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Aprovado 1º PL em favor de trabalhadores de plataformas

13 de dezembro de 2021

Por Felipe Moda e Marco Gonsales.

Depois de a Câmara Federal aprovar, na semana passada, quarta-feira (01), o Projeto de Lei 1665/2020, a primeira legislação a nível nacional em prol dos trabalhadores plataformizados, no caso, dos entregadores por aplicativos, nesta última quinta-feira (09), foi a vez do Plenário do Senado Federal, em votação simbólica, também o acolher.

De autoria do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), o projeto prevê que as empresas do setor de entregas por aplicativo devem, durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do coronavírus: 1) contratar seguro aos entregadores contra acidentes e por doença contagiosa; 2) garantir assistência financeira aos trabalhadores afastados em razão de acidente ou por suspeita de contaminação pelo coronavírus; 3) garantir a distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos trabalhadores; 4) garantir o acesso à água potável, alimentação e espaço seguro para descanso entre as entregas e 5) garantir que os restaurantes cadastrados nas empresas permitam o uso do banheiro pelos entregadores. Apesar do projeto ter sido votado um ano e meio após o início da pandemia, ele ainda precisa da sanção presidencial para ser executado.

A regulação dos chamados trabalhos uberizados/plataformizados, realizados por milhares trabalhadores informais, o qual as atividades dos motoristas e dos entregadores são apenas a face mais conhecida, vem ganhando força mundo afora, especialmente em virtude da organização, da articulação e da mobilizações realizadas por este(a)s trabalhadore(a)s.

 Para se ter uma dimensão do movimento, entre janeiro de 2017 e maio de 2020, segundo o Leeds Index of Platform Labour Protest, foram realizados pelo menos 527 greves e/ou protestos organizados por entregadore(a)s em 36 países. Muitos dos movimentos avançaram e conquistaram importantes vitórias nos parlamentos e nas cortes de seus países. Dentre as principais leis e decisões judiciais internacionais, destacam-se:

Na Espanha, no dia 10 de maio de 2021, a “Ley Rider” foi anunciada pelo atual governo de coalisão centro-esquerda, na figura da ministra do trabalho e da economia social Yolanda Díaz. O decreto lei alterou a redação do Estatuto dos Trabalhadores (ET) para presumir o vínculo de emprego entre entregadore(a)s e as empresas plataformas e determinar a divulgação por parte das empresas dos parâmetros, regras e instruções nos quais os algoritmos ou sistemas de inteligência artificial são baseados.

Outra importante vitória dos trabalhadores plataformizados foi conquistada pelo(a)s motoristas londrino(a)s frente a Uber, na Suprema Corte do Reino Unido, em fevereiro de 2021. Em 2016, as duas principais lideranças do movimento britânico, James Farrar e Yaseen Aslam, processarem a Uber no Employment Appeal Tribunal por negar direitos trabalhistas ao classificá-los como trabalhadores autônomos. Em novembro de 2017, a Uber perdeu a apelação, mas alegou que não houve unanimidade no tribunal (2 x1) e recorreu ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, no dia 19 de fevereiro de 2021, a Suprema Corte do Reino Unido pronunciou que os motoristas da Uber são “workers”, uma figura jurídica intermediária entre o empregado (“employee”) e o trabalhador autônomo, que garante direitos como aposentadoria, férias e salário-mínimo.

Cabe lembrar, que no mesmo dia (9) que o Senado Federal brasileiro aprovou a PL 1665/2020, os proletários plataformizados europeus também obtiveram uma importante vitória. A Comissão Europeia, na toada da Ley Rider espanhola, propôs um conjunto de medidas que objetivam garantir condições trabalhistas mínimas para os trabalhadores plataformizados. Segundo a Comissão, os entregadores são assalariados quando há algum tipo de controle por parte das empresas. (Gómez, 2021). Na contramão deste movimento, nesta mesma semana foi noticiada no Brasil a proposta de uma nova Reforma Trabalhista que tentará colocar fim nas disputas judiciais envolvendo as relações trabalhistas existentes nesta forma de trabalho, consolidando os trabalhadores como prestadores de serviços autônomos.

