Voltar ao site

Bahia: A culpa não é da chuva

 

Enquanto o presidente andava de jet ski em Santa Catarina, a resposta do povo em meio às tragédias da virada do ano mais uma vez foi a solidariedade de classe.

14 de janeiro de 2022

Clara Delmonte e Carol Leal, militantes da UNE*. 14 de janeiro de 2022. 

Vocês que aumentam todo ano sua posse

E que poluem cada palmo de terreno

E que possuem cada qual um latifúndio

E que destratam e destroem o ambiente

De cada mente de vocês olhei no fundo

E vi o quanto cada um, no fundo, mente

Reis do Agronegócio – Chico César

Há dias a chuva não dá trégua nas esquinas do Brasil. Sejam vindas da Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Maranhão ou do Noroeste do Rio de Janeiro, as notícias de cidades inteiras submersas, famílias perdendo suas casas, mortos e feridos, não param de chegar aos noticiários. As cenas que vemos não são novas, mas parecem estar mais assustadoras e constantes a cada ano que passa. E estão mesmo.

Os donos do poder tentam atrelar os problemas climáticos a simples reações do comportamento da natureza, afirmando que as enchentes, desmoronamentos, rompimentos de barragens, dias virando noite, dentre tantos outros desastres são “naturais” e nada pode ser feito para impedi-los. Mas será que é a chuva que não dá trégua, ou é o agronegócio, a mineração, a monocultura, o turismo predatório e o extrativismo que precisam ser interrompidos com urgência se quisermos, como diz Ailton Krenak, adiar o fim do mundo? É culpa da chuva, ou o esmagamento das áreas de proteção ambiental e o genocídio dos povos guardiões da terra são incompatíveis com uma sociedade onde a relação entre a atividade humana e o meio ambiente não se dê de forma destrutiva?

Em 2021 houve aumento de 21,9% no desmatamento da Amazônia Legal em relação ao ano anterior, e só em outubro do mesmo ano uma área equivalente a uma Porto Alegre foi desmatada [1]. Ainda em 2021, ano em que a fome voltou a fazer parte da vida de milhões de brasileiros, o agronegócio bateu recorde de exportação, movimentando mais de 100 bilhões de dólares [2].

Quando nos atentamos para os estados da Bahia e Minas Gerais, vemos que as tragédias são sintomas de um projeto de poder em que é o lucro quem dita as regras. No maior estado do Nordeste, metade dos municípios são ocupados com atividade extrativista. A monocultura de eucalipto, capitaneada pela multinacional Suzano, massacra o solo e a reprodução da vida em cerca de 1,3 milhões de hectares no sul do estado da Bahia – justamente onde as chuvas mais causaram estragos [3].

Já em Minas, as centenas de vidas levadas pelos crimes ambientais cometidos pela Vale e Samarco, em Brumadinho e Mariana, não foram suficientes para impedir a indecência por grana, como diz Djonga. A vida de pescadores, povos tradicionais e moradores foi duramente afetada. Há relatos de problemas dermatológicos, aumento da incidência de câncer e a previsão de recuperação do Rio Doce é de 61% em 2030. Isso mesmo, ainda em 2030 não teremos o Rio Doce totalmente recuperado! É desesperador saber que, no momento em que esse texto está sendo escrito, 39 barragens correm o risco de romper a qualquer momento no estado [4]. São mais de 145 cidades que decretaram estado de emergência pelos alagamentos e milhares de pessoas perderam tudo e não têm onde morar.

Na falta de uma moradia segura, vidas são perdidas. O direito à moradia é previsto na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Fundamental dos Direitos Humanos, entretanto, o 1% que detém as riquezas do mundo só se preocupa com ampliar suas fortunas enquanto nosso povo não tem onde morar.

A realidade é que o capitalismo é um sistema baseado na destruição da vida. E ele escolhe muito bem quais vidas vai destruir primeiro. Não à toa são as comunidades mais pobres e enegrecidas as que sofrem os maiores impactos dos crimes ambientais e mudanças climáticas. São as periferias e favelas das cidades as primeiras a sofrerem com as enchentes, fruto da falta de saneamento básico e políticas de segurança para encostas. Os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos são duramente atingidos pelo assassinato de suas terras. Os pequenos agricultores encontram cada vez mais limites diante do esgotamento do solo e os que dependem dos rios e mares para sobreviver se encontram em meio a poluição – ou já esquecemos as manchas de óleo no nordeste que atingiram milhares de trabalhadores e das constantes notícias de contaminação dos rios pelo garimpo? Nada disso é coincidência. Inclusive, o que organiza todos esses exemplos difusos tem nome e sobrenome: racismo ambiental.

O governo Bolsonaro operou com maestria os interesses do agronegócio e das mineradoras. Aprovou a liberação de cerca de 1500 tipos de agrotóxicos (alguns proibidos em vários lugares do mundo), mentiu em eventos internacionais sobre os índices de desmatamento e segue dando batalha pela aprovação do marco temporal, que se aprovado significará um retrocesso imensurável para os povos indígenas. Ricardo Salles, enquanto foi ministro do meio ambiente, atuou sistematicamente na flexibilização das leis de proteção ambiental. Diante das centenas de cidades impactadas pelas enchentes neste início de 2022, o presidente recusou ajuda de outros países e reclamou de estarem atrapalhando suas férias, quando pressionado pela situação de calamidade em que milhares de famílias se encontram. Bolsonaro é aliado de primeira ordem desse sistema que explora e assassina.

Enquanto o presidente andava de jet ski em Santa Catarina, a resposta do povo em meio às tragédias da virada do ano mais uma vez foi a solidariedade de classe. Onde havia gente sem casa, brotava como semente gente se organizando para ajudar. Os estudantes não ficaram de fora. No sul da Bahia, por exemplo, o DCE da UNEB em articulação com outros movimentos, arrecadou doações para distribuir para os mais afetados pelas enchentes. Tudo que nóis tem é nóis!

É urgente interromper a tranquilidade dos poderosos que insistem em culpar a chuva por suas ações assassinas. O ano de 2022 se apresenta enquanto um grande palco, em que as principais questões do nosso país estarão em disputa. É imprescindível que o debate ambiental seja tratado com a centralidade e urgência que lhe cabe, por aqueles que se propõem a refletir um projeto de país que sirva ao povo. Não podemos nos isentar, não podemos negociar. Ou interrompemos a destruição ambiental e repensamos nosso modelo de desenvolvimento, ou não haverá amanhã. Como diz Sônia Guajajara, não é possível vida no planeta, não é possível a continuidade da humanidade, da biodiversidade, se a gente não cuidar da mãe Terra. Cuidemos.

*Clara Delmonte é diretora de Direitos Humanos da UNE.

*Carol Leal é 3ª Vice Presidente da UNE.