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Bolsonaro Recuou?

Os atos bolsonaristas, o fascismo e a tarefa imediata da esquerda

10 de setembro de 2021

São Paulo. 10 de setembro de 2021. Por Julia Almeida e Luiza Foltran*

As manifestações Bolsonaristas do 7 de setembro possuíram caráter protofascista e apontaram horizontes preocupantes. Era de se esperar que em meio a crise econômica e o aumento da fome, com mais de 600 mil mortos pela COVID-19, com o escândalo da Covaxin e inúmeras outras relações com corrupção e envolvimento com as milícias, Bolsonaro não permanecesse com uma base social significativa tão coesa. O clima de idolatria e as pautas antidemocráticas, que visam aumentar o poder de Bolsonaro, inauguram algo inédito na forma de apoio a governos no Brasil. O mais importante é entender que Bolsonaro não saiu mais fraco e segue com sua estratégia golpista intacta.

De igual modo, a entrada de Temer e a nota de “recuo” de Bolsonaro não representam distorções de estratégia. Bolsonaro já fez essa movimentação de subir e descer o tom em outros momentos. Sua radicalização também cumpre o papel de prover novos acordos e arranjos momentâneos e, nesse sentido, ganhar mais tempo dentro da lógica institucional, em que se mantém cada vez mais isolado. Simultaneamente, esse suposto recuo também cumpre o papel de desorganizar uma reação mais contundente de diversos setores da oposição. A tentativa sistemática de parecer que está blefando, tem permitido a Bolsonaro o alargamento de fronteiras legais e aumento do autoritarismo.

Dessa vez parece que a questão foi além, as pressões inflacionárias se acumulam na economia brasileira, sem um acordo com o STF em relação aos precatórios, Guedes perderá a flexibilidade que precisa na gestão do orçamento no próximo ano. Os investidores já antecipam a crise e se reposicionam, a queda na bolsa por dois dias seguidos, com declarações como a de Gustavo Franco, significam uma tensão concreta que precisará ser administrada por Bolsonaro. A pressão inflacionária segue alta, a interrupção ou redução do fluxo do investimento internacional aumenta ainda mais a pressão sobre o câmbio e a inflação. O remédio liberal para esse quadro será a subida do juros, o que agravará o quadro fiscal e o desemprego. Bolsonaro precisa de tempo para equacionar a dimensão econômica de desarranjos iniciais que sua escalada autoritária possa representar na economia já débil. No entanto, não à toa sinaliza na sua live que a nota é produto da necessidade de ganhar mais tempo e circula, simultaneamente,  notícias falsas nos grupos bolsonaristas de que teria decretado estado de sítio.

A dinâmica do caos, e a estratégia de duas narrativas díspares, permitem inúmeros cenários. Entretanto, isso não pode arrefecer a dimensão da caracterização de elementos das ações concretas de Bolsonaro e a indissolubilidade do cenário tenso para uma possível reeleição, cuja derrota não se vislumbra sem um acordo com os militares e uma saída para a família Bolsonaro. A dinâmica da exceção predomina e o acordo na agenda ultraneoliberal do governo permite alguma margem de apoio dos principais setores econômicos. Assim como, a falta de capacidade de construção de uma candidatura de 3ª via, reforçam após o 7 de setembro, que a única figura da direita com apoio popular, permanece sendo Bolsonaro. Por isso, Lira teve um tom apaziguador, por isso a demonstração de força de Bolsonaro foi tão importante. 

Por fim, o caráter protofascista dos atos e suas consequências, não podem ser ignorados. Compartilhamentos sete elementos essenciais para essa análise: 

1. Democracia e liberdade: As manifestações do 7 de setembro concentraram as suas chamadas em “liberdade” e “democracia”, disputando o seu significado. A “liberdade de expressão” de poder falar o que quiser e lidar com a pandemia como bem entender. E uma democracia, que, para ser implementada, precisa acabar com a “ditadura da toga”. Por mais que o Bolsonaro e o bolsonarismo carreguem uma política autoritária e protofascista, a sua disputa vem se tornando mais sofisticada, ao não se opor à democracia (que é defendida por mais de 80% dos brasileiros), mas ressignificá-la. 

2. Dos inimigos: os cartazes que pediam a intervenção militar e a criminalização do comunismo impressionaram, mas essas duas reivindicações se mostraram com pouca adesão diante da “limpeza” do STF, a autorização do Bolsonaro para agir - sob coro do “eu autorizo!” - e a defesa da liberdade de expressão. O STF se tornou o inimigo interno, que personaliza o “sistema”, fortalecendo o sentido anti-sistêmico para a base bolsonarista. É uma pauta profundamente ideológica, mas que amarra os problemas econômicos e pandêmicos (todos são culpa do STF).

3. Sobre os números: a lógica bolsonarista é diferente da nossa. Acertamos na propaganda pós-atos e foi uma vitória ganhar o #ForaBolsonaro no twitter, mas não podemos medí-los a partir da nossa dinâmica. O peso da máquina de convocatória e o alarde sobre a possibilidade numérica na casa dos milhões, nos levou a acreditar que o dia 7/9 teria sido um fracasso. No entanto, esse alarde numérico é central na estratégia da máquina de fake news para viabilizar a disputa de narrativa depois sobre os números - o que já está acontecendo nos grupos de zap. Sua avaliação não se baseia na proporção entre meta X realidade, mas em ser capaz de construir uma narrativa de maioria para sua base social - que é minoritária, mas se mantém firme em seus 25% - e demonstrar forças para seus opositores. Bolsonaro cumpriu ambos os objetivos. Foi a maior manifestação da direita desde o impeachment em São Paulo e Brasília, uma recuperação diante da sequência de atos de poucos milhares que vinham ocorrendo, com capilaridade em outras 178 cidades, incluindo as 27 capitais. 

