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As utopias radicais de Ursula Le Guin continuam ressoando

8 de novembro de 2021

Ursula K. Le Guin, nascida neste dia em 1929, usava a ficção científica para explorar as falhas da sociedade capitalista - e os mundos alternativos que poderíamos construir em seu lugar.

Nick Hubble, Jacobin Brasil, 21 de outubro de 2021

Vocês não podem comprar a revolução, não podem fazer a revolução. Vocês só podem ser a revolução.” Este é o cerne da mensagem que o anarquista Shevek proclama para uma manifestação em massa de trabalhadores sindicalistas e socialistas reunidos na Praça do Capitólio na cidade de Nio Esseia no planeta de Urras no clássico romance utópico publicado por Ursula le Guin em 1974, Os despossuídos.

Na minha opinião, em vez de tentar desvendar a mistura de anarquismo, taoísmo e feminismo que permeia a visão de mundo de Le Guin, é melhor começar com esta passagem endereçada diretamente ao leitor se quisermos pensar sobre a relevância contínua de Le Guin para os socialistas. A ênfase aqui não é apenas na responsabilidade moral pessoal, embora essa seja uma característica constante da filosofia de Le Guin, mas na necessidade imperativa de integrar valores individuais e coletivos, recusando binariedades e hierarquias de pensamento fáceis.

Longe de ser uma celebração do mundo natal anarquista de Shevek, Anarres, Os despossuídos representa aquilo que o crítico Tom Moylan chamou de uma “utopia crítica”, explorando as possibilidades e as limitações de tal sociedade. Uma das maneiras pelas quais o romance é capaz de expandir seu quadro de referência além de uma investigação interna de um possível modelo de sociedade anarquista é por meio do enredo paralelo da viagem de Shevek a Urras.

Quando Shevek pergunta aos socialistas de Nio Esseia o que Anarres (que eles vêem como sua “lua”) significa para eles, eles respondem que toda vez que olham para o céu noturno, eles são lembrados de que existe uma sociedade sem governo, sem polícia, e sem nenhuma exploração econômica e que ela não pode ser descartada como uma mera fantasia utópica. Em outras palavras, tanto Shevek quanto os leitores de Le Guin percebem que a política não gira apenas em torno da adoção de práticas corretas, mas também depende de significados simbólicos para os outros.

Le Guin teve uma longa carreira e toda a sua obra vale a leitura, mas os livros que cimentaram sua reputação foram escritos entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, durante um período de ansiedade da Guerra Fria e de aguda crise social e cultural nas sociedades ocidentais. Dentro desses contextos, romances como Os despossuídos e A mão esquerda da escuridão (1969) ganharam reconhecimento imediato pela clareza da visão pela qual diagnosticavam os males da época e ofereciam visões de valores e sociedades alternativos que pareciam alcançáveis através do trabalho duro e de um auto-exame convicto. Os romances foram rapidamente estabelecidos como clássicos do gênero, mas essa não é necessariamente uma vantagem a partir da perspectiva de hoje.

Em sua introdução a uma reedição recente de A mão esquerda da escuridão, China Miéville observa que “os livros mais azarados são aqueles que são ignorados ou esquecidos. Mas guarde um pensamento também para aqueles fadados a se tornarem clássicos. Um clássico é muitas vezes um volume que todos pensam que conhecem.” Existe algum desincentivo maior para se ler um livro do que o conhecimento de que ele é visto como uma obra valiosa e inovadora, importante para a sua época? Para Miéville, a desfamiliarização do gênero realizada no romance o torna inquestionavelmente um precursor das teorias e movimentos queer de gênero e fluidez sexual do nosso presente no século XXI, mas isso ainda deixa em aberto o pensamento de que poderia ser melhor ler livros mais recentes.

De qualquer maneira, como ele reconhece, A mão esquerda da escuridão nem sempre foi visto sob uma luz tão radical. O uso universal que Le Guin faz de pronomes masculinos para denotar uma sociedade sem uma divisão sexual permanente e, portanto, sem uma divisão de gênero, levou Joanna Russ, entre outros, a criticar o romance por na prática conter apenas homens. Por muitos anos, persistiu a ideia de que os romances de Le Guin eram sinceros e bem-intencionados, mas não estariam na vanguarda radical do campo.

