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Aurore Koechlin: priorizar a reprodução social sobre a produção

22 de março de 2020

Se existe uma contradição fundamental entre produção e reprodução sob o capitalismo, esta última é uma espécie de limite que o capitalismo não pode ultrapassar

No Livro I do Capital, Marx compara o capitalismo a um vampiro que não para de sugar a vida dos trabalhadores. Com esta imagem, ele mostra como o movimento “natural” do capitalismo é consumir ao máximo a força de trabalho, pois a norma sistêmica é que o trabalho, para gerar lucros, nunca pare, e esteja em movimento 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Durante toda uma parte do século XIX, tratava-se de trabalhar até a morte, segundo os testemunhos de Marx e Engels, entre outros. Historicamente, foi a luta de classes que permitiu regular a apropriação da força de trabalho pelos capitalistas. Mas isto deve-se também aos limites internos à reprodução da força de trabalho: se os capitalistas “gastam” demasiado depressa a vida dos trabalhadores sem permitir que as novas gerações cheguem à idade ativa, então assistimos a uma crise na reprodução da mão-de-obra. E sem força de trabalho, não há mais-valia… [Referimo-nos aqui à teoria da reprodução social. Definimos como trabalho reprodutivo qualquer trabalho de (re)produção da força de trabalho. Ele ocorre em três áreas principais: a família (trabalho doméstico), os serviços públicos (educação, saúde) e os serviços pessoais.]

Se existe uma contradição fundamental entre produção e reprodução sob o capitalismo (a reprodução da força de trabalho requer necessariamente a sua proteção, o que diminui a produção), esta última é uma espécie de limite que o capitalismo não pode ultrapassar. Existe, portanto, uma necessidade imperativa de que o capitalismo reproduza a força de trabalho, bem como de que produza mais-valia. Mas geralmente essa necessidade é disfarçada, mesmo – e ainda mais – aos olhos da maioria d@s própri@s trabalhador@s. O trabalho reprodutivo, que ainda é feito na maioria das vezes em casa, é invisível. Por extensão, damos pouca consideração ao trabalho reprodutivo, que é vital para a nossa mera sobrevivência.

Agora mesmo, em meio à crise do coronavírus, quando toda a economia está desacelerando e estamos ansiosos pelo que vamos comer esta noite, se vamos poder ver nossos pais, nossos filhos, etc., a questão se torna muito mais aguda diante dos nossos próprios olhos. Se se torna visível e material a nível individual, também é visível e material aos olhos dos capitalistas. Ela toma a forma de um alerta de emergência para a progressão desordenada do neoliberalismo, que põe em perigo até mesmo as próprias condições das nossas vidas. Se a produção não tem limites, a reprodução necessária coloca alguns limites. A crise do coronavírus pode ser interpretada neste sentido.

Assim, as medidas dos governos contra o coronavírus são indicativas da situação de crise que estamos atravessando. Pois mesmo que cheguem criminalmente tarde, precisamente porque durante muitos meses os capitalistas priorizaram a produção em detrimento da reprodução (neste caso, a saúde dos trabalhadores), seu nível de reação é um indicador da extensão da ameaça.

Fechamento de estabelecimentos educacionais, fechamento de empresas não vitais, substituição máxima do trabalho por teletrabalho, depois o início da quarentena… As medidas são importantes e impressionantes. Além disso, nas redes sociais, muitas pessoas ironizaram o giro à “esquerda” de Emmanuel Macron: elogios aos serviços públicos fora das regras de mercado, suspensão das demissões, promessa de tirar, depois, “todas as consequências” da situação… Na realidade, esta política revela duas coisas.

Primeiro, este “flash keynesiano”, como Romaric Godin o chama, é uma proeza política. Macron faz uma aposta: é um dos presidentes mais odiados da Quinta República, mas se conseguir gerir a crise, ele salvará o seu mandato. Nada lhe custa então “alugar” os serviços públicos que herdou e que até tentou por todos os meios destruir: agora que estão funcionando, ele tem todo o interesse em defendê-los nos discursos (porque na realidade, é outra coisa…). Se é isto que permite à França gerir a crise do coronavírus, ele poderá apresentar isso como balanço: antecipa-se de certa forma aos serviços públicos.

É também neste sentido que devemos interpretar a construção desta nova face de pai da nação acima dos conflitos sociais. Ele apela @s trabalhador@s, ele apela aos patrões, numa pura tradição gaullista[i]. Ele promulga orientações gerais sobre o isolamento, deixando aos seus ministros o cuidado dos detalhes práticos (bastante descontrolados): o importante, ele está acima destas questões triviais. Ele pode até, grande príncipe que seria, dar-se ao luxo de adiar a reforma das aposentadorias. O que é inteligente, porque deixa a porta aberta para adiá-la sine die, se ele considerar o custo político demasiado elevado: ele pode sempre argumentar com a presença da pandemia.