4. Ato em defesa do governo: se compararmos com os governos petistas, esse foi o maior ato para defender a continuidade do governo. Em meio à pandemia, beirando os 600 mil mortos, à fila do osso, ao desemprego e à inflação batendo recordes. Por mais que a manifestação da Paulista seja majoritariamente masculina, branca (que reflete os números do IBOPE), com forte presença acima dos 50 anos e de classe média, essa manifestação marcou a volta de uma presença popular para as ruas - em especial das pessoas que participaram das caravanas. 

5. A presença de setores militarizados e armados: a participação significativa de militares, policiais e pessoas com porte de armas, deram uma conotação de ameaça em outro patamar. Essa manifestação abriu um debate sobre a legalidade da participação de policiais militares em atos, com reunião entre os governadores onde havia receio de descontrole desse setor. Houve nota da Associação Nacional de Policiais Militares após esse fato, rechaçando a interferência de governadores e apontando seu alinhamento com as Forças Armadas. Estudo do Fórum de Segurança Pública apontou que 3 de cada 10 PM’s tinham intenção de ir aos atos (essa estimativa não foi aferida). Apesar de não ter ocorrido nenhum incidente, as manifestações foram marcadas por essa áurea concreta de ameaça armada. 

6. Alto grau de coesão e controle: em que pese a frustração da base bolsonarista que foi pra Brasília esperando ser parte de uma sublevação popular armada, o grau de controle dos manifestantes impressionou. A tentativa de invasão ao STF não chegou nos finalmentes não por falta de condições para fazê-lo. Não houve exibição de armas, muito menos tiros. Os militares não eram maioria, mas foram representativos e a mística patriótica transformou aquela multidão em exército, cantarolando “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”. Bolsonaro forçou os limites da institucionalidade, ao mesmo tempo que provava ter controle sobre a sua base mais fiel. Eles cumpriram o combinado e blindaram uma reação mais radicalizada das outras instituições.

7. O 7 de setembro foi uma virada de chave. Bolsonaro subiu muito o tom em seu discurso e, da mesma maneira como vem acontecendo sucessivamente, não houve resposta à altura. Lira e Fux não fizeram mais do que pronunciar meia dúzia de palavras em repúdio. O PSDB anunciou a sua entrada na oposição com a bancada dividida e sem opinião sobre o impeachment. Outros partidos de direita, como DEM, PSL, PSD, Solidariedade, soltaram notas mais ou menos abstratas. Os setores mais desconfortáveis da burguesia brasileira não tem porque desembarcar enquanto sua agenda econômica segue sendo aplicada. Bolsonaro triplicou a aposta de um ensaio golpista e a reação foi diminuta.

Do lado de cá

Não é tempo de imobilismo, nem divisionismo. Para ampliar as mobilizações de ruas, a esquerda precisa se despir de duas teses que permearam a vanguarda no último período: 1. Basta esperar Bolsonaro sangrar sozinho e criar as condições para derrotá-lo em 2022; 2. É necessário se restringir a setores ultra-radicais da esquerda. A primeira cai por terra pois desconsidera a natureza fascista do bolsonarismo e trabalha com uma ideia de normalidade democrática que não existe, pelo menos, desde 2016 - e fica mais evidente após mais este último ensaio golpista. A segunda também não se sustenta, pois a necessidade de ampliação das mobilizações, sem que haja sequestro pela direita arrependida, deve partir de uma frente de esquerda unificada. A despeito das limitações que a campanha nacional Fora Bolsonaro possa ter, é o espaço mais amplo articulado, com representações nacionais de diversos movimentos e sindicatos e com poder de convocatória. 

Entretanto, mesmo considerando essa composição mais ampla dos setores progressistas, não podemos hesitar em ampliar o “Fora Bolsonaro” após o 7 de setembro. Portanto, sendo coerente com essa caracterização, é urgente a composição de uma comissão entre os representantes da Campanha Nacional Fora Bolsonaro e lideranças partidárias da esquerda com o movimento impulsionado pela direita arrependida. Construir o maior ato de oposição ao bolsonarismo é tarefa histórica e etapa crucial de todes aqueles que estão dispostos a barrar o fascismo no Brasil. Bolsonaro não recuará sozinho, precisamos empurrá-lo. 

Julia Almeida é membro da executiva estadual da insurgência/SP, advogada, mestre em Direito pela UFRJ e integrante do NEV/USP.

Luiza Foltran é membro da Executiva Nacional da Insurgência, da Frente Povo Sem Medo, mestranda e pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital (EACH-USP). 

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1. grande operador de fundos do mercado financeiro. https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/09/06/7-de-setembro-chance-de-golpe-nao-e-mais-delirio-paranoico-diz-gustavo-franco.ghtm

2. Segundo pesquisa publicada pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital: https://www.monitordigital.org/2021/09/08/manifestacao-em-apoio-ao-presidente-bolsonaro-07-09-21/