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Asad Haider: sobre Gramsci, a consciência e a organização

O intelectual paquistanês-americano questiona como os termos otimismo e pessimismo entram em nossa discussão usual

26 de outubro de 2020

A frase "o pessimismo do intelecto, otimismo da vontade" parece expressar a oposição entre pessimismo e otimismo, o intelecto e a vontade. Mas, como mostra Asad Haider, os termos como ela entra em nossa discussão usual estão mal colocados.

Asad Haider, Viewpoint Magazine, 28 de maio de 2020. Tradução de Hudson Valente.

Em abril de 1920, a Itália estava em crise. No mês anterior, na fábrica de automóveis Fiat em Turim, os patrões haviam atrasado o relógio da fábrica para o horário de verão sem pedir permissão aos conselhos democráticos de trabalhadores que se haviam espalhado pelas fábricas da Itália. Uma cadeia de paralisações de trabalho havia surgido em protesto. Mas à medida que as tensas negociações continuaram, com um bloqueio maciço por parte dos patrões, tornou-se claro que o que realmente estava em jogo era a existência dos próprios conselhos de fábrica [1]. A cidade inteira entrou em greve geral em defesa dos conselhos, que Antonio Gramsci aplaudiria mais tarde naquele ano em um relatório para o Comintern como “um grande evento, não só na história da classe trabalhadora italiana, mas também na história do proletariado europeu e mundial”, porque “pela primeira vez se viu que um proletariado lutava pelo controle da produção sem ser forçado a esta luta pelo desemprego e pela fome”. [2]

Este foi um ponto alto no Biennio Rosso italiana, os “biênio vermelho” de 1919-1920, que viu não apenas greves em massa, mas também ocupações de fábrica por parte dos conselhos de trabalhadores, que experimentaram a autogestão da produção. Emergindo durante os anos vermelhos, L'Ordine Nuovo (A Nova Ordem), que foi tanto um jornal quanto uma tendência política que Gramsci ajudou a fundar em Turim dentro do Partido Socialista Italiano, refletiu sobre o importante significado dessas lutas. Nas páginas de L'Ordine Nuovo, Gramsci introduziu uma frase que ele repetiria ao longo de sua vida: “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” [3].

A tendência da L'Ordine Nuovo foi baseada no modelo da Revolução Russa e viu os conselhos de fábrica, que Gramsci entendeu como o equivalente dos soviets russos, como a base da revolução vindoura, e do estado operário que estabeleceria essa revolução. Depois que as burocracias do Partido Socialista e seu sindicato afiliado (Confederação Geral do Trabalho) impediram o desenvolvimento da greve geral em uma direção revolucionária, uma contradição que ressurgiria em torno das ocupações de fábrica no outono, a tendência de Gramsci, junto com outros elementos à esquerda do partido, se separou para fundar o Partido Comunista da Itália em 1921. Em reação à convulsão dessas lutas e seu potencial emancipatório, a violência fascista se intensificou e levou à ascensão de Benito Mussolini. O regime fascista tornou ilegal o Partido Comunista, e em 1926 Gramsci foi preso. Ele morreria na prisão em 1937.

“Pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” tornou-se um dos clichês clássicos da política. Sugere que se deve ter um claro reconhecimento de quão ruins são as coisas, sem perder a esperança; significa a vontade consciente de mudar o mundo.
 

Entretanto, pode ser prudente suspeitar de algo em um slogan que parece tão tranquilizador, aplicável a todo contexto sem modificações. O fato de ser atribuído à Gramsci não ajuda muito. Talvez por causa da dificuldade e complexidade dos escritos de Gramsci, freqüentemente atribuídos à necessidade de escrever esotericamente sob o olhar atento do censor prisional fascista, comentadores contemporâneos às vezes se apropriaram dela de uma maneira vaga e fora de contexto. É comum ver Gramsci ser invocado para defender programas gradualistas de reforma, com a linguagem da guerra de posição, ou vê-lo tornar-se um crítico cultural que defendia a contra-hegemonia na academia; seu ardente entusiasmo pela insurreição dos conselhos de trabalhadores parece desaparecer.

Hoje em dia é preciso ter coragem, mas sem fingir que o coronavírus e a mudança climática não são reais. Enquanto os trabalhadores da Fiat entram em greve por causa dos riscos de segurança do coronavírus, forçando a administração a fechar fábricas na Itália e na América do Norte, que autoridade melhor do que Gramsci, martirizado pelo fascismo e escrevendo entre duas guerras mundiais devastadoras, para dar sua aprovação à nossa tentativa desesperada de otimismo?

Entretanto, removido do contexto muito específico no qual ele inicialmente escreveu estas palavras, e dos contextos muito diferentes nos quais ele as repetiria mais tarde, este slogan nada mais parece do que um cartaz na parede de uma sala de aula de uma escola secundária.

 Partido

A frase não é originalmente de Gramsci; foi tirada do escritor francês de esquerda Romain Rolland (que mais tarde fez campanha pela libertação de Gramsci), em uma resenha de 1920 do romance de Raymond Lefebvre O Sacrifício de Abraão [4]. Gramsci usou pela primeira vez a frase em seu “Discurso aos Anarquistas”, publicado na L'Ordine Nuovo em abril de 1920, justo quando a situação em Turim acelerava em direção a uma greve geral.

Deve-se notar desde o início que os anarquistas tinham desempenhado um papel absolutamente fundamental na organização das greves e dos conselhos, e tinham alguns dos militantes mais eficazes e dedicados do movimento [5]. Ao defender a superioridade da teoria marxista, Gramsci teve que se esforçar bastante. O anarquismo, argumentou, em sua oposição abstrata ao Estado, não entendia que a verdadeira liberdade dos trabalhadores só viria do estabelecimento de um Estado operário, a forma determinada de ação humana que tinha sido demonstrada e garantida pela Revolução Russa. Ele introduziu o lema “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” especificamente para resumir “a concepção socialista do processo revolucionário” [6]. Segundo os anarquistas, o “pessimismo do intelecto” de Marx considerava as condições dos trabalhadores tão miseráveis que a única mudança possível viria através de uma ditadura autoritária; mas Gramsci respondeu que o “pessimismo socialista” tinha sido confirmado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial e pela extrema pobreza e opressão que se seguiu. O proletariado, que estava geograficamente disperso e impotente por causa de sua privação, formou sindicatos e cooperativas por pura necessidade, não como uma ação política livre. Sua atividade era totalmente determinada pelo modo capitalista de produção e por seu estado. Era portanto pura ilusão, concluiu ele, esperar que essas massas oprimidas e subjugadas “expressassem sua própria vontade histórica autônoma” [7].

