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Braço forte, e-mail amigo: um plano militar para o Brasil

Os militares se preparam para as eleições presidenciais de 2022, The Intercept Brasil.

18 de julho de 2021

Um alto oficial do Exército mandou que fosse distribuído esta semana um questionário elaborado por três instituições privadas e que servirá para *"criar condições objetivas para o Brasil proporcionar um futuro de justiça e felicidade ao povo brasileiro"*. 

O e-mail, enviado por um coronel a pedido do *general Valério Stumpf Trindade, comandante militar do Sul*,  encaminha uma pesquisa de algo chamado de "Projeto Nação". 

Sim, é exatamente o que você pensou: *uma espécie de plano de governo para o país*, elaborado com a colaboração de militares da ativa por institutos privados que pertencem, também, a militares.

Ele nasceu das mentes de um militar de extrema direita chamado *Luiz Eduardo Rocha Paiva* e de uma figura da várzea política chamada Thomas Korontai.

Korontai vive em Curitiba,  já tentou ser candidato a presidente da República em 2018 (mesmo sem ter um partido legalmente registrado) prometendo extinguir o MEC, encabeça um tal Instituto Federalista e espalha fake news sobre o voto eletrônico no Brasil e a fraude inventada eleitoral por Donald Trump nos EUA aos poucos seguidores que possui nas redes sociais.

Mas o nonsense se revestiu de alguma seriedade quando foi abraçado pelo Instituto Villas Bôas, criado pelo general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante geral do Exército, autor do tweet que ameaçou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus de Lula, em 2016. 

Jair Bolsonaro já disse que foi Villas Bôas quem o elegeu presidente em 2018. 

O site do Instituto Federalista dá uma pista da entrada de Villas Bôas na jogada: "Através do Instituto Sagres, tivemos conhecimento [de] que o general Villas Boas, ex-comandante do Exército, sentia a necessidade e trabalhava no sentido de criar um instituto [e] que entre suas finalidades estava a elaboração do referido projeto.

Assim, as três entidades uniram-se com o objetivo de elaborar um projeto de nação para o Brasil".

Os militares e seus negócios

O Instituto Sagres é uma empresa fundada por militares da reserva para ganhar dinheiro em Brasília. Uma entre várias, como, por exemplo, o Instituto Força Brasil, investigado no inquérito das fake news e, desde a quinta passada, suspeito de participar de negociatas na compra de vacinas pelo governo Bolsonaro. 

O Sagres diz fazer "pesquisas em política e gestão estratégica" e formalmente é uma organização da sociedade civil de interesse público, o que lhe garante inúmeras benesses tributárias. Na prática, faz lobby – produziu publicações patrocinadas pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais – e vende enigmáticos serviços de consultoria a órgãos públicos, majoritariamente.

Também já andou enroscado na operação Satiagraha, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas.

Tem também ligações partidárias com a extrema direita: um ex-presidente (e atualmente membro do conselho consultivo) coordenou a bancada legislativa do PSL no Rio Grande do Sul e aventou uma candidatura a prefeito no interior do estado. Mas quem interessa para nossa história é o "diretor de geopolítica e conflitos": o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva.

Fã do torturador Brilhante Ustra, *Rocha Paiva* é dado a chiliques golpistas. No mais recente, de 8 de março passado, afirmou em texto reproduzido pelo Clube Militar que "aproxima-se o ponto de ruptura" após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que retirou da Justiça Federal de Curitiba os processos contra Lula, "uma criatura deplorável".

É justamente Rocha Paiva o responsável pela "Concepção do Projeto Nação", expressa num PowerPoint de causar inveja a Deltan Dallagnol e disponível no site do Sagres. O documento de 11 páginas é um amontado de platitudes que não se aprofunda em coisa nenhuma, mas deixa entrever temas caros à extrema direita. Na projeção otimista, produzirá uma conclusão em fins de 2021, a tempo, portanto, de alimentar uma candidatura presidencial – ou ser vendida a algum incauto (como o governo). 

