Voltar ao site

Brasil, guerra cultural e arte de esquerda

Esta é uma versão revisada do texto escrito pela Kiwi Companhia de Teatro/Coletivo Comum (Beatriz Calló, Daniela Embón, Fernanda Azevedo e Fernando Kinas), publicado em Teatro Situado - Revista de artes cênicas com olhos latino-americanos, em 2020.

20 de julho de 2021

Aqui, uma análise da disputa simbólica travada pela extrema-direita brasileira, principalmente a partir da eleição de Bolsonaro, cujo governo é marcado por desinformação, fake news, desmonte e extinção de instituições culturais, além da criação do medo do chamado marxismo cultural.

 

A guerra cultural é um eixo importante desustentação do atual governobrasileiro. Bolsonaro não é apenas um políticode extrema direita, o que nos faz relembrar experiênciashá muito tempo ausentes da vida política nacional, como o integralismo de Plínio Salgado nos anos 1930, com a diferença que agora se trata do presidente da República. O bolsonarismo faz parte de um ambiente internacional que inclui figuras como Orbán, Erdogan, Modi e Duterte. Com uma especificidade local, Bolsonaro representa osetor mais reacionário eviolento das Forças Armadas, marcado pelo ressentimento pós-ditadura e pelo anticomunismo primário. Estes setor também aplica algumas tecnologiasde disputa política que não lhe sãopróprias originalmente, mas que se aclimataram bementre nós. Umas destas tecnologias é a disputa pela narrativa cultural.    

Como resposta ao livro Brasil, nunca mais, que denunciou as torturas e perseguições durante os anos daditadura, partindo da documentaçãooficial da Justiça Militar,os militares escreveram Orvil (palavra livro escrita ao contrário). De certa forma, a batalha cultural e ideológica assumiu uma posição de primeiro plano. Orvil foi, simbólica e concretamente, um instrumento de contraposição ideológica ao projeto Brasil: nunca mais e às denúncias sistemáticas dos abusos e da violência da ditadura.   

Os militares e seus associados no poder se sabem vitoriosos quando consumam ogolpe de 1964, mas mesmo após o AtoInstitucional nº 5 dedezembro de 1968, que endureceu o regime, são conscientes que estão perdendo a guerra na opinião pública e no campo cultural. Impõe-se então a tarefa, para este campo (ultra)conservador, de escrever ou reescrever a história.   

Desde o fim da ditadura, os militares vêmrecolhendo material para demonstrar o perigo do “terrorismo” comunista e ateu no país. Segundo a argumentação presente no livro, ao contrário, a república brasileira sofreu diversas e constantes tentativas de tomada de poder pelos comunistas desde 1922, ano de fundação do Partido Comunista no Brasil. Atualmente, a cultura seria, segundo esta teoria com certo tom conspiratório, o campo privilegiado da esquerda para implantar a ditadura do proletariado. Como um vírus vermelho silencioso, o comunismo estaria invadindo e corrompendo o corpo da nação.    

Para eliminar a doença, as soluções à mão, algumas novas, outras resultado do entulho ditatorial e da nossa incapacidade crônicade passar a limpo o passado autoritário,apela-se, por exemplo, à Doutrina de Segurança Nacional, adaptada, comodesde sua criação, aocombate do inimigo interno. Atualmente esta batalha se dá, de forma privilegiada, mas não única,através da militância virtual; mas também pelainfiltração de um exército de ativistas e militares anticomunistas nas instituições (em 2021 cerca de sete mil militares ocupavam cargos no governo federal); pelo desmonte da já frágilestrutura pública de educação, ciência/tecnologiae cultura; pela criação contínua de narrativas fantasiosas (o storytelling bolsonarista inventou a famosa mamadeira de piroca e o kit gay); pela destruição de reputações; pelo rebaixamento da linguagem e do discurso político; pelo ataque à imprensa, às universidades e aos artistas; pela extinção de ministérios e órgãos públicosde monitoramento e controle, dos seus programas e orçamentos,deixando à mínguaprogramas e iniciativas de gerenciamento estatais em diferentes áreas, como o meio ambiente e o ensino superior. 

Esta batalha alimenta sentimentos como o anti-intelectualismo e apoia-se no moralismo arcaico, racista, preconceituoso e fundamentalista. Autoritarismo, nacionalismo excludente e pensamento mágico-religioso se encontram com a ideologia do empreendedorismo numa batalha contra o comunismo, o ateísmo e o reconhecimento e aceitação das diferenças. A corrupção, políticae dos costumes, é instrumentalizadapara a construção de umprojeto de poder que junta conservadorismo e neoliberalismo.   

Este ambiente de guerra contínua, em que fake news e pós-verdadesão moedas correntes, geralmente desemboca em violência política.O assassinato em 2018 da vereadora de esquerda Marielle Franco, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), é um dos exemplos mais significativos. A ameaçade eliminação físicade oponentes políticos não é novidade no Brasil, a diferença é que agora ela é,com desfaçatez inaudita, elevadapraticamente à política de Estado.   

