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"Assistimos ao fracasso da experiência social americana"

O filósofo de Harvard fala em profunda depravação do capitalismo neoliberal de seu país, além do supremacismo branco, do neofascismo e do sistema judicial discriminatório

3 de junho de 2020

Cornel West, professor de filosofia na Universidade de Harvard, fez uma declaração à CNN na sexta 29 de maio, no meio dos protestos nacionais contra o assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis, Minnesota. Apresentou uma brilhante acusação não só contra a supremacia branca, o neofascismo do Presidente Donald Trump e um sistema de justiça criminal que maltrata os pobres e as pessoas negras, mas também contra a profunda depravação do sistema capitalista neoliberal do século XXI nos Estados Unidos, um sistema que também engloba os dois principais partidos políticos.

À medida que os protestos se desenrolavam em Minneapolis, em Washington D.C, em frente à Casa Branca, e em outras cidades americanas - incluindo Atlanta, Chicago, Nova Iorque, Cleveland e Oakland - Cornel West declarou à CNN: "Penso que o que estamos vendo nos Estados Unidos é uma experiência social fracassada".

"O que eu quero dizer com isto", explicou Cornel West, "é que a história do povo negro durante mais de 200 anos tem sido a história do fracasso dos Estados Unidos". A sua economia capitalista não conseguiu produzir e proporcionar aquilo de que as pessoas necessitam para viverem uma vida decente. O Estado-nação, seu sistema de justiça penal e seu sistema jurídico são incapazes de garantir a protecção dos direitos e liberdades. E agora, é claro, a nossa cultura é tão impulsionada pelo mercado - tudo está à venda, todos estão à venda - que nem sequer pode-se dar à alma o que se necessita para lhe dar sentido e finalidade".

Cornel West explicou que a raiva pelo assassinato de George Floyd pela polícia - um dos quatro polícias envolvidos, o agente Derek Chauvin, foi preso na sexta-feira (29 de Maio) e acusado de homicídio em terceiro grau e homicídio involuntário - desencadeou uma "tempestade perfeita" causada pelos múltiplos fracassos e desigualdades que existem sob o sistema imperial dos EUA, que pessoas como Martin Luther King Jr. e outros têm denunciado desde meados do século passado.

"Nas fotografias de Atlanta", disse West, "podia-se ver o irmão Martin ali a dizer: 'Falei de militarismo. Eu falei de pobreza. Falei de consumismo. Falei de racismo em todas as suas formas. Falei de xenofobia. E o que vemos hoje nos Estados Unidos da América é apenas a consequência de tudo isso. Colhe-se o que se semeia. E neste momento quando vemos o irmão George Floyd linchado, não restam dúvidas quanto a esse ato hediondo. Ninguém o pode negar".

Quando as manifestações de solidariedade eclodiram para além de Minneapolis na sexta-feira à noite, indignadas com o assassinato de Floyd - e com o assassinato pela polícia de outras vítimas negras, latinas e marginalizadas - West disse: "Graças a Deus que há pessoas nas ruas. Conseguem imaginar este tipo de linchamento e pessoas indiferentes? Conseguem imaginar pessoas que não se importam? Pessoas insensíveis?"

Cornel West chamou o Presidente Donald Trump de "o gangster neofascista da Casa Branca", mas disse que o fracasso da nação - que permite uma desigualdade endémica e uma cultura de ganância e consumo que espezinha os direitos e a dignidade dos pobres e das minorias uma década depois - começou muito antes do mandato do actual Presidente.

"O sistema não pode reformar-se a si mesmo", disse Cornel West. O professor sublinhou a necessidade de uma dinâmica em que a representação da identidade sirva para defender a igualdade de classes, a prosperidade partilhada e uma democracia funcional que expresse verdadeiramente a vontade popular e satisfaça as necessidades materiais do povo trabalhador e dos pobres.

"Tentámos elevar algumas figuras negras", disse ele. "Demasiadas vezes, os nossos políticos negros, a classe profissional, a classe média, estão demasiado à vontade com a economia capitalista, demasiado à vontade com um Estado-nação militarizado, demasiado à vontade com a cultura do mercado, com as personalidades famosas, o status, o poder, todas essas coisas superficiais que tanto significam para tantos dos nossos concidadãos.

"Há uma ala neoliberal do Partido Democrata que está agora no controle após o fracasso do irmão Bernie (Sanders) e que não sabem realmente o que fazer", acrescentou West, "porque tudo o que querem é mostrar mais caras negras". Mas muitas vezes esses rostos negros também perdem a sua legitimidade, porque não esqueçamos que o movimento Black Lives Matter nasceu sob um presidente negro, um procurador-geral negro e um dirigente do serviço de segurança nacional negro. E não conseguiram cumprir as suas promessas. Portanto, quando falamos das massas de negros - os pobres e a classe trabalhadora.

Por isso, quando falamos das massas e do povo oprimido - os pobres e trabalhadores negros, latinos, asiáticos, indígenas, de qualquer cor - falamos daqueles que se sentem ignorados, impotentes, indefesos, desesperados, e depois a rebelião explode.

Segundo Cornel West, a nação deve agora escolher entre uma "revolução não violenta" ou a continuação dos fracassos do status quo anterior. "E por revolução, refiro-me à partilha democrática de poder, recursos, riqueza e respeito", disse. "Se não tivermos esse tipo de partilha, as explosões vão ficar ainda mais violentas."

Os perigos inerentes à Trump são reais, insiste West, mas acrescenta que uma das vantagens do Presidente é dizer ao mundo exatamente quem ele é. Por outro lado, as falhas mais amplas do sistema sob a economia capitalista neoliberal raramente são expostas ou reveladas pelo que realmente são.

"A supremacia branca vai durar muito, muito, muito tempo, e não nos devemos surpreender se isto voltar a acontecer", disse Cornel West.

"Mas temos de lutar", concluiu. "Mesmo numa altura em que estamos a assistir a uma experiência social falida, temos de lutar. Temos de construir uma coligação anti-fascista contra o que se passa na Casa Branca e no Partido Republicano. E temos de dizer a verdade sobre a atitude vergonhosa e covarde da ala neoliberal do Partido Democrata. E devemos também fazermos nossa própria autocrítica para mantermos os elevados padrões morais e espirituais de Martin Luther King Jr., Fanny Lou Hammer (1917-1977, ativista dos direitos civis e oradora popular de grande impacto), e Ella Baker (1903-1986, uma das grandes figuras do movimento dos direitos civis). E vermos esse trabalho refletir na alma da família do irmão George Floyd.