Como costuma acontecer no capitalismo, as grandes lutas antecederam as regulamentações em defesa do(a)s trabalhadore(a)s. No caso espanhol, assim como o brasileiro, no lugar dos sindicatos, as associações e coletivos são protagonistas do movimento dos entregadores por aplicativos. Enquanto aqui, os mais atuantes coletivos são o Treta no Trampo e os Entregadores Antifascistas, na Espanha, quem encabeça os movimentos é o coletivo Riders X Derechos, formado em meios a onda de protestos de 2017. Na Inglaterra, as duas principais lideranças do movimento, os imigrantes James Farrar e Yaseen Aslam, além de organizarem a principal associação de motoristas por aplicativo do país, a App Drivers & Couriers Union (ADCU), processarem a Uber por negar seus direitos trabalhistas e, como mencionado acima, não só ganharam, como garantiram para todo(a)s motoristas da Uber direitos como aposentadoria, férias e salário-mínimo.

No Brasil, a agenda em torno da regulação do trabalho por aplicativo ganhou força principalmente a partir dos “Breques dos Apps” – movimento que ganhou destaque quando, no dia primeiro de julho de 2020, em meio a pandemia, milhares de entregadore(a)s de todo Brasil promoveram a maior e primeira greve nacional da categoria.  Além de ter sido o primeiro movimento paredista nacional, fora também a primeira participação da categoria em uma manifestação de dimensão internacional. Entregadores argentinos, mexicanos, peruanos, equatorianos aderiram ao movimento e simultaneamente brecaram suas motos e bicicletas por melhores condições de trabalho:

A luta do(a)s entregadores obteve repercussões na chamada opinião pública, nos consumidore(a)s, nos partidos políticos, no meio sindical, no legislativo, no judiciário (Santana, Antunes, 2021). Na Câmara Federal, entre 2020 e 2021, foram registrados 128 projetos de lei sobre a temática do trabalho por plataformas. Apesar da grande quantidade de projetos, muitos, aproveitavam da conjuntura para legislar em favor do empresariado. Como no caso do Projeto de Lei 3748 /2020, proposto pela deputada Tabata Amaral (PSB). A PL 3748/2020 garantia alguns direitos aos trabalhadores “sob demanda”, no entanto, ao fim ao cabo, ao propor um novo regime de trabalho, “o regime de trabalho sob demanda”, o PL estava por afastar ainda mais este(a)s trabalhadore(a)s do acesso aos parcos direitos trabalhistas restantes da CLT.

No caso dos Breques dos Apps, a repercussão foi tamanha, que após sete dias do primeiro protesto de julho de 2020, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, convocou uma reunião remota com representantes do movimento de diversos estados. O presidente disponibilizou técnicos da presidência da Câmara para ajudar a agrupar os principais projetos protocolados que tratassem do tema. No dia 5 de agosto de 2020, após outros dois Breques realizados em julho de 2020, nos dias 14 e 25, e a pressão dos deputado(a)s do PSOL, foi aprovada por unanimidade a urgência da votação da PL 1665/2020, um dos 128 projetos que tramitavam pela casa.

No entanto, a pressão do(a)s entregadore(a)s não cessou e o presidente da Câmara Rodrigo Maia marcou uma reunião presencial com a categoria no dia 16 de agosto de 2020. Neste dia, os entregadores da associação AMAE-DF (hoje renomeada de Organização Associativa de Profissionais por Plataforma Digital - OAPP) e lideranças de diversas localidades brasileiras foram para Brasília pressionar o parlamento. No entanto, o presidente da Câmara Rodrigo Maia transferiu a reunião para o dia seguinte. Muitos entregadores passaram a noite em Brasília no aguardo da reunião, no entanto, foram surpreendidos com a notícia de que o presidente havia testado positivo para a covid e cancelado novamente a reunião.

O PL1665/2020 acabou indo para a Câmara Federal apenas na última plenária antes do recesso parlamentar do final do ano de 2020, dia 22 de dezembro. Se já não bastavam as significativas alterações feitas pelo relator da PL, o deputado Fábio Trad (PSD-MS), o Partido Novo conseguiu arrastar a sessão até meia noite, obstruindo a votação do PL, o jogando para 2021.

Neste ano, a pressão por melhores condições de trabalho do(a)s entregadore(a)s continuou. Se o movimento dos Breques dos Apps perdeu força nas capitais, nas pequenas e medias cidades ele cresceu. Desde o último Breque nacional, realizado no dia 11 de setembro de 2021, diversas greves eclodiram principalmente no interior paulista e fluminense. São José dos Campos brecou por 6 dias, depois foi a vez de Paulínia promover a mais longa greve da história da categoria, 7 dias de paralização. Na sequência, continuaram brecando o(a)s entregadore(a)s de Jundiai, Bauru, Atibaia, Niterói, São Gonçalo e Região Oceânica (Gonsales, 2021). Nesta toada de grande pressão da categoria, como já mencionado, o PL 1665/2020 voltou ao plenário da Câmara Federal no dia primeiro de dezembro, quando foi aprovado e enviado para o Senado Federal, que na última quinta-feira (9), também o aprovou

