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Argentina legaliza o aborto

4 de janeiro de 2021

Legisladores debateram projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez que permite o aborto livre até a 14ª semana de gestação e deram vantagem da pauta apoiada pelo Governo Fernández

Mar Centenera e Federico Rivas Molina, El País Brasil, 29 de dezembro de 2020

É lei. Na Argentina, as mulheres que decidem interromper a gravidez podem fazê-lo de forma legal, segura e gratuita no sistema de saúde. O Senado aprovou na madrugada desta quarta-feira a legalização do aborto até a semana 14 da gestação por 39 votos a favor, 29 contra e uma abstenção. Enterrou assim a lei em vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou risco de vida da mãe. Nas ruas, a maré verde, a cor símbolo do feminista no país, explodiu de alegria.

Com a nova legislação, a Argentina está mais uma vez na vanguarda dos direitos sociais na América Latina. A partir desta quarta-feira é o primeiro grande país da região a permitir que as mulheres decidam sobre seus corpos e se querem ou não ser mães, como já fizeram Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade do México). Nas demais, há restrições totais ou parciais, como no Brasil. A iniciativa, aprovada na Câmara dos Deputados há duas semanas, prevê que as gestantes tenham acesso ao aborto legal até a 14ª semana após a assinatura do consentimento por escrito. Também estipula um prazo máximo de dez dias entre a solicitação de interrupção da gravidez e sua realização, a fim de evitar manobras que retardem o aborto.

A pressão de grupos religiosos e conservadores para manter a criminalização do aborto vinha sendo muito forte, mas não suficiente para repetir o resultado de 2018, quando o Senado rejeitou o projeto. Ainda assim, uma forte ofensiva legal é esperada. No país do Papa Francisco, a Igreja ainda tem muito prestígio. E não só porque trabalha em conjunto com o Estado no atendimento aos mais pobres, por meio de centenas de refeitórios populares. A proximidade de Francisco com o presidente Alberto Fernández, que acabou apoiando a legalização, é evidente, e a questão do aborto sempre foi um território incômodo de disputas. A praça em frente ao Congresso era uma prova disso. No lado celeste, exibindo as cores do país, onde os grupos antiaborto se reuniam, os padres celebravam missas diante de altares improvisados e os manifestantes carregavam cruzes e rosários, fotos de ultrassom e um enorme feto de papelão ensanguentado.

Ao contrário da Câmara dos Deputados, onde a aprovação foi folgada, o resultado no Senado mais conservador era mais incerto. Mas desde o início a expectativa acompanhou os verdes. Os números eram muito equilibrados e tudo dependia de um punhado de indecisos, que imediatamente passaram de cinco para quatro: um senador previu que votaria pró-aborto após um mínimo de ajustes no texto da lei. Horas depois, dois senadores e dois senadores também anunciaram seu voto positivo e elevaram os votos afirmativos para 38, ante 32 negativos. Os contrários, além disso, haviam perdido dois votos antes de partir: o do senador e ex-presidente Carlos Menem, 90, em coma induzido por uma complicação renal; e o do ex-governador José Alperovich, de licença até 31 de dezembro por denúncia de abuso sexual.

O triunfo do “sim” à lei logo se definiu, ainda antes da meia-noite, quando faltavam ainda quatro horas de discursos. “Quando eu nasci, as mulheres não votavam, não herdávamos, não podíamos ir à universidade. Não podíamos nos divorciar, as donas de casa não tínhamos aposentadoria. Quando nasci, as mulheres não eram ninguém. Sinto emoção pela luta de todas as mulheres que estão lá fora agora. Por todos elas, que seja lei”, declarou a senadora Silvia Sapag durante o debate, em uma síntese do tom dos discursos verdes.

“Queremos que seja lei para que mais nenhuma mulher morra por aborto clandestino. Por María Campos. Por Liliana. Por Elizabeth. Por Rupercia. Por Paulina. Por Rosario. Pelas mais de 3.000 mulheres que morreram por abortos clandestinos desde o retorno da democracia”, afirmava do lado de fora Jimena López, de 27 anos, com um cartaz que dizia “Aborto legal é justiça social”. Entre os que se opunham à lei, muitos criticaram o momento do debate, em meio à pandemia de covid-19, e outros citaram argumentos religiosos, como María Belén Tapia: “Os olhos de Deus estão olhando para cada coração neste lugar. Bênção se valorizamos a vida, maldição se escolhemos matar inocentes. Eu não digo isso, diz a Bíblia pela qual eu jurei”.

Nas províncias do norte do país, aquelas mais influenciadas pela Igreja Católica e grupos evangélicos, a maioria dos legisladores se opôs. Na capital argentina e na província de Buenos Aires, por outro lado, quase todos os representantes apoiaram a legalização, qualquer que fosse o partido.