O atual governo rivaliza com a ditadura civil-militar, que durou 21 anos (1964-1985), na destruição sistemática das instituições,no ataque a direitos e na deterioraçãodo espaço público.Com Bolsonaro vivemos um golpe diferente, golpe sem golpe, respaldado por umamaioria confortável devotos nas eleiçõespresidenciais de 2018 (58% a 48%), o que nos deveria obrigar a uma análise crítica profunda do projeto lulopetista.   

A guerra cultural bolsononarista tem como elementos fundamentais a violência explícita,a ignorância carregada de prepotência, a incitaçãoao ódio, a necessidade da criação constante de inimigos e seus linchamentos públicos. Tudo isso embrulhado nos sentimentosarcaicos de uma sociedade elitista, racista, patriarcal e desigual fundada na plantationcolonial que cultivou desde seu nascimento o desprezo ao povo. Nossa marca nacional, nunca realmente enfrentada, é o latifúndio escravagista baseado na lógica da transformaçãodas pessoas em coisas, da destruição sistemática do meio ambiente (o extrativismo como regra) e da superexploração nas relações capital/trabalho.    

Um dos gurus intelectuais desse novo momento autoritário é o ex-astrólogo e dublê de filósofo Olavo de Carvalho, uma figura caricata e vulgar que há muitos anos faz comércio espalhando o medo do marxismo cultural. Este conceito, no entanto, não é original das nossas terras tropicais, nem das terras do Tio Sam, uma fonte sempre inspiradora para as aventuras golspistasdas nossas elites. Sua origem vem da agitação e da propaganda nazistas e contou com o apoio do grande capital e da pequena burguesia (amedrontada, ressentida e endividada) que abraçou dois de seus mais importantes fundamentos: o racismo e o anticomunismo. A propaganda nazifascista terá como ingrediente esta mistura de ressentimento, ódio ao diferente e violência política, embrulhada no orgulho nacional. Em Mein Kampf, best-seller de Hitler a partir de 1933, aparecerá pela primeira vez este fantasma que rondava a Europa, o bolchevismo cultural. Décadas mais tarde, ele se transformará em ”marxismo cultural” por obra de cristãos fundamentalistas, ultraconservadores e supremacistas brancos estadounidenses. Mais uma vez, como durante o período macarthista, o inimigo vermelho comunista era o alvo preferencial.   

Três décadas depois e poucos dias antes das comemoraçõesdo 4 de julho (dia da independência dos Estados Unidos), num ato aos pés do Monte Rushmore, em Dakota do Sul, Trump fez um discurso violento contra o fascismo da extrema esquerda, dando a entender que o país enfrentava uma – adivinhem?– guerra cultural. É preciso lembrar que o Monte Rushmore, com as efígies de presidentes talhadas nas rochas, faz parte de um parque nacional, antigo território de povos indígenas.   

Estes são alguns exemplos de como a inversão de valores, a mentira, o falseamento da realidade, a distorção dos acontecimentos históricos, a destruição da memória e o fomento do obscurantismo são elementos recorrentes do modo de governar daextrema direita e da direita neoliberal. Eles compõem uma parte do arsenal para o controle de populações.   

Marxismo cultural, para a extrema direita, é tudo aquilo que tenta subverter a verdadeira cultura ocidental, naturalmenteliberal e cristã. Nos momentos de crise e diante de uma oposição fraca e fragmentada, este sistema de regras ecoa como música aos ouvidos de parte da população.Daí é um passo rápido para a mistificação política (Jair Messias Bolsonaro é o mito; assim como políticos do campo progressista são "pais dos pobres"); tudo isso está muito próximo do fanatismo religioso e agora o messias virou o líderda destruição. Num jantar em 2019 com a elite do atraso em Washington, Bolsonaro afirmou que tinha a missão de ”desconstruir" e ”desfazer muita coisa” no Brasil.   

O mundo passou pelo nazifascismo, pelas perseguiçõesao projeto comunista, pelo stalinismo, pela Guerra Fria e por sangrentasditaduras. Vivemos movimentos contestatórios,de libertação nacional e revolucionários que foram capazes de conter, em parte, asanha desenfreada dos cavaleiros do capitalismo liberal, com sua falsa moral e seus paraísos fiscais. Foram muitas as arenas: maio de 1968, lutas contra o novo e o velho colonialismo, movimentos feministas, movimento negro, luta dos povos indígenas, resistência às ditaduras na América Latina, e mais recentemente movimentos altermundialistas, ecossocialistas, ambientalistas e da comunidade LGBTQIA+. 

Países que não viveram a onda rosa e conciliadora do progressismolatino-americano têm sido sacudidos por amplas contestações populares, como o Chile, o Peru e a Colômbia. Estes e outros movimentos confrontam o revival de ideias reacionárias e do neoliberalismo 2.0 associados ao fascismo.    