Em outras palavras, o pessimismo do intelecto mostrou não apenas que a situação era ruim, mas que a base para a ação revolucionária ainda não existia. Só poderia ser provocado por “um partido bem organizado e disciplinado que possa atuar como estímulo à criatividade revolucionária” [8]. O otimismo da vontade, portanto, não era simplesmente a crença de que era possível melhorar as coisas, mas uma forma de ação muito específica e concreta: o partido de vanguarda e sua missão de estabelecer um estado de trabalhadores e trabalhadoras.
 

Gramsci, em outras palavras, operava diretamente dentro da problemática leninista. Hoje superamos a escolha forçada entre a caricatura deste problema ou a afirmação dogmática de sua supremacia. Ao contrário, podemos tentar situá-lo historicamente e compreender sua validade e limites. Como escreve Christine Buci-Glucksmann em seu estudo clássico, Gramsci e o Estado, enfatizando o caráter do pensamento de Gramsci como uma “continuação do leninismo, sob diferentes condições históricas e com diferentes circunstâncias históricas”: “dar continuidade a Lenin significa uma relação produtiva e criativa que nunca pode ser esgotada na mera aplicação do leninismo por estudantes acadêmicos, mas implica sua tradução e desenvolvimento. Esta nuance é de fundamental importância, sublinhando o fato de que a única ortodoxia permitida é a da revolução” [9].

Em 1902 com O que fazer, Lenin repetiu, para as condições russas, a ortodoxia do Partido Social Democrata Alemão. De acordo com esta ortodoxia, se deixados à sua própria sorte, os trabalhadores se limitariam às lutas imediatas e cotidianas para melhorar suas condições. A consciência de que esta luta de classes tem que ser levada mais além, até o nível da conquista do poder político, teria que ser introduzida de fora, pelos intelectuais. A política não viria da ação espontânea dos trabalhadores/as, mas da organização de um partido de vanguarda de revolucionários e revolucionárias.

A articulação de Lenin desta tese gerou discrepâncias, para dizer o mínimo. A teoria ortodoxa viu este processo como resultado de leis históricas, atraindo cada vez mais pessoas para a classe trabalhadora industrial, reunindo-as em sindicatos e, eventualmente, permitindo-lhes alcançar uma maioria no parlamento. Os escritos de Lênin, de O que fazer? até O Estado e a Revolução, em 1917, mostram-no formulando uma concepção de política que não pode ser reduzida a leis históricas. Lênin apesentou a tese de que a política não está sempre presente, mas que se desenvolve sob condições específicas. Como disse Gramsci em seu primeiro texto voluntarista, A Revolução Contra o Capital, “isto constituiu uma refutação da interpretação mecanicista prevalecente no marxismo”, que, “contaminada por incrustações positivistas e naturalistas”, insistiu que “os eventos deveriam seguir um rumo pré-determinado”. A revolução bolchevique, argumentou Gramsci, demonstrou a necessidade de “agentes ativos” na política, “para garantir que os eventos não estagnem, que o impulso em direção ao futuro não se detenha” [10].
 

A primeira condição política leninista foi o partido de vanguarda, aquele grupo de militantes dedicados que apagaria a distinção entre intelectuais e trabalhadores em uma liderança coletiva. O partido seria capaz de reconhecer o potencial revolucionário dos movimentos espontâneos e poderia proporcionar a eles a consciência socialista para realizar esse potencial. Mas em 1917, Lênin percebeu que o partido existia ao lado de outro espaço na política: o soviete. Antecipando a explicação de Gramsci sobre o papel político do conhecimento, podemos dizer que este novo espaço político foi além da inteligência restrita dos militantes que compunham o partido de vanguarda, vai para a inteligência de massa dos conselhos radicalmente democráticos, os sovietes. A teoria ortodoxa procurou alcançar o Estado através da via parlamentar e utilizá-lo como um instrumento para os interesses da classe trabalhadora. Na visão de Lenin, os sovietes tomariam o lugar do Estado anteriormente existente, permitindo que as pessoas comuns participassem da administração da sociedade. O soviete seria a forma de um verdadeiro autogoverno, uma forma de democracia mais elevada do que qualquer forma de democracia parlamentar que existia anteriormente.

Em vez disso, o que aconteceu é que a autoridade centralizada do partido tornou-se o Estado e subordinou a inteligência de massas dos sovietes ao princípio que só o partido pensa. Lênin, na posição paradoxal do estado revolucionário, exigiu uma sociedade na qual “toda cozinheira pode governar” (para adotar a interpretação otimista da C.L.R. James da frase de Lênin), mas na prática foi o partido-estado que reinou.

Para o resto do século 20, a política emancipatória teria que se referir a esta experiência exemplar na qual o poder político burguês foi revogado pelo partido tornando-se o Estado. O leninismo foi um momento na história da política emancipatória, mas ao longo de sua história ele encontrou os limites do partido-estado; ainda estamos em busca de uma política emancipatória que vá além do partido-estado.
 

Hoje o lema de Gramsci é muito repetido, mas parece ter se desligado completamente das questões estratégicas e organizacionais subjacentes que enquadraram o uso que Gramsci fez da frase em L'Ordine Nuovo, onde ela foi repetida várias vezes com referências constantes aos problemas organizacionais do Partido [11]. Quando Gramsci invocou pela primeira vez o “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” em 1920, na Rússia o partido já havia deslocado a inteligência das massas dos sovietes. O entusiasmo de Gramsci pelos sovietes junto com sua insistência na rigidez do partido de vanguarda - com o último deslocando cada vez mais o primeiro em seu pensamento entre as derrotas em Turim e a formação do Partido Comunista - registraram um dilema que ele revisará e esclarecerá posteriormente em seus Cadernos do Cárcere [12].

