas as consequências da pandemia, agora seu trabalho é mais importante do que nunca para a humanidade...

Estamos vivendo tempos enormemente intensos e interessantes. Assistimos a uma mudança nas prioridades. O foco está se deslocando. A longo prazo, a Europa ganhará relevância, sobretudo a Alemanha e a França, enquanto fica evidente que os Estados Unidos não estão mais em condições de desempenhar seu papel de liderança. Também é certo que muitas das coisas sobre as quais pesquisei, ao longo de minha vida, estão se situando com maior clareza no centro dos temas que nos ocuparão no futuro.

Ou seja, pobreza, desigualdade...

Sim.

A pandemia colocou o mundo em um estado forçado de pausa. Alguns de seus colegas a descrevem como uma espécie de advertência e concluem que a humanidade não pode mais seguir nesse mantra do crescimento econômico contínuo.

O crescimento sempre suscita interrogações acerca da sustentabilidade. O crescimento é uma questão de planejamento correto e de pensamento correto. Mas, em si, não é algo ruim. Assim como a globalização também não é, porque a globalização significa muito mais coisas que um crescimento global. Significa também um intercâmbio global de ideias, de pensamentos, de cultura. Podemos e inclusive devemos crescer, mas de uma forma inteligente.

E como seria esse crescimento inteligente?

Sobretudo, temos que acordar uma cultura da distribuição justa, que afete a bens necessários para a vida como são os alimentos e os medicamentos. É um assunto que já faz parte da ocupação de grandes pensadores, e também estadistas, ao longo da história. A redistribuição continua sendo a chave da resolução destas questões tão importantes para a humanidade. Permite-me citar um exemplo.

 

Durante a Segunda Guerra Mundial, a desnutrição praticamente desapareceu na Grã-Bretanha, apesar de que, em conjunto, havia menos alimentos que antes. Os que mais se beneficiaram da adoção do racionamento da comida foram os pobres. O Serviço Nacional de Saúde britânico também nasceu a partir da ideia de uma distribuição igualitária.

Mas está há anos no limite, como voltou a se manifestar com o coronavírus.

Isso não significa que a ideia que há por trás não continue sendo boa. De qualquer modo, é preciso admitir que nem todas as coisas evoluem em uma direção positiva e que a distribuição justa não é uma realidade em todos os lugares do mundo. É o que vemos aqui, nos Estados Unidos, onde a população negra é a que mais está sofrendo os efeitos da pandemia.

Muitos humanistas e historiadores descreveram as pragas, as guerras e as revoluções como “grandes niveladoras”. Consideravam que começar do zero era uma oportunidade para conseguir uma situação de maior igualdade. Esta visão poderia ser aplicada à situação atual?

Não, e também não acredito que essa tese tenha sido correta alguma vez, nem sequer em tempos da peste negra ou das grandes fomes na Europa. Naqueles tempos, os ricos sempre estavam muito melhor que os pobres, mesmo quando proporcionalmente morriam muitos. As crises humanitárias nunca foram grandes niveladoras. Kant, o grande ilustrado alemão, já destacou que deveríamos dedicar muito mais energia aos motivos de alguns ter mais que outros. Em definitivo, a questão da grande nivelação é uma ilusão.

Quando observa o mundo de hoje, com um presidente imprevisível à frente dos Estados Unidos e com o país metido em um duelo com a China, com uma União Europeia na qual só após amargas negociações os países ricos aceitaram ajudar os membros mais frágeis a combater a crise provocada pelo coronavírus..., o que lhe passa pela cabeça?

Existe um risco real de que não estejamos dando a devida atenção a como solucionar os problemas causados pela Covid-19, mas também há sinais alentadores. Pense na Itália, por exemplo, que já estava afetada pela desigualdade antes da pandemia, uma desigualdade que vinha avivada pela retórica da Liga Norte.

Apresenta a Itália como um exemplo positivo?

Antes da pandemia, parecia que Matteo Salvini era politicamente intocável. Estive na Itália no verão passado e muitos o aclamavam como um herói. Depois veio a crise e onde está Salvini agora? Não é visto em lugar algum. A retórica anti-imigração sofreu um revés importante. Pense: no início da crise do coronavírus, a Itália parecia desorientada, carecia de plano. Mas o país ganhou esta batalha a partir do momento em que começou a levar em conta todos os cidadãos, não apenas os do norte.

A corrida mundial para desenvolver a vacina está marcada pelo egoísmo nacional. E se, ao final, a realidade for contra a sua maravilhosa teoria da distribuição justa?

Os atores globais têm um papel e devem assumi-lo. Não há outra alternativa. Os países que, como os Estados Unidos, buscam uma vacina apenas para a sua própria população e se esquecem dos outros não demonstram liderança. Estamos falando de uma crise global, que exige respostas globais. Os Estados Unidos tinham todas as características próprias de uma potência líder global, mas cada vez possuem menos, ao passo que outros países acabaram com as diferenças de forma considerável.

A China, sobretudo.

A China obviamente, mas também o Vietnã, por exemplo, que durante a guerra apostou no princípio da igualdade e continua se apegando a ele. Em questões de educação, saúde e igualdade, o Vietnã e a China estão em uma posição muito boa. A China é quem está na ponta. Isso pelo menos é positivo.

