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BR-319: A estrada para o fim do mundo

Reconstrução de rodovia que liga Manaus a Porto Velho ameaça 69 terras indígenas e avança com manobras do governo. Fábio Bispo e Naiara Galarraga Gortázar acompanham a devastação

8 de novembro de 2021

Amazônia: Bolsonaro e a estrada para a devastação

Presidente atropela leis ambientais para terminar a BR-319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho. Obra custará R$ 2 bilhões e pode aumentar em 1200% o desmatamento ilegal na região, ameaçando 69 aldeias, que sequer foram ouvidas

BR-319 liga Manaus a Porto Velho; com reconstrução da via, desmatamento deve explodir na Amazônia, alertam pesquisadores (Foto: Dnit/Divulgação)

“Quando a gente fala que está tendo grilagem [roubo] de terra em nossas áreas, as pessoas não acreditam. Então espia aí esse ramal saindo da BR. Maior tristeza.” Por mais de 40 quilômetros, o cacique, de forma anônima, registra clarões abertos em áreas protegidas de floresta, o que inclui uma estrada de terra clandestina. Segundo o indígena, este desmatamento é recente e impulsionado pela promessa do governo federal de reconstruir a BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO). 

“Com o asfaltamento deste trecho, a tendência é acabar com o pouco que resta da Amazônia”, continua o cacique, em um vídeo feito em abril na Reserva do Lago do Capanã, em Manicoré (AM). O ramal ilegal se multiplica, bloqueia igarapés e segue “sabe lá Deus pra onde”. 

A realidade exibida pelo cacique – de invasões, desmatamento e roubo de terras – tornou-se uma ameaça para 69 Terras Indígenas onde vivem 18 povos, incluindo indivíduos totalmente isolados. Tudo por conta de uma promessa do presidente Jair Bolsonaro feita ainda na campanha eleitoral e que deve custar R$ 2 bilhões.

A degradação se espalha pela floresta: o simples projeto de asfaltamento da rodovia valoriza os terrenos, abrindo espaço para a especulação imobiliária e a grilagem de terras, além de facilitar o acesso de invasores e madeireiros ilegais a uma extensa área de mata preservada. 

Dos 885 km da rodovia inaugurada em 1976, o impasse hoje está nos 478 km que cortam um dos blocos mais preservados da floresta amazônica e onde o traçado original da rodovia, conforme inaugurado pelos militares, não existe mais. Dividido em 2 lotes para os processos de licenciamento e licitação das obras, o trecho fica entre os municípios de Humaitá e Careiro da Várzea, no Amazonas.  

O desmatamento na área de influência da BR disparou nos últimos cinco anos e atualmente é duas vezes e meia maior do que em toda a Amazônia, segundo pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), em artigo publicado pela revista científica Land Use Policy. A maior parte desse desmatamento está concentrado no sul do Amazonas e em Rondônia. Em Humaitá, por exemplo, onde termina um dos trechos asfaltados da BR-319, o desmatamento ilegal aumentou 12 vezes em cinco anos.

“E tudo isso ocorre antes mesmo da conclusão da rodovia, o que só reforça a tese de que a BR-319 já é uma das principais causas do desmatamento e da grilagem de terras na Amazônia”, afirma Lucas Ferrante, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo, que faz uma projeção catastrófica: com a obra da BR-319 e de outras vias planejadas pelo governo, o desmatamento na Amazônia poderá aumentar 1.200% até o ano de 2100 e provocar um colapso ambiental sem precedentes.

Indígenas de diversas etnias sentem os efeitos da reconstrução da rodovia antes mesmo de ela acontecer. “Eles [invasores] já estão tomando conta dos nossos castanhais”, alerta Rosa André Pinheiro da Silva, 70, do povo Kambeba. Essas  árvores centenárias de alta importância para a subsistência dos povos são as primeiras a irem ao chão na abertura das picadas e trilhas na floresta. Viram pontes para cruzar os igarapés. 

Além da ameaça a terras indígenas, também estão na área de impacto da rodovia 41 Unidades de Conservação, segundo levantamento do Observatório da BR-319. 