O que torna Gramsci tão confuso de ler e permite que sua escrita seja tão facilmente apropriada de formas irreconciliáveis entre si é também, potencialmente, uma fonte de grande sacadas, se entendermos as tensões em seu pensamento como aspectos de uma realidade contraditória em vez de simplesmente obstáculos extrínsecos à interpretação. Para compreender o desenvolvimento posterior deste lema por Gramsci, teremos que investigar os conceitos relevantes dos Cadernos do Cárcece, informados pelas análises de sua edição crítica, e interpretar o que está teórica e politicamente em jogo nas concepções mutáveis de pessimismo e otimismo de Gramsci; precisamos examinar as categorias de intelecto e vontade às quais eles estão ligados.

Intelecto

Um tema recorrente nos Cadernos do Cárcere de Gramsci é que todas as pessoas são “filósofos” ou “intelectuais”, embora a divisão do trabalho manual e intelectual na sociedade faça com que se reconheça que apenas pequenos grupos de pessoas são capazes deste pensamento [13]. Para Gramsci nos Cadernos do Cárcere, enquanto esta divisão existisse, a tarefa daqueles socialmente reconhecidos como intelectuais seria construir uma cultura revolucionária e assumir uma liderança revolucionária: “não há organização sem intelectuais, ou seja, sem organizadores e líderes; em outras palavras, sem que o aspecto teórico do nexo teórico-prática se distinga concretamente pela existência de um grupo de pessoas especializadas na elaboração conceitual e filosófica de ideias” [14].

Ao mesmo tempo, no entanto, o papel das organizações políticas seria também o de cultivar “inteligências” de massas [15]. Este termo peculiar, que parece estar suspenso entre “inteligência” e “intelectualidade” nas traduções predominantes, questiona a relação entre os dois. Mas apesar de sua aparente obscuridade, como argumenta Panagiotis Sotiris em um brilhante comentário, a noção de “intelligentsia” nos remete a “questões muito concretas sobre organização e seu papel na transformação de modos de pensar, no confronto com ideologias antagônicas, na articulação de práticas de aprendizagem”. Ela nos remete aos problemas de produção de conhecimento envolvidos na “elaboração de estratégias” [16].

A concepção de Gramsci sobre a intelligentsia de massas repensa a questão da liderança política. Para seguir outra linha de seu raciocínio nos Cadernos do Cárcere, o fato de haver líderes e lideranças é um fato inevitável da política; mas a questão é se a liderança é orientada para preservar esta distinção para a eternidade, ou para gerar “as condições nas quais esta divisão não seja mais necessária” [17]. É por isso que, para Gramsci, “inspirar uma massa de pessoas a pensar coerentemente e de forma igualmente coerente sobre o mundo real hoje é um evento muito mais importante e ‘original’, ‘filosófico’, do que a descoberta por algum ‘gênio’ filosófico de uma verdade que permanece propriedade de pequenos grupos de intelectuais” [18].

Temos que distinguir a abordagem de Gramsci daquelas ideologias do chamado marxismo ocidental que giram em torno da consciência. Como aponta Buci-Glucksmann, para estas ideologias a “função específica” do intelectual é dar à classe trabalhadora “sua homogeneidade, unidade e visão do mundo”. Pelo contrário, a “recusa de Gramsci de uma possível dissociação entre a consciência de classe filosófica e seu verdadeiro agente, o proletariado, descarta qualquer problema dos intelectuais que os transformariam em depositários da consciência de classe (como no jovem Lukács) ou fiadores da crítica do modo de produção capitalista”. É por isso, explica ela, para Gramsci não são “os intelectuais como tais que permitem que uma classe subordinada se torne uma classe governante e dominante, uma classe hegemônica”. Ao contrário, “esta função é desempenhada pelo Príncipe moderno, o partido político de vanguarda como base a partir da qual a função intelectual deve ser novamente considerada, juntamente com a relação entre pesquisa e política, e sua tensão recíproca” [19].

Como Peter Thomas aponta no The Gramscian Moment, seu estudo detalhado e rigoroso dos Cadernos do Cárcere, isto já estava em jogo no biênio vermelho. L'Ordine Nuovo foi “uma experiência paradigmática de jovens intelectuais procurando redefinir sua relação com a classe trabalhadora em termos ativos e pedagógicos, uma relação na qual havia mais ‘educados’ do que ‘educadores’” [20].

Em suas reflexões de 1930 sobre a experiência de Turim na prisão, Gramsci respondeu às acusações de que o movimento era espontâneo. Ele respondeu insistindo “na criatividade e na solidez da liderança que o movimento adquiriu”. Não era uma liderança “abstrata” e “não consistia na repetição mecânica de fórmulas científicas ou teóricas”. Crucialmente, ele “não confunde política - ação real - com reflexão teórica”. Ao contrário, a liderança do movimento de Turim “correspondia a pessoas reais em relações históricas específicas, com sentimentos específicos, modos de vida, fragmentos de visões de mundo, etc., que eram o resultado das combinações espontâneas de um determinado ambiente de produção material com o encontro fortuito de elementos sociais díspares dentro desse mesmo ambiente”. Esta “espontaneidade”, argumentou Gramsci, “foi educada, foi-lhe dada uma direção”. A educação e a direção do movimento buscaram “unificá-lo através da teoria moderna”, mas o fizeram “de uma forma viva e historicamente eficaz”. Ao falar da “espontaneidade” do movimento, seus líderes enfatizaram seu caráter historicamente necessário e “deram às massas uma consciência teórica [...] de si mesmas como criadores de valores históricos e institucionais, como fundadores de estados” [21].
 