Compreendendo o trabalho subordinado por meio de plataformas digitais

Como dito, os motoristas e entregadores por aplicativo são apenas a face mais conhecida do trabalho subordinado por meio de plataformas digitais. Novas plataformas são lançadas quase que diariamente e afetam as mais categorias profissionais, alterando a maneira que inúmeros serviços são ofertados e até mesmo criando novas profissões. Hoje os mais diversos profissionais podem ser contratados por meio destas empresas, como, por exemplo: diaristas, designers gráficos, DJs, pedreiros, goleiros de futebol, advogados, psicólogos, programadores de softwares, treinadores da Inteligência Artificial etc. Assim, compreender como funcionam estas empresas é fundamental para pensarmos ações que visem regular seu funcionamento. 

As plataformas são infraestruturas digitais, alimentadas por dados, automatizadas e organizadas por meio de algoritmos digitais. Porém, ao nos referirmos aos trabalhos subordinados por meio de plataformas, não os relacionamos apenas à conexão existente entre o trabalho e estas infraestruturas digitais, mas também ao fato da infraestrutura ser de propriedade privada. Ou seja, as plataformas digitais são empresas que buscam controlar e organizar processos de trabalho, subordinado às atividades desempenhadas por milhares de trabalhadores autônomos aos seus interesses. Assim, elemento central nos processos de plataformização do trabalho é o fato da relação entre trabalhadores e empresas ser mediada hierarquicamente pelas infraestruturas digitais, as quais se alimentam dos dados produzidos pelos próprios trabalhadores e consumidores para racionalizar os processos produtivos e aumentar a vigilância sobre o trabalho, potencializando assim a sua capacidade em produzir valor.

Em que pese as diferenças existentes entre as empresas por plataformas, todas elas funcionam de acordo com alguns princípios. São empresas registradas no setor de tecnologia e que se colocam como mediadoras do encontro entre prestadores de serviço com consumidores, cobrando um valor pela realização deste encontro. Ou seja, são empresas que não produzem nada, que segundo o seu discurso não oferecem nenhum produto à população. Nessas empresas, não é estipulada jornada de trabalho e todos os trabalhadores são considerados como prestadores autônomos, com suas remunerações sendo completamente variáveis, tendo por base o número de trabalhos por eles realizados. Os riscos e custos existentes na prestação do serviço, como os envolvidos na aquisição das ferramentas necessárias para execução das atividades, são transferidos aos trabalhadores. Além disso, não existe um número máximo de trabalhadores vinculados a cada plataforma e não são realizados processos seletivos para a realização do cadastro, tornando escolha pessoal se engajar neste tipo de trabalho.

Apesar das empresas propagarem que estão promovendo empregos com maior liberdade para os trabalhadores, pelo fato deles poderem aparentemente organizar as suas rotinas de trabalho, o trabalho subordinado por meio de plataformas digitais é realizado de maneira minuciosamente controlada. Este controle é realizado, principalmente, a partir de dois mecanismos: 1) pela modalidade de remuneração adotada, com os trabalhadores tendo seus salários calculados de forma totalmente variável, tendo por base apenas um valor pago pelo número de trabalhos/tarefas por eles realizados, fazendo com que a aparente flexibilidade da jornada de trabalho existente converta-se em uma busca constante para que o trabalho dure por longas horas e 2) pelo gerenciamento algorítmico, as práticas de supervisão e de distribuição dos trabalhos que são realizadas de maneira automatizada por softwares e que indicam aos trabalhadores o que, como e por quanto tempo fazer cada trabalho, com os descumprimentos das normas impostas pelas empresas para a execução das atividades acarretando em punição aos trabalhadores.

Destrinchar estes mecanismos de controle sobre o trabalho é fundamental para pensarmos a regulação destas empresas e a garantia de direitos aos trabalhadores. Estamos em um momento histórico de forte desenvolvimento tecnológico, permitindo que o trabalho seja controlado em toda a sua extensão, sabendo de maneira precisa o que foi realizado por cada trabalhador. Portanto, a garantia dos direitos trabalhistas no trabalho plataformizado é plenamente realizável. Porém, as empresas propagam as benesses do trabalho aparentemente autônomo para fugirem das suas obrigações legais, afirmando não realizar relações de subordinação com os trabalhadores. Ou seja, o que vivenciamos não é a incapacidade técnica de regulação do trabalho, mas a disputa política de que relações de trabalho estão sendo construídas.