Intitulado “Grilagem de terras na rodovia BR-319 como ponta de lança para o desmatamento amazônico”, em tradução livre, o estudo dos pesquisadores do Inpa mostra que a rodovia já exerce influência direta sobre 98% do desmatamento registrado no interflúvio dos rios Madeira e Purus. Dados divulgados pelo jornal O Globo também mostram que, em 2020, foram abertos 410 quilômetros de estradas nas regiões de influência da rodovia. Um aumento de 13% em relação ao ano anterior.

“As estimativas do estudo são bastante generosas, porque na verdade o desmatamento vai aumentar muito mais que 1.200% até o ano de 2100 e influenciar, direta ou indiretamente, outras áreas ainda preservadas da floresta”, diz Ferrante. 

Bolsonarista de toga 

O projeto de reconstrução da BR-319 desengavetado por Bolsonaro já foi proposto nos governos de Fernando Henrique (1994-2001), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). Todos esbarraram na questão ambiental. Entretanto, o plano de Bolsonaro de ocupar a Amazônia a qualquer custo tramita a toque de caixa no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), do Ministério da Infraestrutura, que atropela a legislação e ignora a necessidade de ouvir as comunidades antes das obras. 

O projeto também encontrou no Judiciário um aliado para driblar as exigências ambientais que há anos impedem a reconstrução: trata-se de Humberto Martins, presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que é próximo a Bolsonaro e chegou a ser considerado pelo presidente para uma vaga no STF.

O DNIT lançou, em agosto de 2020, o edital para reconstrução do lote C (Lote Charlie, uma parte da estrada a ser reconstruída), mas sem estudos de impacto, licenças ambientais e consultas aos povos indígenas. O MPF conseguiu suspender a licitação, mas acabou desautorizado por Martins. 

O magistrado permitiu, em decisão liminar, a contratação de empresa para iniciar as obras num dos trechos mais críticos da rodovia. Sem alarde, em abril, o presidente do STJ sustentou que o governo não precisava de licenças e estudos ambientais para as obras no local e alegou que a BR-319 é “imprescindível” para o transporte de “medicamentos, vacinas e insumos hospitalares, notadamente oxigênio”. Ele se referia à crise em Manaus, quando infectados por covid morreram por falta de oxigênio nos hospitais.

A decisão de Martins abriu caminho para a contratação da LCM Construções, que já iniciou “alguns trabalhos”, conforme anunciou o general Santos Filhos, diretor-geral do DNIT, em reunião na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia, em junho deste ano. As obras no trecho C de fato começaram em julho. Em outro ponto crítico da rodovia, o chamado Trecho do Meio, as obras devem começar em janeiro de 2022, segundo o general.

Procurado, o ministro Humberto Martins disse que não comenta as próprias decisões fora do processo. 

Apesar da derrota do MPF neste embate jurídico — ainda há um recurso a ser julgado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) —, os procuradores consideraram má-fé do DNIT o lançamento do edital sem cumprir a legislação. 

“E o que é pior: permite que sejam criadas falsas expectativas na população em torno da recuperação da rodovia BR-319, com indisfarçável motivação política”, diz trecho da petição assinada por 15 procuradores federais. 

Os procuradores sugerem ainda que “o DNIT está movimentando a máquina administrativa (e agora a máquina judiciária) para promover uma licitação sem nenhuma viabilidade jurídica”.

Em nota, o DNIT afirmou que a liberação do lote C da rodovia segue o que foi firmado em acordo com a Funai em 2007, já que as obras “não tratam da ampliação de capacidade e sim da conclusão de obra inacabada”. O órgão disse também que está preocupado com a questão ambiental, já que “contará com passagens de fauna subterrâneas e aéreas, implantações de recuos e recuperação de áreas degradadas”.

Sobre a consulta aos povos indígenas, o DNIT afirmou que “será apresentado e debatido com as comunidades indígenas potencialmente afetadas tão logo o documento seja declarado apto pela Funai”. Leia aqui a íntegra da resposta.

Enquanto isso, o governo federal iniciou, em setembro, as audiências públicas para as obras do Trecho do Meio da rodovia. A Justiça Federal chegou a suspender as audiências a pedido do MPF, em 27 de setembro. Na ocasião, a juíza federal Mara Elisa Andrade destacou que, com o “agravamento do desmatamento, queimadas e degradação florestal”, é necessário mais rigor para se conhecer “os reais riscos oferecidos pela BR-319”. No mesmo dia, entretanto, o TRF1 acatou o pedido do governo e derrubou a decisão. As audiências foram mantidas.