Gramsci deslocou a questão da consciência para a do conhecimento e sua constituição material em formas organizacionais. Esta é a originalidade de sua leitura de Lenin que, Buci-Glucksmann enfatiza, ele descreve como “gnoseológica [22]. Thomas contrasta explicitamente isto com a “epistemologia”, que seria o problema abstrato da produção do conhecimento. A “gnoseologia", como usa Gramsci, “refere-se mais geralmente à realidade concreta [Wirklichkeit] das relações do conhecimento humano” [23].

A reinterpretação de Gramsci do leninismo em termos da realidade concreta das relações de conhecimento humano estrutura sua compreensão da política do intelecto. No nível metodológico, Gramsci examinou a clássica afirmação marxista de que as pessoas “tomam consciência de conflitos estruturais no nível das ideologias”. Isto deve ser entendido, argumentou, “como uma afirmação de valor gnoseológico e não simplesmente psicológico e moral”. A “maior contribuição teórica” de Lênin ao marxismo, o “princípio teórico-prático da hegemonia”, tinha “significado gnoseológico”. Lênin, escreveu Gramsci, “desenvolveu a filosofia como uma filosofia, tanto quanto desenvolveu a doutrina e a prática política”. Ele colocou o conhecimento no que Gramsci chamou de “aparelho hegemônico” que, “na medida em que cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das formas de consciência e dos métodos do conhecimento: é um fato do conhecimento, um fato filosófico” [24].

Ao incorporar o conhecimento ao conceito de “aparelho hegemônico”, argumenta Buci-Glucksmann, Gramsci diferenciou claramente a teoria da hegemonia de uma pura teoria da consciência ou da cultura. Ele destacou sua realidade material “como um conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas e agentes (incluindo os intelectuais)”. Entretanto, isto não foi o mesmo que um estudo liberal das instituições estáticas, “porque o aparelho hegemônico se cruza com a primazia da luta de classes” [25].

Elaborar sbre este ponto, Thomas acrescenta que “o aparato hegemônico de uma classe é a ampla gama de instituições articuladas (entendidas no sentido mais amplo) e práticas, desde jornais a organizações educacionais a partidos políticos, através das quais uma classe e seus aliados engajam seus oponentes em uma luta pelo poder político”. Nas relações de poder específicas entre as classes, “o potencial de uma classe para o poder político depende, portanto, de sua capacidade de encontrar formas institucionais adequadas à diferença específica de seu próprio projeto hegemônico particular” [26].

A totalidade do trabalho de Gramsci nos aponta, em outras palavras, para o problema de encontrar novas formas organizacionais, partidos políticos que são “experimentadores históricos” com novos tipos de conhecimento [27]. Neste contexto, Sotiris destaca a imagem gramsciana do partido como um “laboratório” em vez de “o Estado maior do exército proletário”. Gramsci aponta mais para “um processo político para a produção de conhecimento, estratégias, táticas e formas de intelectualidade”. Assim, da perspectiva de Gramsci, o partido não é uma estrutura pré-determinada que subordinaria vários movimentos sociais à sua autoridade. É antes o nome do laboratório no qual, como diz Sotiris, uma “pluralidade de processos, práticas, resistências e coletividades” pode ser unificada em um “projeto hegemônico comum”, um projeto que combina “formas novas e originais de luta, de resistência, bloqueio, reapropriação e emancipação”. Esta “unificação potencial requer pensar no partido ou organização como um laboratório que produz intelectuais, estratégias, táticas, mas também como uma prática hegemônica. É um encontro constante entre práticas, experiências e conhecimentos” [28].

Voltemos à primeira declaração de Gramsci de “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”. Deve ficar claro que Gramsci estava de fato lidando, embora de forma precipitada e triunfalista, com a tensão entre o reconhecimento subjacente de que todas as pessoas são intelectuais e as condições para a política nas quais aqueles com a função social de intelectuais desempenham um papel de liderança. A continuidade destas questões no pensamento político em evolução de Gramsci fornece o contexto essencial para compreender sua demonstração de pessimismo e otimismo nos Cadernos do Cárcere, onde ele é mais frequentemente encontrado.

Vontade

A fim de compreender o reaparecimento da frase nos Cadernos do Cárcere, passaremos teoricamente do intelecto à vontade, que não é apenas um eixo chave do complexo desenvolvimento do pensamento de Gramsci, mas também um pilar da repetição contemporânea do slogan. Agora, ao que parece, a frase se destina a nos desencorajar de sonhar com utopias, minimizando derrotas ou descartando perigos. Mas não gostaríamos de dar a impressão de que esta ênfase em um pessimismo sóbrio nos leve ao quietismo e à rendição. O otimismo da vontade se torna o complemento necessário para algo que falta no pessimismo original; permite que nos sintamos confortáveis com o pessimismo, para espalhar o pessimismo àqueles que se agarram às ilusões, pois de outra forma seriam incapazes de lidar com a desesperança que o pessimismo traz.

Mas esta avaliação abstrata dos sentimentos oculta o que estava em jogo para Gramsci quando ele repetiu a frase em seus Cadernos do Cárcere, onde ele representou uma reflexão detalhada e sistemática sobre as questões estratégicas e organizacionais de sua experiência revolucionária. O contexto histórico mudou drasticamente: em 1926, a política revolucionária na Itália havia sido derrotada e o fascismo havia consolidado seu domínio. Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci pensou novamente sobre política. Como diz Christine Buci-Glucksmann, “após o fracasso da revolução e a consolidação da ditadura, a nova força só pode vir do conhecimento” [29].

Foi provavelmente uma nota de rodapé no volume padrão de língua inglesa, Seleção de Cadernos do Cárcere, que popularizou o slogan entre os leitores de língua inglesa em 1971. O contexto foi uma discussão da história da política italiana e do pensamento político escrita entre 1930 e 32, na qual Gramsci estava refletindo sobre “a eficácia da vontade política”, que “se tornou o despertar de forças novas e originais em vez de simplesmente calcular as tradicionais” [30]. Sua inspiração foi Maquiavel, cujo reconhecimento fundamental de que “a política é uma atividade autônoma” forneceu um complemento necessário ao marxismo, que em condições de derrota tinha a tendência de cair no determinismo econômico mecanicista. Em sua crença na chegada inevitável e predeterminada de condições revolucionárias, este determinismo nada mais se assemelhava a um fatalismo religioso [31].