Em suma, para Macron, o coronavírus pode ser uma bênção política e não devemos nos deixar enganar por este retrato do salvador. No entanto, temos de reconhecer que a partida é bem jogada. Pôr em prática medidas progressivas, baseadas antes de tudo na convicção e não na repressão (leitmotiv de Castaner: “Nosso objetivo não é punir”) é inteligente… Mas são medidas insuficientes. Estas medidas deveriam ter sido tomadas há duas semanas, como sugeriu cheia de remorsos Agnes Buzyn, revelando uma das mais terríveis mentiras de estado já ouvidas. Tomadas apenas agora, não impedirão milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.

Da mesma forma, como podemos explicar a incompetência de um governo que não esteve à altura de antecipar a pandemia que se aproxima? Não houve todos os gritos de alarme da China e da Itália? Como é que atualmente somos incapazes de fazer o que os médicos julgaram ser o mais eficaz: rastrear e tratar massivamente? Por que nos falta o equipamento médico mais básico, como máscaras e álcool gel, e o mais necessário, como equipamentos de ventilação e reanimação?

Em segundo lugar, estas medidas são indicadores da escala da crise. Eles são uma espécie de medida de emergência capitalista para evitar uma crise reprodutiva de grande magnitude. Mas os limites que o capitalismo encontra para salvar a reprodução são sempre os mesmos: são os da produção. Assim, mesmo que o apelo de Macron seja para que tod@s assumam a responsabilidade, ele envia os sinais opostos, continuando a pressionar as pessoas a irem trabalhar, mesmo em setores não essenciais. E nos setores essenciais, as medidas não estão à altura da tarefa d@s cuidador@s ou d@s trabalhador@s da alimentação, setores que são enormemente feminizados porque estão envolvidos na reprodução: tod@s @s trabalhador@s devem estar equipados com máscaras FFP2 e álcool gel, e estes setores deveriam receber os bilhões que, no entanto, irão para as empresas.

O capitalismo não pode, sozinho, resolver as suas próprias contradições. Cabe aos trabalhadores impor as suas condições. Neste momento, deve ser dada prioridade à reprodução em detrimento da produção. O dinheiro deve ser injetado, antes de mais nada, nos setores da saúde e alimentação. As empresas que fabricam equipamentos médicos indispensáveis nessa situação devem ser nacionalizadas.

Finalmente, outra medida central, dada a nossa limitada capacidade médica e técnica e a velocidade de propagação do vírus, deve ser o isolamento total fora dos setores essenciais para a sobrevivência coletiva. É claro que este isolamento deveria idealmente ser uma decisão coletiva, de baixo para cima, e não imposta pela autoridade do governo. Mas vemos a dupla dificuldade de se mobilizar numa situação em que a mobilização vai contra a segurança e de aumentar o nível de consciência das pessoas frente ao perigo.

É também o resultado de uma falta geral de conhecimento sobre medicina e saúde, que não é considerada uma área de conhecimento geral e que deveria ser difundida para tod@s. Estamos agora pagando o preço disso, o que deve levar-nos a repensar a relação da nossa sociedade com o conhecimento médico em geral.

No entanto, nesta situação, nós ativistas e sindicalistas não estamos desarmad@s. A informação, antes de mais nada, é essencial, especialmente a informação fundamentada. Devemos disponibilizar informações confiáveis e acessíveis para o nosso campo social. Em segundo lugar, a greve deve permitir impor o fechamento de setores não essenciais e exigir condições de trabalho que respeitem as normas de segurança para setores essenciais, como a Itália nos mostrou.

Isso já acontece em muitos locais de trabalho, e está se espalhando como fogo selvagem, com greves no setor aeronáutico, nos estaleiros do Atlântico, nas linhas de montagem de Havre, na General Electric na Borgonha, no PSA Mulhouse, na Amazon… Esse é o caminho que devemos seguir.

Finalmente, somos obrigad@s a pensar na auto-organização da reprodução, uma vez que os setores de produção estão fechados e depois de há muito ter desqualificado esta forma de organização. É ao nível das residências, dos bairros, que hoje são lançadas iniciativas de solidariedade. Estas podem ser novas experiências, mesmo em tempos de crise extrema, como a atual, de reorganização da reprodução. Além disso, estes são os últimos espaços de politização, com exceção das redes sociais e dos poucos locais de trabalho que permanecerão abertos, já que os limites da casa, do edifício, são as últimas relações sociais possíveis – sempre mantendo as regras de segurança.

Mais do que nunca, o privado é político!

(*) Publicado originalmente em Contretemps, 18 de Março de 2020:

https://www.contretemps.eu/coronavirus-capitalisme-reproduction/

[i] De Charles De Gaulle.