Para o MPF, trata-se de crime ambiental a tentativa do governo de licenciar a obra por trechos, com audiências públicas setorizadas, antes de realizar estudos abrangentes que contemplem toda a extensão da estrada.

O fatiamento dos estudos ambientais da rodovia em trechos a serem licitados, como quer o governo federal, não é capaz de mensurar outros impactos que prevêem a conclusão da BR-319, dizem os procuradores. Eles citam como exemplo a rodovia AM-366, que abriria acesso viário a uma imensa área de floresta ainda intacta — o que traz especulação imobiliária, grilagem e invasores.

O lote C da rodovia nunca foi alvo de um estudo de impacto ambiental. Essa parte da obra e o Trecho do Meio demandam a construção de mais de uma centena de pontes, reconstrução de sistema de drenagens e até mesmo alterações no traçado original da rodovia. Já os quatro estudos ambientais apresentados para o Trecho do Meio nunca foram aprovados — o mais recente, de 2020, está sob análise dos órgãos ambientais.

“Cria-se uma confusão orquestrada propositalmente. Realizam-se audiências fakes (sem reconhecimento legal, por não incluir todas as partes envolvidas) e há um lobby tremendo, principalmente na comunidade local”, analisa o professor e pesquisador Luis Fernando Novoa, da Universidade Federal de Rondônia. 

Nem a consulta indígena nem o licenciamento adequado aparecem de forma clara nos planos do governo federal, que não titubeia ao anunciar que vai iniciar e concluir a obra em nome do “desenvolvimento e da segurança nacional”. Para comunidades tradicionais que vivem na região, entretanto, a reconstrução da rodovia é sinônimo de insegurança.Amazônia: Bolsonaro e a estrada para a devastação

Presidente atropela leis ambientais para terminar a BR-319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho. Obra custará R$ 2 bilhões e pode aumentar em 1200% o desmatamento ilegal na região, ameaçando 69 aldeias, que sequer foram ouvidas.

Viagem pela BR-319: estrada rumo à destruição da Amazônia

Percorrer os quase 900 quilômetros da via que cruza uma das áreas de floresta mais bem preservadas do Brasil permite observar a olho nu como o desmatamento avança. Bolsonaro pretende asfaltá-la totalmente

Naiara Galarraga Gortázar, El País Brasil, 7 de novembro de 2021

O sol já está alto. São sete horas da manhã quando um homem desce eufórico de um caminhão no posto de gasolina. Ele se aproxima da primeira mulher à vista, se apresenta com pompa como Carlinhos Raimundo da Auxiliadora e dispara: “Tem marido?”. Cheira a álcool e balança uma nota de 200 reais, dessas raramente utilizadas no Brasil. Exultante, procura companhia para comemorar que acabam de pagá-lo regiamente por um trabalho, e algo ainda mais importante. “Estou tão feliz, finalmente comprei uma terra!”. A quem o avisa para tomar cuidado com o dinheiro, responde entre risadas, como se fosse um cowboy de filme: “Eu tomo, com um 38 na cintura”. A camiseta para fora da calça impede de saber se realmente está armado.

Isso é Realidade, terra prometida a aventureiros e pobres. E este, o primeiro posto de gasolina após se dirigir por 500 quilômetros ao norte pela BR-319, a estrada mais controversa da Amazônia. Completar o trecho asfaltado é a grande promessa do presidente Jair Bolsonaro para a região, que ele considera estratégica ao desenvolvimento econômico local. Percorrê-la de ponta a ponta, de Manaus a Porto Velho, incluindo os 400 quilômetros de terra, permite à equipe do EL PAÍS observar a olho nu o impacto produzido pelos colonos que desembarcam atraídos por promessas e terras a bom preço. O desmatamento avança velozmente.

No mapa, a estrada é um traço minúsculo. Pelo olhar de um drone, uma linha reta alaranjada em um cerrado manto verde que parece brócolis. Provavelmente poucos dos que participam da cúpula COP26 de Glasgow sabem de sua existência, mas os que observam a maior floresta tropical do mundo não tiram dela seus olhos. O desenlace desta obra dirá se a parte mais virgem da selva amazônica continuará protegendo a biodiversidade e capturando dióxido de carbono ou não. E isso influirá no restante do planeta porque as florestas como essa são cruciais para regular a temperatura global.