Para Gramsci, o que era importante em Maquiavel era seu entendimento de que as transformações históricas anunciadas pelo Renascimento não poderiam ser alcançadas sem a formação de um estado nacional, e que era necessário algum agente histórico que pudesse representar a “vontade coletiva” e realizar esta tarefa histórica: o Príncipe [32]. Mas o príncipe não era uma pessoa existente; ao escrever O Príncipe, Maquiavel procurou dar um nome a este agente. Ele, portanto, criou uma ponte entre tendências anteriores do pensamento político para sonhar com utopias ou engajar-se em análises acadêmicas desinteressadas.

Portanto, a “vontade concreta” de Maquiavel de alcançar uma nova ordem não podia ser reduzida a utopias e devaneios, como foi acusado por céticos como seu parceiro aristocrata Guicciardini. A atitude cética que rejeita qualquer possibilidade de mudança histórica teve que ser distinguida, escreveu Gramsci, de um verdadeiro “pessimismo do intelecto, que pode ser combinado com um otimismo da vontade nos [sujeitos] políticos ativos e realistas” [33].

Neste ponto, os editores e tradutores da Seleção de Cadernos do Cárcere adicionaram uma nota de rodapé referente a outra parte dos cadernos de 1932, um fragmento separado sobre “sonhos e fantasias”. Gramsci escreveu que sonhos e fantasias eram fundamentalmente passivos, imaginando que “algo aconteceu que perturbou o mecanismo da necessidade” e, portanto, “a iniciativa em si se tornou livre” [34]. Como orientação política, isto estava em total contradição com a vontade concreta de Maquiavel, que se aplicava, escreveu ele em outro lugar, à “realidade efetiva” e visava “a criação de um novo equilíbrio entre as forças que realmente existem e que estão operativas” [35].
 

Aqui ele repetiu a frase decisiva: “Pelo contrário, é necessário dirigir violentamente a atenção para o presente como ele é, se se deseja transformá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” [36].

Esta linguagem é surpreendente, mas incompreensível sem entender a forma como Gramsci estava usando Maquiavel para elaborar os problemas da estratégia revolucionária que o preocupava antes da prisão. Maquiavel, embutido em seu momento histórico particular, representou a formação de uma vontade concreta “em termos das qualidades, características, deveres e exigências de um indivíduo em particular”. Para Gramsci, o príncipe moderno, que tinha a tarefa histórica de realizar a aliança entre o proletariado e o campesinato que seria capaz de iniciar o processo de transição para um estado operário, não poderia “ser uma pessoa real, um indivíduo concreto”. Ao contrário, ele tinha que ser “um elemento complexo da sociedade no qual uma vontade coletiva, já reconhecida e, em certa medida, afirmada em ação, começa a tomar forma concreta. A história já forneceu este corpo, e é o partido político, a primeira célula na qual as sementes de uma vontade coletiva que tende a ser universal e total, estão unidas” [37].

Assim, para Gramsci, o pessimismo do intelecto foi a recusa de conceber a política em termos dos sonhos a-históricos das utopias. Isto não significava simplesmente resignar-se ao equilíbrio da realidade real: o otimismo da vontade era a aplicação da autonomia da política às forças realmente existentes e operativas que poderiam gerar um novo equilíbrio. Mas esta vontade não era simplesmente uma questão de determinação individual; não era outra coisa senão o partido, cujos processos organizacionais provocaram a formação de uma vontade concreta e coletiva.
 

Como escreve Sotiris, a reflexão de Gramsci sobre Maquiavel “resume a necessidade do partido político, ao contrário de outras formas de organização, exatamente com base na necessidade não só de formar uma vontade coletiva, mas também de permitir que ele articule e execute um projeto político”. Assim como Maquiavel “procurou a pessoa que pudesse funcionar como catalisador para um processo de unificação nacional do fragmentado espaço italiano e do partido político moderno”, Gramsci acreditava que o Partido Comunista “também deveria funcionar desta forma unificadora, articulando as práticas e aspirações fragmentadas e moleculares dos subalternos em uma demanda política comum de transformação radical[...]”. Assim, Gramsci tratou o Partido Comunista como “o terreno por excelência para a elaboração de uma vontade coletiva capaz de ser o protagonista de um processo de transformação social” [38]. Mas, como Thomas aponta, enquanto Gramsci via o partido político como “a forma histórica dada na qual os elementos decisivos de organização, unificação e coordenação já haviam começado a ocorrer”, a reformulação desta forma em “um instrumento não burocrático de hegemonia proletária” exigiria “um contínuo intercâmbio dialético com as iniciativas populares das quais o príncipe moderno poderia emergir e nas quais ele tentaria intervir” [39].

Recordemos que estas reflexões sobre a possibilidade de organização foram realizadas sob condições de derrota. Neste contexto, Gramsci trouxe a questão estratégica e organizacional do partido para o problema da política como uma atividade autônoma. Como Thomas escreve, para Gramsci, que foi preso por ser membro de um partido comunista, “o príncipe moderno era um corpo coletivo constituído como uma relação social ativa de conhecimento e organização” que poderia iniciar a formação de uma vontade coletiva. Mas “como seu predecessor maquiavélico, o príncipe moderno de Gramsci era apenas uma proposta para o futuro, não uma realidade concreta em seu tempo ou em nosso tempo” [40].

Neste sentido muito concreto, a Gramsci é nosso contemporâneo. O que perdemos ao reduzir o “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” a uma sensibilidade é a importância prática das reflexões de Gramsci. Na ausência de uma forma organizacional que possa operar como organizador de uma vontade concreta e coletiva, a política não está disponível para nós. Para lembrar a formulação da Gramsci, precisamos de teorias e práticas organizacionais orientadas para despertar forças novas e originais, em vez de calcular as tradicionais.