Uma maneira de desafiar essa percepção residual de Le Guin como escritora de clássicos valiosos, mas embotados, é considerar um romance menos célebre escrito no mesmo período, A curva do sonho (1971). Em vez da abordagem comedida e repleta de nuances pela qual ela é geralmente conhecida, este livro é estruturado no estilo excêntrico e irrestrito de Philip K. Dick como um passeio selvagem por uma sequência de realidades em colapso.

O protagonista do romance, que atende pelo ressonante nome George Orr, tem sonhos indesejados que mudam a realidade. Seu psiquiatra, Haber, ao invés de tentar curá-lo, busca usar esse poder indiretamente para transformar o mundo para o benefício da humanidade. Claro, toda tentativa de transformação para o bem é sempre acompanhada por alguma consequência monstruosa inesperada.

[Os próximos 3 parágrafos apresentam detalhes do enredo que podem ser vistos como spoilers de A curva do sonho]

Por exemplo, ao tentar resolver o problema de superpopulação, Haber instrui Orr a sonhar com um mundo cheio de espaço por onde se mover – e então este sonha com uma pandemia e acorda para descobrir que “reduziu” a população mundial em seis bilhões de vidas. Como Haber começa a perceber, Orr só consegue sonhar com “conceitos utópicos baratos, ou talvez conceitos anti-utópicos carregados de cinismo”.

Por um lado, é uma piada às custas do homônimo de Orr, George Orwell: em uma das muitas histórias alternativas do livro, a Constituição dos EUA é reescrita em 1984 para formar um estado policial. No entanto, também há algo de valioso na resistência de Orr à vontade de poder de Haber. Quando este último exige a paz mundial, Orr sonha que alienígenas pousaram na lua, fazendo com que os povos da Terra se unam em oposição. Então, quando ordenado a sonhar que os alienígenas deixaram a lua, Orr sonha que eles invadem a Terra.

Os alienígenas telepatas ensinam a Orr que “tudo sonha”, até as pedras, e que, portanto, a única maneira de viver em harmonia com o que de outra forma seria o caos é sintonizar-se conscientemente com o todo. O romance termina com uma resolução digna de Philip K. Dick, na qual Orr, não mais atormentado pelos seus sonhos efetivos, agora está feliz trabalhando com o projeto de utensílios de cozinha alienígena. É difícil não ver esse final como uma brincadeira com a ideia de “trabalho alienado”: seria uma espécie de “negação da negação” se o trabalho fosse conduzido para benefício mútuo com alienígenas com os quais o trabalhador estivesse telepaticamente sintonizado.

A curva do sonho ilustra a importância de pensar sobre livros esteticamente, tanto quanto  julgá-los ideologicamente. Como observou o crítico Fredric Jameson, o romance pode ser lido como uma expressão da ansiedade liberal em face da transformação revolucionária, mas, esteticamente, está preocupado com seu próprio processo de produção.

As tentativas mal sucedidas de Orr em sonhar com a Utopia refletem as tentativas de Le Guin de escrever a Utopia; um processo que é, dessa maneira, reconhecido como sendo impossível. Ainda assim, na própria maneira como o romance explora as contradições em se tentar produzir uma Utopia, a narrativa é escrita – e, de alguma forma, uma versão da Utopia acaba sendo produzida.

Embora nem Os despossuídos nem A mão esquerda da escuridão sejam simplesmente sátiras divertidas, compará-los com A curva do sonho abre algumas possibilidades para se pensar neles como mais do que apenas clássicos do seu tempo. Por exemplo, podemos enxergar a aparente incongruência no uso universal de pronomes masculinos em A mão esquerda da escuridão como uma exposição deliberada da impossibilidade de se narrar o gênero fora da estrutura binária à qual nossa linguagem frequentemente nos limita.

De maneira semelhante, Os despossuídos especificamente coloca em primeiro plano a impossibilidade temporal de se pensar o futuro no interior da mentalidade do presente. Em outro momento-chave de discurso em segunda pessoa falando diretamente ao leitor, Shevek diz ao embaixador terráqueo em Urras: “Você não compreende o que é o tempo”.