O povoado de Realidade é uma sucessão de bares, motéis, oficinas, igrejas evangélicas e casinhas de madeira em ruas de terra que frequentemente se transformam em um lamaçal.

Nos últimos anos cresceu até merecer escola e posto de saúde, um boom que se assenta em negócios lucrativos criados nas margens da estrada que dizimam a selva: o corte ilegal de madeira, a criação de gado e plantações de soja que atraem pessoas de outros Estados.

A lei é um conceito distante e maleável. É um território tenso onde prevalecem os fatos consumados e o receio ao forasteiro que investiga. Ninguém chega para fazer turismo e por engano, vem com um objetivo. Todos estão em alerta constante. E em centenas de quilômetros não há um policial. Os locais esperam ansiosos o asfalto há décadas, convencidos de que trará prosperidade. Mas para cientistas e ecologistas é um cenário de pesadelo. Eles temem que o monstro que viram crescer em Realidade nesses anos suba estrada acima.

Os 887 quilômetros da BR-319 cruzam uma das áreas mais bem preservadas da floresta que cobre a metade do Brasil, uma superfície do tamanho da União Europeia repleta de rios, correntes e lagoas. Durante meio ano, a estrada é um atoleiro. Os viajantes deixam para trás fazendas batizadas como Grande Esperança, Terra Rica e Deus Me Deu.

Entre os mais envolvidos na batalha a favor do asfalto está Dona Mocinha. Ela tem uma pousada no quilômetro 260, óculos enormes, e disposição suficiente para ir à escola noturna aos 64 anos. Ela se instalou na Unidade de Conservação Igapó Açu há décadas, uma reserva de desenvolvimento sustentável de palafitas de madeira para evitar as enchentes. “Houve uma época em que de novembro a maio por aqui ninguém passava. Ninguééém”.

Agora, com a estrada mais ou menos transitável todo o ano, vê de sua varanda mais tráfego de caminhões e veículos de tração nas quatro rodas. “Dizem que a estrada (asfaltada) terá impacto, mas qual impacto? Olhe, eu não sou bióloga, mas o maior impacto foi gerado quando a construíram”, nos anos setenta, durante a ditadura. Deve ter sido uma obra titânica porque o terreno é pantanoso e, por isso, “é uma área muito produtiva, rica em biodiversidade. “Sulcada por rios muito ricos em peixes, jacarés e mosquitos”, diz Rômulo Batista, do Greenpeace.

Mesmo a simpática Dona Mocinha, da Associação de Amigos e Defensores da BR-319, sabe que as melhorias que a pavimentação traria à sua vida não viriam sozinhas. “Quando chega o desenvolvimento chega o desmatamento, invasões, prostituição, drogas... mas mais preocupante é não ter a BR-319 para ir e vir”, reflete em sua cadeira de balanço. Eles se sentem presos nesse belíssimo mas isolado rincão porque é a única conexão terrestre de Manaus, a capital do Estado do Amazonas, com o coração do Brasil.

As pressões chegaram à casa da senhora antes do o asfalto trazidas por compatriotas vindos de longe com suculentas ofertas, atraídos pelas fabulosas oportunidades que vislumbram. “Muitos vêm de Rondônia e Mato Grosso. Procuram terreno, terreno, terreno. Já digo a eles que não, que não tenho terras para vender, que isso é uma reserva natural! Olhe, cheguei aqui há 44 anos e jamais vendi um lote de terra. E fui até ameaçada de morte”, afirma. Vender parcelas de uma reserva é crime. Mas descomunais extensões de terras públicas margeiam a rodovia. Qualquer um se apropria facilmente delas com documentos falsos e cumplicidade política. É a chamada grilagem.

O panorama é um aperitivo do catastrófico cenário antecipado por cientistas como a agrônoma tropical Jolemia Chagas, que monitorou o trecho entre os quilômetros 250 e 280. “O asfalto vai intensificar as invasões dos últimos cinco anos”, alerta. Isso traz especulação imobiliária, conflitos violentos com os locais e agrava problemas ambientais de consequências tangíveis. Ela destaca que “a retirada da cobertura florestal interfere diretamente na produção dos rios voadores (correntes de vapor de água) que abastecem parte da América do Sul, influenciando diretamente na produção agrícola”.