Ética

Não podemos separar completamente a questão organizacional da política como uma atividade autônoma, que se estende continuamente da L'Ordine Nuovo aos Cadernos do Cárcere, do que poderíamos chamar de disposição ética dos envolvidos na política. Entretanto, estes problemas de ética devem ser distinguidos do nível psicológico e moral, que é também o nível de consciência, que Gramsci delimitou claramente do nível gnoseológico. Os escritos de Gramsci propõem novos princípios éticos, cada um marcado por linhas fundamentais de demarcação, que aparecem em passagens que não foram incluídas na tradução inicial em inglês (mas que estavam disponíveis na edição maior editada pelo Joseph Buttigieg), e em suas cartas.

Em parte de uma passagem mais longa de 1929-1930, Gramsci escreveu que o “catastrofismo” de Marx foi uma reação válida ao “otimismo geral do século XIX”. Marx “derramou água fria” sobre o entusiasmo com sua “lei da tendência à queda da taxa de lucro”. Gramsci criticou a tendência otimista de imaginar utopias, o que levou as pessoas a fantasiar sobre “soluções fáceis para cada problema”. “Todos os sonhadores mais ridículos”, escreveu ele, “descem sobre os novos movimentos para propagar suas histórias de gênio até então desconhecidas, desacreditando-os”. Em vez disso, ele disse, “é necessário criar pessoas sóbrias e pacientes que não se desesperem diante dos piores horrores e que não se tornem exuberantes com todas as tolices. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” [41].

Em outro fragmento independente dos Cadernos de 1932, intitulado “Otimismo e Pessimismo”, ele destacou que “o otimismo não é mais que uma defesa contra a preguiça, a irresponsabilidade, a vontade de não fazer nada” e, portanto, “é também uma forma de fatalismo e mecanicismo”. O otimismo significava confiar “em fatores alheios à vontade e atividade de cada um”. Era necessário, ao contrário, uma reação que tomasse “a inteligência como ponto de partida”. Gramsci rejeitou o entusiasmo resultante da exaltação de fatores fora da vontade e da atividade de cada um, que era “nada mais do que a adoração externa de fetiches”. E ainda havia também um “entusiasmo justificável”, que só poderia ser “o que acompanha a vontade inteligente, a atividade inteligente, a riqueza da inventividade de iniciativas concretas que mudam a realidade existente” [42].

Não podemos deixar de notar que as oposições binárias do slogan foram deslocadas. Há um otimismo ligado à “vontade de não fazer nada”, o que contrasta com uma “vontade inteligente”. Um certo tipo de “otimismo da vontade”, portanto, não é apenas a contrapartida do fatalismo e do mecanicismo, mas também uma forma de sonhar acordado a utopia. Isto não é simplesmente porque é necessário pessimismo para corrigir o otimismo da vontade. A alternativa que Gramsci realmente descreve é, ao invés disso, uma fusão de inteligência e vontade, a “vontade inteligente”, que é acompanhada por uma forma justificável de “entusiasmo”. Com isto, ele recorda o slogan impresso na linha sob o título da primeira edição da L'Ordine Nuovo: “Eduquem-se pois precisaremos de toda sua inteligência. Agitem-se pois vamos precisar de todo o seu entusiasmo. Organizem-se pois precisaremos de todas as suas forças” [43]. Entusiasmo é o primeiro novo princípio ético.

Em uma carta de 1929 a seu irmão Carlo, na qual ele lembrava a experiência de seus dois irmãos em condições de guerra, Gramsci refletiu sobre as dificuldades e privações e rejeitou “aqueles estados de espírito vulgares e banais que são chamados de pessimismo e otimismo”. Seu estado de espírito, disse Gramsci, “sintetiza estas duas emoções e as supera: sou pessimista pela inteligência, mas otimista pela vontade”. Ele disse que “em todas as circunstâncias” ele pensou “a primeira das piores possibilidades para pôr em marcha todas as reservas da minha vontade e de estar em condições de derrubar o obstáculo”. Ao mesmo tempo, ele disse: “Eu nunca tive ilusões e nunca sofri decepções”. Mas ele não acabou reiterando o slogan. Em vez disso, ele passou para palavras diferentes: “Sempre me preocupei em me armar com paciência ilimitada, não passiva, inerte, mas encorajada pela perseverança” [44].

Talvez entre os Cadernos do Cárcere e esta carta, o nível gnoseológico e o nível psicológico e moral pareçam estar combinados. Aqui Gramsci não parece estar falando sobre o conhecimento que está embutido no aparelho hegemônico, o nível organizacional da formação da vontade concreta e coletiva. Entretanto, estas cartas não podem ser reduzidas a uma mera indicação do estado psicológico e moral de Gramsci. Sua situação pessoal é precisamente a condição histórica e política da derrota que ele se propôs a teorizar, definida pelo vácuo político que nenhum príncipe moderno estava disponível para preencher. Se nos apressarmos a combinar o psicológico e moral com o gnoseológico, corremos o risco de abstrair a vontade pessoal, da forma como Gramsci criticou em suas notas sobre os sonhos, separando-a dos processos organizacionais que podem realmente formar um processo concreto e uma vontade coletiva.

Apesar de começar com a oposição entre pessimismo e otimismo, o intelecto e a vontade, nesta carta Gramsci de fato os redireciona para a “perseverança”, uma categoria unitária que não está ligada ao otimismo ou ao pessimismo, mas à “paciência”. De certa forma, Gramsci escreveu em uma nota de 1930-32, a filosofia mecanicista da história permite a perseverança: “Para aqueles que não têm a iniciativa na luta e para quem, portanto, a luta acaba sendo sinônimo de uma série de derrotas, o determinismo mecânico torna-se uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente”. Permite dizer: “Estou derrotado, mas no longo prazo a história está do meu lado”. Em outras palavras, este tipo de perseverança é um “ato de fé na racionalidade da história transmutada em uma teleologia apaixonada que é um substituto para a predestinação, providência, etc., da religião”. No entanto, Gramsci argumentou que, apesar desta crença no determinismo mecânico, na verdade a vontade está ativa; ela intervém diretamente na força das circunstâncias, embora de uma forma mais velada e dissimulada. Quando aqueles que estão acostumados a serem derrotados se tornam protagonistas históricos, “a concepção mecanicista representará mais cedo ou mais tarde um perigo iminente, e haverá uma revisão de todo um modo de pensar porque o modo de existência terá mudado” [45].