O que experimentamos como o presente não é real ou estável: é o produto de uma mudança constante. Somente a realidade do passado e do futuro, mantida na memória e nas intenções humanas, torna o presente real. A ficção de Le Guin não só simboliza a possibilidade de mudanças para os leitores socialistas, portanto: ela também fornece uma ideia do próprio grau de trabalho mental necessário para compreendermos a diferença radical que seria acarretada por essas mudanças.

é professor de inglês moderno e contemporâneo na Brunel University. Seu último trabalho, Growing Old with the Welfare State, foi publicado pela Bloomsbury.

Ursula K. Le Guin, construtora de mundos

Nicole M. Aschoff, Jacobin Brsil, 21 de outubro de 2021. Tradução de Everton Lourenço

Ursula K. Le Guin nasceu neste dia em 1929. Suas obras pressionavam os leitores a expandirem sua visão sobre o que é possível - e isso é central para a luta socialista.

Ursula K. Le Guin era amada. Seus romances, poemas, suas reflexões sobre seu gato Pard e suas exortações para que se fale a verdade na cara do poder a tornaram querida por milhões de pessoas. Escrever um tributo adequado a uma pessoa como essa é uma tarefa difícil, até porque, embora eu seja uma fã de longa data de Le Guin, não sou das mais obcecadas.

Forcei agressivamente meus amigos não iniciados a lerem A Mão Esquerda da Escuridão, mas não me lembro com qualquer nitidez dos meandros do Ciclo de Hain, e além de saber que Le Guin era uma Oregoniana com pais e hobbies interessantes, não me debrucei sobre os detalhes biográficos de sua vida.

Não obstante, me sinto compelida a me juntar ao coro de tristeza e lembrança. As histórias de Ursula Le Guin deram forma à minha imaginação sociológica de maneiras só rivalizadas pelas minhas primeiras incursões no campo da Economia Política. Na verdade, minha descoberta de Le Guin coincidiu com minha descoberta do marxismo; as duas formas de pensar pareciam perfeitamente complementares.

Minha crença na compatibilidade entre elas resultava em parte das críticas de Le Guin ao capitalismo e a todos os sistemas sociais enraizados em coerção e opressão. Ao longo de sua vida, ela não manteve em segredo suas visões políticas, fosse a oposição à Guerra do Vietnã e ao colonialismo ou seu corajoso discurso na premiação do National Book Awards em 2014, no qual condenou as corporações vorazes que passaram a dominar o mundo editorial, declarando: “Nós vivemos no capitalismo; seu poder nos parece inevitável. O mesmo se dava com o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e transformado pelos seres humanos.”

Mas o apelo da visão de Le Guin para mim era mais profundo do que sua visão política – eu me apaixonei pelo seu método.

Le Guin era uma materialista. O vínculo que ela estabeleceu entre o capitalismo e os reis sugere esse materialismo – uma ênfase na História que Le Guin compartilhava com materialistas históricos convictos, como Ellen Meiksins Wood e E.P. Thompson.

Ellen Meiksins Wood – outra grande intelectual que partiu cedo demais – definia o materialismo histórico como uma forma de ver o mundo que:

[…] não permite nenhuma sequência pré-ordenada ou unilinear, e na qual […] o capitalismo – ou qualquer outro modo de produção – é algo que precisa ser explicado, não pressuposto, e que busca explicações não em alguma lei natural trans-histórica, mas nas relações sociais, contradições e conflitos historicamente específicos.

Le Guin era mestre em enxergar e construir relações sociais. Ela era uma construtora de mundos.

Ela poderia esculpir um mundo em poucas páginas – Aqueles Que Abandonam Omelas – ou através de um conto épico – Os Despossuídos. Seus mundos eram, a meu ver, projetados com o olhar de uma materialista histórica; cada um deles capturava as relações sociais, contradições e conflitos que definem a sociedade. As batalhas pessoais de seus muitos protagonistas – Tenar, Selver, Ai – contra o racismo, sexismo, colonialismo e a tradição encapsularam a dinâmica da vida real entre estrutura e agência de uma maneira incomparável.