Durante 99 anos, na Argentina foi legal interromper uma gravidez em caso de estupro ou risco para a vida ou saúde da mãe, como no Brasil (que também autoriza aborto em caso de anencefalia). Em todos os outros casos, era um crime punível com prisão. Ainda assim, a criminalização não foi um impedimento: de acordo com estimativas não oficiais, cerca de meio milhão de mulheres fazem abortos clandestinos a cada ano. Em 2018, 38 mulheres morreram de complicações médicas decorrentes de abortos inseguros. Cerca de 39.000 tiveram que ser hospitalizadas pela mesma causa.

“Obrigar uma mulher a manter sua gravidez é uma violação dos direitos humanos”, afirmou a senadora governista Ana Claudia Almirón, da província de Corrientes, no norte do país. “Sem a implementação de educação sexual integral, sem a previsão de anticoncepcionais e sem um protocolo de interrupção legal da gravidez, as meninas correntinas são obrigadas a parir aos 10, 11 e 12 anos”, denunciou Almirón.

“Em 2018 não alcançamos a lei, mas conscientizamos sobre um problema: hoje existem mulheres que abortam em condições precárias e insalubres”, afirma Mariángeles Guerrero, integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. “O aborto deixou de ser um assunto tabu que se falava em voz baixa e passou a ser um assunto que tinha de ser debatido politicamente para garantir condições seguras para a realização destes abortos”, acrescenta. Em 1921, quando a lei atual foi aprovada, a Argentina estava na vanguarda regional dos direitos das mulheres, mas a falta de debates posteriores a fez perder a disputa. Agora, o país recuperou o terreno perdido.

“Argentina mostra que é possível legislar sobre o aborto num ano catastrófico e de polarização política”

Para a cientista política e ativista argentina Giselle Carino, o resultado de uma construção coletiva que uniu mulheres de diferentes faixas etárias e distintos partidos políticos

Felipe Betim entrevista Giselle Carino, El País Brasil, 30 de dezembro de 2020

A Argentina acaba de fazer história nesta quarta-feira, ao tornar legal o aborto até a 14ª semana de gravidez. Para a cientista política polargentina Giselle Carino, diretora da organização International Planned Parenthood Federation Western Hemisphere Region (IPPF/WHR), sobre direitos reprodutivos, com sede em Nova York, o país mostra que “é possível legislar sobre esse tema em um ano terrível, catastrófico para o mundo, com uma economia devastada e um cenário político polarizado”. Para ela, que é ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos, além de colunista do EL PAÍS, a votação é o resultado de uma “construção coletiva” que uniu mulheres de diferentes faixas etárias —a chamada maré verde― e distintos partidos políticos. O Senado aprovou a nova lei por 39 votos a favor, 29 contra e uma abstenção (e quatro ausências). “Esperávamos ganhar, mas sempre por um ou dois votos de diferença. É uma margem ampla é significativa para temas como esse”.


Pergunta. A margem ampla de votos favoráveis confere ainda mais legitimidade à lei aprovada?

Resposta. Sim, e é preciso destacar que se trata de uma lei transversal, apoiada por todos os partidos políticos. Isso é muito importante porque há um cenário político muito polarizado. Mas o que confere legitimidade a essa lei é a constante presença, manifestação e influência das mulheres, que não deixaram em todo esse tempo de exercer pressão. Em temos de pandemia, isso é uma conquista para as mulheres argentinas. O que confere legitimidade a essa lei é uma base social de muito apoio. As pesquisas demonstram um grande apoio à ideia de que as mulheres não devem morrer ou ir presas ou sofrer por realizar um aborto clandestino. Existe uma clara ideia [na sociedade argentina] de que as mulheres têm o direito de poder decidir uma maternidade em um contexto de liberdade e autonomia. Paradoxalmente, as províncias com maior morte materna são os lugares com menos adesão à legalização. É preciso entender que este é um país católico, com um papa argentino, e evangélico. Não se pode negar a influência desses setores no debate público, o que faz com que [o resultado] seja ainda mais incrível.

P. O movimento feminista sai vitorioso dessa votação. Como é esse movimento hoje na Argentina? Ele é homogêneo? Ou tem forças de direita e de esquerda dentro dele?

R. O movimento feminista está fortemente vinculado à luta pela democracia e pelos direitos humanos depois da ditadura. Então, é um dos movimentos mais diversos que conheço e intergeracional como poucos. Em 2018 perdemos no Senado por poucos votos, mas podíamos observar nas ruas e nas vigílias que esse é um movimento que cruza todas as faixas etárias. Estão as avós, estão as filhas e estão as netas. É um encontro maravilhoso. As meninas mais jovens tiveram um papel central no convencimento de pais e irmãos, pessoas em princípio não associadas ao feminismo tradicional e que talvez não fossem aliados.

P. Num país em que a política acontece nas ruas, alguma liderança sai fortalecida politicamente e pode vir a se candidatar a algum cargo eletivo?

R. É um movimento tão amplo e tão dinâmico que no momento não posso apontar para uma pessoa. Muitos já fazem parte de partidos políticos também, há lideranças incríveis. E não tenho dúvidas de que essas mulheres podem chegar a ser qualquer coisa, porque levaram nas costas um dos temas mais difíceis. O aborto é uma discussão difícil em qualquer sociedade, sempre há visões diversas. Além disso, imagina em um contexto político polarizado como o argentino e de pandemia. Por isso dou a elas todo o crédito, porque sustentaram essa disputa e insistiram por mais de 15 anos para que chegar a esse resultado. Precisamos entender este resultado como um processo de construção coletiva como poucos, com uma variedade de lideranças de todas as idades. São mulheres maravilhosas que vão fazer da Argentina um país muito mais justo e mais igualitário em várias matérias.