Mas...?

Infelizmente, estes passos positivos não levam a uma democratização, nem a um maior respeito aos direitos dos indivíduos e das minorias.

Vive há muitos anos em Boston. É possível dizer que você está assistindo ao declínio dos Estados Unidos pela janela de sua casa: Trump, protestos, coronavírus... Observa este cenário como intelectual ou como um cidadão comum?

Das duas formas. Já estive aqui, nos anos 1960, em meus primeiros anos como professor. O pensamento radical faz parte da tradição norte-americana, é outra das coisas que me fascinou neste país. Neste momento, nos Estados Unidos, está ocorrendo um enorme confronto entre aqueles que assistem preocupados a como o Estado responde aos problemas da época e da nação e aqueles outros que têm uma visão mais estreita do mundo.

Falar de visão estreita é uma forma muito delicada de descrever o atual presidente.

Para mim, isto vai além dele. Percebo esses dois polos também entre meus estudantes. Os Estados Unidos estão presos nesse dilema. Mas a estreiteza de visão não é um problema somente americano. Pense na Grã-Bretanha e na decisão tão equivocada que é o Brexit.

Essa visão nacionalista e estreita lhe causa dor?

Claro. Mas há algo ainda pior, que é quando a identificação com a nação não é mais válida para todos, quando alguns ficam excluídos de forma premeditada.

Poderia citar algum exemplo?

Meu país, a Índia. Antes era o país dos hindus, muçulmanos, cristãos, judeus, sikhs, parses e muitos outros. Mas o Governo atual tem essa Índia secular em boa medida escravizada por uma Índia sob o controle hindu. Na minha opinião, isto é muito mais censurável que o nacionalismo puro e duro que se nota em todos os cantos do mundo. Nacionalismo sectário, foco nos ricos, desprezo aos necessitados, repressão à liberdade de expressão... e tudo isto em uma democracia.

Até que ponto considera que sua origem influenciou em seu trabalho?

Não apenas influenciou em meu trabalho, influenciou em minha vida. Tive a sorte de nascer em uma família de estudiosos. Muitos de meus parentes lutaram contra o domínio britânico e acabaram na prisão. Muitas vezes, ia visitá-los. Aprendi desde muito jovem que é necessário lutar por seus valores e seu legado.

Você é economista e filósofo. Como se definiria como pessoa?

Sempre busquei pertencer ao maior número possível de grupos. Sou indiano, mas também sou asiático. Cresci em um ambiente hindu, mas não me sinto apenas hindu. Sou cientista, mas sempre quis centrar minha pesquisa nos campos que são mais relevantes para as pessoas. E sempre gostei de ler pessoas que são capazes de apreciar o bem no mundo. Sinto-me herdeiro de uma linhagem global.

Ver o bem no mundo, como você disse, não parece tão fácil. Pandemia, recessão, pobreza, mudança climática e, acima de tudo, esta enorme desigualdade... Podemos resolver todos estes problemas?

Se nos esforçarmos o suficiente, sim, podemos. Seria necessário agir em dois níveis. Por um lado, deveríamos refletir sobre o que foi ruim e quais lições poderíamos tirar. E ser muito inflexíveis com nós mesmos, durante a análise.

E o segundo nível?

O segundo nível é a colaboração. Ou seja, ter a disposição de se envolver intelectualmente e a capacidade de estender as mãos aos outros. Eu gosto de fazer as duas coisas. De fato, fazer algo pelo mundo também é muito divertido.

Se pudesse falar na sede da Organização das Nações Unidas, o que diria a todos os chefes de Estado e de Governo?

A primeira coisa que faria seria dedicar muito tempo a escutar. Em seguida, diria que não existe nada que possa substituir o pensamento crítico. E que a maioria dos problemas do mundo é resultado de um pensamento fechado, limitado. Uma mente aberta e a vontade de colaboração são essenciais.

 

A chave de minha vida


O professor Sen sempre se recorda que nasceu em um ambiente universitário. Seu pai era professor de Química na Universidade de Daca, no atual Bangladesh. Aqueles primeiros anos no subcontinente indiano, então sob o domínio colonial britânico, marcaram o jovem Amartya.

 

Certa vez, um diarista muçulmano – que estava sendo perseguido por alguns hindus armados com facas – se arrastou até a casa de seus pais para fugir de seus perseguidores. Seu pai o levou ao hospital, onde morreu. Amartya era ainda um menino, mas entendeu que aquele homem havia entrado em um distrito hindu por pura necessidade de sobrevivência e apesar do medo.

 

Sem nunca se esqueceu daquela violência sem sentido, nem tampouco da terrível fome em Bengala, que acabou com a vida de três milhões de pessoas, em 1943. Os membros das castas superiores e intermediárias, às quais ele pertencia, praticamente não se viram afetados pela tragédia, nem sequer chegaram a perceber o sofrimento dos outros.

 

Aqueles acontecimentos mudaram a sua imagem do mundo. A partir daquele momento, Sen se dedicou a estudar a pobreza, a economia do bem-estar e a desigualdade social. Suas teorias, ensaios e livros o tornaram uma superestrela do mundo acadêmico.

Reproduzido do IHU-Unisinos. A tradução é do Cepat.