A região é povoada por famílias que vivem, principalmente nos extremos da rodovia, da agricultura de subsistênciae do comércio. E indígenas, 18 povos dispersos e afastados da estrada principal. Uma das vias de terra secundárias que começaram a ser construídas praticamente toca oterritório onde vive um grupo de nativos isolados, umas 30 pessoas, provavelmente descendentes dos juma que sobreviveram a uma matança em 1964, diz o indigenista Pedro da Silva, do Conselho Missioneiro Indígena.

Com o aumento do tráfego, surgiram restaurantes, fazendas e igrejas. Pela via, circulam caminhões, carros que carregam toda a vida de alguém que persegue um futuro melhor, ou o negócio de sua vida, lícito ou não, motoqueiros cinquentões viajando... Percorrê-la significa sair de Manaus por uma estrada asfaltada com a pista cuidadosamente pintada de amarelo e o acostamento, de branco. Pouco depois, o rio Amazonas, que se cruza de balsa. O transporte fluvial, caro e lento, é o mais comum.

Km 198. Fim do asfalto. Bem-vindos ao chamado trecho do meio, que perdeu a pavimentação no final dos anos oitenta pelo abandono. Graças a isso e às reservas ambientais e indígenas criadas a partir de então, o impacto dos humanos é muito menor do que em outras regiões amazônicas.

Mesmo o olho menos treinado distingue de dentro do veículo quando se circula dentro de uma reserva ecológica. As árvores e a vegetação formam um manto verde tão denso que impede ver mais à frente. Mas os melhores olhos sobre a região são os satélites, que fotografam parcelas de três metros para medir onde e a qual velocidade a floresta tropical é destruída. O desmatamento já estava em crescimento, mas com Bolsonaro disparou. O último ano foi o pior dos últimos 12 com o desaparecimento de 11.000 quilômetros quadrados de árvores. Como se a cada minuto do último ano a Amazônia perdesse o equivalente a três campos de futebol, diz o Greenpeace.

O fazendeiro Joeliton Silva, 53 anos, não nega o desmatamento. Ele mesmo contribui há anos abrindo caminhos entre a vegetação para outros que depois cortam as árvores mais valiosas em um negócio bilionário. Desafia os jornalistas a contar o que chama de “a verdade”, uma tese baseada no seguinte argumento: a magnitude da floresta é tamanha que o dano é mínimo. Contra o consenso científico e citando um cientista concreto, o afável Silva afirma que “o efeito da ação humana sobre a temperatura é insignificante”. E para finalizar, mostra suas contas: “Nessa velocidade, demoraremos 140 anos para desmatar 10% da Amazônia”. É um discurso que divulga pelo YouTube de sua casa, nos arredores de Realidade, a cidade dos aventureiros.

Está convencido de que o alarme internacional pelo desaparecimento da riquíssima flora e fauna amazônica é exagerado, nada além de uma desculpa para camuflar a cobiça dos estrangeiros que pretendem roubar do Brasil suas riquezas naturais. Dono de duas fazendas que somam 6.400 hectares, tem uma à venda porque sua incursão na piscicultura não deu certo. Apesar da abundância de rios, peixes também são criados.

Contribuir para atividades ilícitas não tira o sono de Silva porque, afirma ele, desmatar legalmente é impossível. Ele tentou, é árduo e não compensa. É melhor negócio, diz, fazê-lo na marra, e se for pego recorrer das multas —que diante da burocracia, acabam sendo poucas vezes cobradas de fato. Fã de Bolsonaro, mostra orgulhoso um vídeo em que abraça o ministro da Infraestrutura enquanto este afirma que “a BR-319 já está se materializando”.

O discurso de Bolsonaro de que a proteção ambiental impede o desenvolvimento tem muita força e dá asas à exploração predatória, ao lucro fácil e à impunidade. Triunfa “a ideia perversa de que, se os outros países desmataram para se desenvolver, esse é o preço a ser pago”, afirma Fernanda Meirelles, em Manaus, na sede do Observatório da BR-319, uma aliança de ONGs que supervisiona a estrada. “Não somos contra a rodovia, mas queremos que antes (de asfaltar) sejam resolvidos os problemas de titularidade da terra, de fiscalização, como gerir as unidades de conservação...”, diz. Após prolixas explicações dos inumeráveis desafios, finaliza sorridente: “Meu sonho seria uma passarela elevada”.