P. Foi a primeira vez que um presidente argentino apoiou publicamente uma nova legislação. Qual foi o cálculo político do peronismo? Por que valeu a pena para o presidente Alberto Fernández se afastar do Papa nesse tema?

R. Não vivo na Argentina, então essa é uma pergunta é difícil de responder. Mas foi uma promessa de sua campanha eleitoral. Ele foi muito aberto e apoiou outros temas da agenda progressista, como a lei de identidade de gênero, o casamento igualitário... Então esta é uma consequência lógica de um processo de ampliação dos direitos. Não faço ideia de como foram as negociações políticas, mas tenho claro que havia um apoio transversal e as mudanças que fizeram foram mínimas. Tiveram uma estratégia muito boa de enviar este projeto junto com outro, a Lei dos 1.000 dias, que foi aprovada de maneira unânime nas duas Câmaras.

P. O que prevê essa Lei dos 1.000 dias?

R. Ficou muito claro que no debate anterior que uma das principais preocupações de opositores com opiniões razoáveis era a de que mulheres mais pobres se vejam na situação de precisar abortar por não ter nenhum sistema de proteção para que continuem a gestação. Então, essa lei estende a proteção social às mulheres grávidas e prevê uma assistência direta, de suporte, ao longo da primeira infância, até os 1.000 dias. O Governo enviou as duas leis juntas, um movimento espetacular e que faz sentido. As mulheres transitam de maneira diferente, de acordo com as circunstâncias pessoais e projetos de vida. E as leis devem se ocupar de proteger aquelas que querem interromper uma gravidez não desejada, mas também aquelas que desejam seguir com a gestação [mas não possuem condições econômicas para isso].

P. Por que há dois anos não foi possível a legalização no Senado e agora foi? O que mudou em tão pouco tempo?

R. Eu estava lá [em Buenos Aires] quando o Senado rejeitou a lei [em 2018]. Foi por muito pouco, e recordo que nesse momento estávamos muito decepcionadas com o resultado. Também recordo de conversar com garotas muito jovens que estavam na vigília esperando a decisão. E era claro nas ruas que as mulheres e a sociedade já haviam descriminalizado o aborto, e era claro que a lei não impedia a noção de que era um direito e que deveria ser reconhecido. Muito especialmente entre as mais jovens, aquelas que votaram pela primeira vez no ano seguinte. A mobilização social, e particularmente a mobilização das mulheres mais jovens que passaram a exercer um papel político, fez toda a diferença.

P. Acredita que pode ser o início de outras transformações políticas, na Argentina e no resto da América Latina, em que as mulheres sejam as protagonistas?

R. Não tenho nenhuma dúvida. Argentina mostra que é possível legislar sobre esse tema em um ano terrível, catastrófico para o mundo, com uma economia devastada e um cenário político polarizado, autoritarismos, retrocessos e dificuldades por todos os lados. Não tenho dúvidas de que vai repercutir em outros lados e outros âmbitos da América Latina. Há mudanças em curso no Brasil por parte do Supremo Tribunal Federal, na Colômbia há um movimento que busca retirar o aborto do código penal, no Chile o processo constitucional já começa com paridade de gênero... Haverá uma onda expansiva em toda a região em temas diversos, não apenas em saúde sexual e reprodutiva. O movimento na Argentina é interseccional, a luta das mulheres pelo aborto legal e seguro não está separada da luta pela igualdade de gênero, pela não violência... Aglutinou uma agenda de direitos. Por isso as mulheres argentinas falam de cidadania, de liberdade, de igualdade, entendendo que essa agenda do aborto legal e seguro é central, mas não é a única. Na região, pode estimular outros movimentos a seguir na luta. Se foi possível na Argentina nesse contexto, pode ser possível em outros lugares. A onda verde já teve um impacto positivo na região mesmo quando perdemos no Senado em 2018.

P. Quais são os impactos no cotidiano das mulheres argentinas?

R. Haverá um impacto enorme. Tivemos casos paradigmáticos de menores que foram estupradas e que em alguns casos não puderam fazer um aborto legal e seguro mesmo quando era permitido pela lei. Essa descriminalização legal e social terá um impacto enorme na hora de acessar os serviços. No caso da Argentina, a lei prevê que este procedimento é parte da saúde pública universal, segura e gratuita. Todas as mulheres em qualquer parte do país devem poder acessar esse serviço. Com certeza haverá dificuldades porque se trata de um país federal, mas existe uma clara vontade política de avançar com uma lei sobre a qual colocaram muito capital político. E não tenho dúvidas de que as mulheres da onda verde vão estar fazendo vigilância para que a lei se cumpra. Ela nos custou muito e é fundamental para a vida das mulheres.