Ao rever a nota em 1932-33, Gramsci enfatizou que nunca foi realmente o caso de os subalternos estarem sem ação; na verdade, “o fatalismo não é nada além da roupa usada pela vontade real e ativa quando se está em uma posição fraca”. Por isso foi necessário “demonstrar a futilidade do determinismo mecânico”, que “como uma filosofia ingênua da massa” poderia ser “um elemento intrínseco de força”, mas, se “adotada como uma filosofia pensada e coerente por intelectuais" se converteria em “uma causa de passividade, de idiotice autossuficiente”. Isto acontece quando os intelectuais “não esperam que os subalternos se tornem dirigentes e responsáveis”; mas, na verdade, “alguma parte de uma massa subalterna é sempre dirigente e responsável” [46].

A perseverança, portanto, não pode ser um princípio político se estiver apegada à profecia futura, mas representa a capacidade paciente de reconhecer a vontade ativa que persiste além do estado psicológico e moral pessoal; requer paciência e também coragem. Em um Caderno de 1930-32 sobre “Arte Militar e Política”, Gramsci observou que “permanecer muito tempo em uma trincheira requer coragem, ou seja, perseverança na ousadia, que pode vir tanto do terror (morte certa se não se permanece) ou da convicção de que é necessário (coragem)” [47]. A perseverança é o segundo novo princípio ético.

A perseverança é irredutível ao nível do indivíduo, pois é neste nível que, como Gramsci foi finalmente obrigado a concluir, a dialética do pessimismo e otimismo é quebrada. Em uma carta para sua cunhada Tatiana Schucht em 1933, meses após a nomeação de Hitler como chanceler da Alemanha, Gramsci revisou seu slogan. “Até algum tempo atrás”, escreveu ele, “eu era, por assim dizer, pessimista em minha inteligência e otimista em minha vontade”. Mas ele não podia mais sustentar sua síntese de pessimismo e otimismo: “Hoje eu não penso mais desta maneira. Isto não significa que eu tenha decidido desistir, por assim dizer. Mas isso significa que eu não vejo mais uma saída concreta e não posso mais contar com qualquer reserva de força para gastar na qual eu possa me valer” [48]. Quando seu corpo lhe falhou, ele não viu nenhuma fuga de sua cela.
Sem um órgão organizado e coletivo para apoiá-lo, o órgão individual hesita. Quando a condição política do partido não pode mais ser tomada como certa, e o otimismo da vontade se tornou um sonho, o pessimismo do intelecto não produz conhecimento. Em vez disso, devemos perseverar no interregno entre os momentos anteriores de possibilidade emancipatória e a descoberta mal sucedida de uma nova forma política hegemônica concreta.

Tanto a perseverança quanto o entusiasmo devem ser separados do mecanicismo e do fatalismo e, em vez disso, referir-se à vontade concreta que se aplica à realidade efetiva. Para isso, eles devem se basear no corpo coletivo e não na consciência individual. Como categorias psicológicas e morais, tanto o pessimismo do intelecto quanto o otimismo da vontade vão contra a disposição ética que se articula nas margens do texto de Gramsci.
 

O pessimismo do intelecto é confirmado na experiência da derrota, separando o corpo pessoal do corpo coletivo necessário para perseverar. Perseverar na política é difícil e requer um compromisso paciente e corajoso que não depende de previsões do futuro.

O otimismo da vontade obscurece o problema das formas organizacionais e exclui a pesquisa entusiasmada. Significa se apegar às forças tradicionais, em vez de criar e organizar novas, e é, portanto, incompatível com a vontade inteligente que se define pelo entusiasmo por iniciativas concretas que podem mudar a realidade existente.

O entusiasmo e a perseverança emergem como princípios éticos de Gramsci. Mas agora é hora de concluir, revisando o pessimismo e o otimismo.

Inversão

Creio que nosso momento atual nos mostra que as ideias de Gramsci não são bem representadas pelo slogan “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”. De fato, entenderemos melhor nossa situação se a invertermos com precisão.

Otimismo do intelecto, porque temos que começar reconhecendo que todas as pessoas são capazes de pensar, que são capazes não apenas de formar concepções do mundo, mas também de experimentar novas possibilidades. Não há política emancipatória sem o reconhecimento desta capacidade universal de pensamento. Gramsci nunca deixou de enfatizar dois pontos essenciais: que todas as pessoas são filósofos e que essa inteligência de massa é a base de uma sociedade futura; e que apesar da divisão política entre líderes e liderados, governantes e governados, é possível engajar-se em formas de ação política que eliminem essa distinção em vez de preservá-la. Isto é bem diferente de um otimismo sobre o futuro, que devemos ignorar. É nosso otimismo do intelecto que diz que é possível que as pessoas governem a si mesmas, e cada ato de resistência coletiva confirma esta capacidade.

Mas pessimismo da vontade, porque sabemos que a vontade tem que tomar uma forma organizacional material, e que ao longo da história da política revolucionária, a forma clássica pensada pelo jovem Gramsci não está mais disponível para nós. Falta-nos uma base concreta para as organizações no modelo das revoluções do século 20, e sabemos pela história que se seguiu a essas revoluções que o potencial emancipatório do partido que se apodera do estado foi esgotado. Gramsci nunca abandonou a ideia de Lênin de que a política se desenvolve sob certas condições e que a vontade política deve assumir uma forma organizacional. Ele aprofundou esta linha de pensamento para uma situação de derrota na qual tal organização de vontades não estava disponível. Ele não teve medo de lidar com o problema da conquista do poder político, que ainda temos, mas não poderia ter incorporado em sua análise o esgotamento do partido-estado e o fechamento de seu horizonte emancipatório que enquadra nosso presente. Ainda enfrentamos a necessidade da política como uma atividade autônoma, a formação de vontades concretas e coletivas, mas ela deve tomar uma forma material que seja apropriada ao presente. O que precisamos agora não é de uma dedicação voluntária para repetir modelos antigos, mas de laboratórios que possam observar novas forças e experimentar novas formas.