Os ativistas ambientais desconfiam do mantra do Governo e dos defensores do asfalto, que afirmam que a obra será sustentável. “Mais de 90% do desmatamento acontece em um raio de até 100 quilômetros das grandes estradas”, diz Batista, do Greenpeace, e acrescenta que mesmo as rodovias projetadas com critérios de sustentabilidade, como a BR-163, que corre paralela rumo ao leste, causaram graves danos socioambientais. Mas também sabem que a região é pobre e são necessários negócios que tragam prosperidade. Sua receita é exploração sustentável.

Inaugurada em 1976, a BR-319 tem quase 900 km e é a única ligação rodoviária de Manaus ao resto do Brasil, via Porto Velho (RO). Contra a praxe, foi entregue asfaltada, mas a falta de manutenção fez com que perdesse o pavimento até ficar intransitável, em 1988.

Dona Mocinha participou das recentes audiências públicas, a melhor amostra de que o processo burocrático avança. O Governo Bolsonaro deu mais impulso ao projeto do que qualquer predecessor. Falta o Ibama, órgão governamental que gere a política ambiental, autorizar ou não a pavimentação. Nenhum dos consultados acredita que irá negar, mas as ONGs lembram que os indígenas já deveriam ter sido consultados. Depois viria o desafio do financiamento.

Frequentemente, um caminhão preso no atoleiro corta totalmente a circulação mesmo nesses dias do final da temporada seca. Um rebocador vai resgatá-lo. É impressionante ver como o imenso veículo patina. O caminhoneiro Aulcides Costa, de 49 anos, chegou a ficar oito dias preso. “A comida e a água mineral acabaram no quinto dia”, lembra.

Estas áreas eram incomunicáveis até que a internet abriu a elas uma janela ao mundo, as transformou em comunidade e as entretém durante a longa estação chuvosa. É muito útil. Qualquer um pode saber em tempo quase real como está o caminho graças aos 46 grupos de WhatsApp da Associação de Amigos da BR-319, que tem quase 10.000 membros.

Com o avanço rumo ao sul, surgem espaços abertos nas margens. Cada vez mais frequentes e maiores. De repente, vacas e mais vacas pastando placidamente. A bucólica cena disfarça seu efeito nefasto sobre a Amazônia. As próprias reses e o corte de árvores para abrir pastos são os principais responsáveis pelas emissões brasileiras de gases de efeito estufa, que aumentaram mesmo no ano da pandemia, enquanto mundialmente desabaram pela inédita paralisação. Após o corte, os pastos servem para se apossar da terra e depois chegam as plantações de soja. No caos aparente existe um método.

O empresário Antônio Graças, de 71 anos, está convencido de que é agora ou nunca. Em sua loja em Carreiro de Castanho, no quilômetro cercado de camas, eletrodomésticos e ventiladores, opina que não há ninguém mais propício do que um presidente formado nos quartéis e nostálgico da ditadura, com um ministro da Infraestrutura que serviu como militar na Amazônia, para dar continuidade ao projeto impulsionado pelos generais há meio século. Desbravaram a selva para construir estradas. Doaram terras. Em plena Guerra Fria, a obsessão era povoar aquela imensidão, habitada durante milênios por indígenas, para se assegurar de que ninguém a roubaria. “Integrar para não entregar” era o lema da época.

Graças deseja fervorosamente que Bolsonaro não deixe a ocasião passar. “Se não der um empurrão inicial para que uma empresa faça cem quilômetros, outra, mais cem... não vai sair. Então, somente Deus dirá”.

O empresário descarta qualquer risco de que os crimes ambientais aumentem porque para isso o Estado está aí; e enumera uma longa lista de instituições com poder fiscalizador. Existem no papel. Na prática, é outra história. Rumo ao final da BR-319, onde cruza com a mítica rodovia Transamazônica, se chega a Humaitá. Uma turba incendiou em 2017 a sede do Ibama na cidade. O vice-presidente brasileiro, o general Hamilton Mourão, afirma que, com o asfalto, o risco de desmatamento pode aumentar e será preciso reforçar a vigilância, mas afirma que também facilitará a chegada da Polícia Federal.