É para municiar tal conclusão que servirá a pesquisa distribuída por ordem do general Stumpf. E tão ou mais importante que ela é o uso de um canal oficial e do prestígio do Exército para dar propulsão a um negócio que deveria ser privado e correr fora do ambiente da caserna.

Eu telefonei ao *coronel Brisolla*, o autor do e-mail, para lhe perguntar a respeito. Ele se mostrou contrariado ao saber que o e-mail havia vazado. "Só mandamos para aqueles que são da nossa rede de colaboradores". Mas acabou falando – talvez até demais.

"[A pesquisa] É para formação de um cenário prospectivo, que vai dar condições para ajudar o público privado e a área pública.

Trabalhamos no Exército com planejamento estratégico. Esse instituto [Sagres] quem compôs são militares. E [também o instituto] do general Villas Bôas.

*A gente tem ligação com esses institutos* que trabalham com gestão política e administração".

Brisolla foi adiante: "Planejamento é para a nação, não para partido político. Somos totalmente contra a política, políticos. *Não temos viés ideológico", garantiu-me, deixando claro qual o viés ideológico e o futuro – nada democrático – que imagina para a nação*.

Valério Stumpf Trindade é um general de quatro estrelas que nasceu e fez boa parte da carreira no Sul do país – ou no *Terceiro Reich, jargão interno usado para se referir a militares do Terceiro Exército, atual Comando Militar do Sul*. É tido como sujeito extremamente conservador. E, como veremos, leal a suas raízes.

O Rio Grande do Sul é um estado onde o Exército sempre teve presença marcante, em tamanho e influência, por causa da fronteira porosa com Uruguai e Argentina. Não à toa, é terra natal dos ditadores Emílio Garrastazu Médici, Artur da Costa e Silva e Ernesto Geisel. Também são gaúchos Eduardo Villas Bôas e outro personagem importante nesse quebra-cabeças, Sérgio Etchegoyen.

Etchegoyen é amigo de infância de Villas Bôas (ambos nasceram em Cruz Alta), de quem se tornou uma espécie de guarda-costas após vê-lo acometido pela triste doença degenerativa que hoje o faz dependente de um respirador artificial.

Foi também responsável por revisar e sugerir alterações no livro-entrevista em que Villas Bôas narrou suas memórias.

Além disso, Etchegoyen era chefe do estado-maior do Exército (espécie de número dois da força) quando foi um dos fiadores da derrubada de Dilma Rousseff – por quem passou a nutrir profundo rancor após a inclusão do nome do pai dele no relatório da *Comissão Nacional da Verdade* – e do governo tampão de Michel Temer.

Deixou o posto para assumir o Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, recriado por Temer. E em dado momento chamou, para ser seu secretário-executivo, o general Stumpf.

*Etchegoyen e Villas Bôas são dois dos pontas de lança do movimento que abraçou o capitão reformado Jair Bolsonaro*, dono de uma lamentável ficha funcional na força, para recolocar o Exército na política brasileira. Outro é *Augusto Heleno*, atual titular do GSI, onde Villas Bôas tem cargo de assessor especial.

Tudo em casa

O governo dos militares deu no que estamos vendo: 540 mil mortes por covid-19, boa parte delas evitável, graças à combinação de burrice, teorias da conspiração, negação da ciência, defesa de tratamentos sem eficácia nenhuma e suspeitas em série de corrupção na compra de vacinas, com uma penca de coronéis – e talvez um general – envolvidos. 

Mas o e-mail descabido e desavergonhado do general Stumpf indica que o buraco em que atiraram o país aparentemente não fez os militares recuarem de seu projeto político ou os tornou mais zelosos da separação desejável entre negócios públicos e privados. Muito pelo contrário.

Enviei perguntas ao comando-geral do Exército sobre o uso da ascendência e do prestígio da corporação para um projeto político dos institutos privados. Não houve resposta até a hora de enviarmos essa newsletter.

Rafael Moro Martins é Editor Contribuinte Sênior do The Intercept Brasil