Nosso horizonte subjetivo é o otimismo do intelecto; nossa condição objetiva e estruturante é o pessimismo da vontade. Sem otimismo do intelecto, temos a festa sem o povo. Sem pessimismo da vontade, temos a ilusão do poder. Até reconhecermos isto, não há caminho para a ação.

Notas

1/ Gwynn Williams, Proletarian Order: Antonio Gramsci, Factory Councils and the Origins of Italian Communism (London: Pluto Press, 1975), 203–8.

2/ Antonio Gramsci, “The Turin Communist Movement,” International Gramsci Journal, 2:2 (2017): 40. This is a more accurate version of the text also published in Antonio Gramsci, Selections from Political Writings 1910–1920, ed. Quintin Hoare and trans. John Mathews (London: Lawrence and Wishart, 1988).

3/ A redação que aparece nas traduções publicadas, "pessimismo da inteligência", é mais precisa; mas o slogan tem circulado amplamente com a palavra "intelecto", o que produz uma frase talvez mais melíflua. Eu simplesmente as usei de forma intercambiável.

4/ Antonio Gramsci, Letters from Prison, vol. 1, trans. Raymond Rosenthal and ed. Frank Rosengarten (New York: Columbia University Press, 2011), 300.

5/ Williams, Proletarian Order, 28, 193–9.

6/ Gramsci, “Address to the Anarchists” in Selections from Political Writings 1910–1920, 188.

7/ Ibid., 189.

8/ Ibid., 188.

9/ Christine Buci-Glucksmann, Gramsci and the State, trans. David Fernbach (London: Lawrence and Wishart, 1980), 12.

10/ Gramsci, Selections from Political Writings 1910–1920, 34.

11/ See especially “Officialdom” and “Against Pessimism” in Antonio Gramsci, Selections from Political Writings 1921–1926, trans. and ed. Quintin Hoare (London: Lawrence and Wishart, 1978), but also the earlier untranslated text “Dove va il Partito socialista?” in L’Ordine Nuovo, 10 July 1920. A translation of this text is included as an appendix.

12/ See Williams, Proletarian Order, chs. 9–11.

13/ Antonio Gramsci, Selections from the Prison Notebooks [SPN], trans. and ed. Quintin Hoare and Geoffrey Nowell Smith (New York: International Publishers, 1992), 9, 323. En references al original Quaderni del carcere [Q], ed. Valentino Gerratana (Turin: Einaudi, 1975), Sigo la convención internacional de dar el número de cuaderno seguido del número de nota, luego el número de página: 12§1, 1516; 11§12, 1375. Cuando corresponde, también me refiero a los tres volúmenes en inglés de los Cuadernos de la prisión [PN], trans. Joseph A. Buttgieg and Antonio Callari and ed. Joseph A. Buttgieg (New York: Columbia University Press, 2011).

14/ SPN, 334; Q 11§12, 1386.

15/ SPN, 335; Q 11§12, 1387. Translation modified.

16/ Panagiotis Sotiris, “The Modern Prince as Laboratory of Political Intellectuality,” International Gramsci Journal, 3:2 (2019): 2.

17/ SPN, 144; Q 15§4, 1752.

18/ SPN, 325; Q11§12, 1378.

19/ / Buci-Glucksmann, Gramsci and the State, 29, 31.

20/ Peter Thomas, The Gramscian Moment: Philosophy, Hegemony, and Marxism (Leiden: Brill, 2009), 408.

21/ PN 2, 50; SPN 198; Q 3§48, 330.

22/ Buci-Glucksmann, Gramsci and the State, 349.

23/ Thomas, The Gramscian Moment, 97n34.

24/ SPN, 365–6; Q 10II§12, 1249–50. Translation modified.

25/ Buci-Glucksmann, Gramsci and the State, 48; see also 63–8.

26/ Thomas, The Gramscian Moment, 226–7.

27/ SPN, 335; Q 11§12, 1387. Translation modified.

28/ Sotiris, “The Modern Prince,” 28, 32, 34.

39/ Buci-Glucksmann, Gramsci and the State, 24.

30/ SPN, 174; PN 3, 73; Q 6§86, 761.

31/ SPN, 168; Q 13§23, 1611–12; see also 9§40, 1120.

32/ SPN, 129; Q 13§1, 1558.

33/ SPN, 175; PN 3, 73; Q 6§86, 762.

34/ SPN, 175; Q 9§60, 1131.

35/ SPN, 172; Q 13§16, 1578.

36/ SPN, 175; Q 9§60, 1131.

37/ SPN, 129; Q 13§1, 1558; see also PN 3, 247; Q 8§21, 951.

38/ Sotiris, “Modern Prince,” 19–20.

39/ Thomas, The Gramscian Moment, 437.

40/ / Ibid., 438.

41/ PN 1, 172; Q 1§63, 75; see also Q 28§11, 2331–2.

42/ PN 1, 12; Q 9§130, 1191–2.

43/ PN 19, 71; Q xlviii.

44/ Gramsci, Letters from Prison, vol. 1, 299; Antonio Gramsci, Lettere dal carcere, ed. Sergio Caprioglio and Elsa Fubini (Turin: Einaudi, 1973), 310.

45/ PN, 353; Q 8§205, 1064.

46/ SPN, 337; Q 11§1, 1388–9.

47/ PN, 236; Q 4§62, 508.

48/ Gramsci, Letters from Prison, vol. 2, 299–300; Lettere dal carcere, 785.