Avanços e limites do Projeto de Lei 1665/2020

O Projeto de Lei 1665/2020 foi o primeiro aprovado na Câmara Federal versando sobre garantias mínimas para os entregadores por aplicativo. Assim, deve ser compreendido como um primeiro passo para aumentar o debate público sobre a agenda da regulação do trabalho plataformizado, ainda que seja um passo restrito apenas a uma das categorias atualmente submetidas a esta forma de trabalho. Um primeiro passo importante e que deve ser comemorado, em especial por ter sido realizado em um período marcado pela retirada de direitos e de garantias sobre o trabalho.

Ainda que o projeto não verse sobre os temas centrais que orquestram o funcionamento das empresas do setor, vale ressaltarmos que a pandemia de COVID-19 piorou as condições de trabalho dos entregadores. Além de ter sido impossível a estes trabalhadores a realização do distanciamento social ou de momentos de quarentena, haja visto que os que ficam em suas casas para evitar o contágio pelo vírus acabam sem nenhuma remuneração ao final do mês, durante a vigência da pandemia os entregadores viram sua jornada de trabalho aumentar, sua renda cair e foram obrigados a aumentarem seus custos individuais devido ao não fornecimento de EPIs pelas empresas, como demonstrado pela pesquisa realizada no âmbito da Remir (Abílio et al, 2020). De acordo com os respondentes da pesquisa, durante a pandemia de COVID-19 62% dos entregadores trabalham acima de nove horas diárias e 47% têm remuneração semanal de R $500 reais. A explicação para essa piora nas condições de trabalho é dada pelo aumento do número de trabalhadores cadastrados nestas empresas, que são um grande atrativo de geração de renda ao crescente número de desempregados existente no país.

Neste cenário, apesar deste projeto ser restrito ao atual momento de calamidade pública, as medidas “paliativas” e de “caráter nitidamente humanitário”, como descrito na justificativa do projeto de lei, contribuem para assegurar as condições mínimas de segurança sanitária aos entregadores, além de diminuir os custos arcados por eles para se protegerem. Além disso, a falta de água potável, de locais de descanso e de banheiro para trabalhadores que passam longas horas nas ruas da cidade é um tema que deveria envergonhar os responsáveis por estes serviços e que precisa ser rapidamente resolvido.

Porém, como o próprio texto do projeto indica, é necessário avançarmos e pensarmos nas condições em si pelo qual este trabalho é realizado. Complementamos reforçando a necessidade de não pensar apenas o trabalho dos entregadores, mas da plataformização do trabalho em sua totalidade e diversidade. Os caminhos para este avanço não são simples, já que em nenhum país isto ocorreu até o momento e existem divergências entre os próprios trabalhadores sobre quais leis devem ser formuladas para normalizar suas atividades.

Em que pese estas adversidades, um pressuposto básico para avançarmos nesta temática é a consolidação da compreensão de que estas atividades não são desempenhadas de forma mediada pelas empresas, mas sim pela existência de uma subordinação hierárquica entre as corporações e os trabalhadores. A partir do entendimento de que não estamos diante de dois entes que negociam suas relações em condições de igualdade, é possível pensarmos em projetos que garantam proteção social e trabalhistas a estes trabalhadores e que ao mesmo tempo mantenha as características listadas por eles como positivas neste trabalho, como a flexibilidade de horários. 

Referências

ABÍLIO, L.; ALMEIDA, P.; AMORIM, H.; CARDOSO, A.; FONSECA, V.; KALIL, R.; MACHADO, S. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. Revista Jurídica Trabalho E Desenvolvimento Humano, 3, 2020.

GÓMEZ, M. V. Europa quer obrigar empresas de aplicativos a regularizar 4 milhões de ‘falsos autônomos’. El Pais. Economia. Bruxelas, 9 dez. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2021-12-09/uniao-europeia-obrigara-empresas-de-aplicativos-a-regularizar-4-milhoes-de-falsos-autonomos.html

GONSALES, M. Entregadores em luta: Não começou em São José, não vai terminar em Jundiai. Insurgência. 19 out. 2021. Disponível em: https://www.insurgencia.org/blog/entregadores-em-luta-nao-comecou-em-sao-jose-nao-vai-terminar-em-jundiai

SANTANA, M; ANTUNES, R. A pandemia da uberização e a revolta dos precários. Resistências latino-americanas. América Latina. Le Monde Diplomatique Brasil, 2021. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-pandemia-da-uberizacao-e-a-revolta-dos-precarios/.