O interesse de Le Guin na colisão de biografia e história fomentou uma interrogação que atravessou toda a sua carreira sobre o desejo humano de dar forma à sociedade. Em Floresta é o Nome do Mundo, a sociedade é despedaçada por colonos brutais vindo da Terra; em A Mão Esquerda da Escuridão vemos as maquinações do “soft power” e da diplomacia; e em A Curva do Sonho e Os Despossuídos, Le Guin se engalfinha com a questão do desejo pela utopia.

Em um momento no qual a profunda crise e as contradições do capitalismo neoliberal têm despertado um retorno do impulso utópico (e distópico), o tratamento de Le Guin sobre o assunto é mais relevante do que nunca. Tanto A Curva do Sonho quanto Os Despossuídos (com o seu subtítulo adotado pelos fãs como “Uma Utopia Ambígua”) são contos de advertência, destacando o conflito entre desejos utópicos, historicidade e estruturas sociais.

A Curva do Sonho apresenta as tentativas de um psiquiatra ambicioso de usar os “sonhos eficazes” do protagonista (que transformam a realidade) como atalhos para resolver os profundos problemas sociais de racismo, colapso ambiental, pobreza e guerra. Os resultados são horríveis: guerra nuclear, autocracia, ataque alienígena e pele cinza para todos. Os Despossuídos explora a vida em uma colônia anarco-sindicalista no planeta estéril Anarres; o romance solapa fantasias utópicas prescritivas com questões espinhosas sobre ambição, coletivismo e poder.

Ambas as histórias estão enraizadas em uma visão de mundo materialista, destacando como nossas interações com a natureza produzem as condições de vida. Não há um desdobramento ou ponto final; há uma visão e uma luta contínua por algo melhor – uma visão de mundo que ecoa a visão política de figuras da vida real como Ella Baker.

O objetivo do materialismo histórico sempre foi interpretar o mundo para poder transformá-lo. A romântica em mim acredita no poder da arte, segue talhando a noção de que mundos criados pela ficção especulativa carregam a possibilidade de mudar para melhor o mundo em que vivemos.

No mínimo do mínimo, histórias como as contadas por Le Guin destacam a indissociabilidade entre a cultura e o capitalismo. Há muito tempo, em um trem público para o norte de Nova Jérsei, vi um pôster de uma minissérie do canal Sci-Fi baseada nos livros do Ciclo de Terramar de Le Guin. Foi emocionante – até que percebi que o cara de cabelos loiros e olhos azuis no meio do pôster era para ser Ged.

Ged não deveria ser branco. Incomodava Le Guin o fato da literatura infantil e juvenil ser quase desprovida de protagonistas negros e pardos. (De acordo com Centro Cooperativo de Livros Infantis, nove em cada dez livros infantis publicados nos EUA em 2013 tinham um protagonista branco.) Ela queria expandir a noção de quem poderia ser um herói, então ela escreveu Ged como um garoto com “pele marrom avermelhada”.

Os produtores da minissérie aparentemente estavam mais preocupados com o lucro do que com essas aspirações, então escalaram um ator branco. Le Guin ficou furiosa. Ela publicou um artigo desautorizando a série, dizendo aos leitores que o esquema de cores em seus livros era “consciente e deliberado” e que “Ged com um rosto branco [era] uma mentira, uma traição – uma traição do livro e do seu leitor em potencial.”

Le Guin levava a sério seu papel como criadora de mundos e foi uma crítica veemente do fato de que a fantasia e a ficção científica estavam preocupadas principalmente com “as aventuras de pessoas brancas em mundos brancos”. A ficção especulativa continua tendo de enfrentar o racismo e o sexismo, mas Le Guin, ao lado de grandes nomes como Octavia Butler, forçou o gênero a uma direção nova e mais radical.

A visão materialista de Le Guin e sua apaixonada interrogação da sociedade lhe permitiram criar verdadeiras obras-primas, elevando a ficção e, o mais importante para mim, a nossa visão do que é possível.

Ela fará muita falta.

faz parte do conselho editorial da Jacobin. Ela é autora dos livros "The New Prophets of Capital e The Smartphone Society: Technology, Power" e "Resistance in the New Gilded Age", prestes a ser publicado.