Diz-se,com razão, que a política odeia o vácuo. Diz-se, também, que uma parte da esquerdadeixou de ser esquerda, trocando o horizonte da transformação pela gestãodo capitalismo. No Brasil, os treze anos do lulo-petismo repetiram, em algumamedida, a política de conciliação de classes que já tinhanos levado para o impasse nos anos 1950/60. Embora as circunstâncias sejam diferentes, a falta de reação ao golpe de 1964 repetiu-se na apatia popularao golpe contra Dilma Rousseff em 2016. Se governos progressistas (ou social-liberais) negociavam com a burguesia pequenos ganhos para apaziguar as massas cronicamente excluídas,exploradas e aviltadas, Bolsonaro e companhia apresentam um programa de ruptura com o status quo que os levou ao poder pelo voto!   

Uma marcada destruição em curso é a negação do acesso à fruição e à produção plural de arte e cultura. No entanto, há mais de dez anos (muito antes de Temer e Bolsonaro), guardadas as devidas proporções e reconhecendo a importância de programas públicos específicos, assistimos um desinvestimento estatal na cultura. Assim, foram sendo estrangulados o pensamento critico, expressõesda cultura popular e produções inovadoras. Arte e cultura ficaram cada vez mais à míngua ou à mercê do mercado.   

O Sistema e Plano Nacionais de Cultura não forami mplementados e talvez, na formatação atual, jamais o sejam. Sua moldura institucional apoiou-se em consensos que não têm mais lugar, além de apresentarem metas irrealistas e sofrerem um subfinanciamento que somente mudanças sociais substanciais poderiam alterar. Este último aspecto nunca foi enfrentado seriamentepelos governos anteriores a Bolsonaro. Apelava-se, uma desculpa bastante conhecida, para a sempre desfavorávelcorrelação de forças, adiando para a calendasgregas as mudanças estruturaisque a cultura e o paísnecessita. Mesmo a tímida reforma da Lei Rouanet (um dispositivo baseado na renúncia fiscal que beneficia escandalosamente o marketing de grandes empresas), quenunca prometeu uma mudança de paradigma, foi desidratada até virar pó. No Brasil, até parafazer reformas é preciso ser revolucionário. Mas nossas esquerdas responsáveis se esforçam para não fazer nem mesmo a reforma.   

Após o golpe institucional de 2016, já no governo ilegítimo de Michel Temer, houve a tentativa, naquele momento mal sucedida, de acabar como Ministério da Cultura. Ele foiextinto e recriado em pouco tempo, em um movimento táticopara acalmar os ânimos deartistas que poderiam prejudicar a imagem de um governo impopular desde o nascimento, mas sustentado pelas oligarquias de sempre. Mas no governo de extrema direita de Bolsonaro a situaçãose consumou. Desde entãoassistimos, praticamente paralisados diante da imensa derrota eleitoral, umdesmonte jamais visto, alem do desfile de secretário(a)sde Cultura incompetentes, patéticos,mal-intencionados e reacionários.    

O primeiro a ser nomeado foi Henrique Pires, que, em um raro acesso de dignidade (para alguém que aceitou cargo de confiança em um governo neofascista) deixou o posto, diante de um episódio de censura. O segundo a ser nomeado foi Ricardo Braga, que ocupou a cadeira deSecretário durante apenas dois meses. Em seguida veio o sósia de Goebbels, o diretor de teatro Roberto Alvim. Soberba e delírio o fizeram cair em pouco mais de três meses de gestão. Já durante a pandemia veio a gestão(sic) da atriz Regina Duarte, que de tão leve e faceira (sempre toda sorrisos, exceto nas entrevistas em que era confrontada), voou para longe em menos tempo ainda. Neste momento a Secretaria de Cultura, abrigada no Ministério do Turismo, está sob o comando de um ator que se notabilizou por seu trabalho em uma série televisiva para adolescentes, Malhação. Mário Frias, bolsonarista de carteirinha, mantém-se no cargo do alto de sua insignificância, puxa-saquismo e carreirismo. Nenhuma dessas personagens, evidentemente, está à altura da riqueza cultural do país e das necessidades deste setor essencial para a formaçã osocial brasileira.   

E agora temos a pandemia! Enquanto a Alemanha da conservadora Merkel (vejam só) incluiu a cultura entre os bens essenciais e a França de Macron mantém um programa de seguro-desemprego aos intermitentes do espetáculo, no Brasil mais de 5 milhões de trabalhadores do setor artístico e cultural tiveram de contar com a solidariedade de sua própria categoria para não passar fome durante os meses iniciais do período de isolamento social. Apesar das enormes dificuldades, foram os espaços culturais autônomos e, em geral, periféricos, os locais onde cidadãos encontravam apoio em seus territórios. De centros para distribuição de cestas básicas até pontos de referência e acesso a informações sobre a pandemia, foram as sedes de pequenos coletivos culturais que tomaram para si a tarefa de cuidar dos menos favorecidos e das suas comunidades.   

Foram muitas as lutas empreendidas pela categoria em todo o Brasil. Projetos de Lei foram criados no Congresso Nacional e nas casas legislativas de Estados e Municípios. O trabalho de alguns parlamentares da oposição e a pressão dos movimentos culturais permitiu a aprovaçãoe a sanção da Lei Emergencial de Cultura Aldir Blanc. Sua implementação, com a destinação (e fiscalização) de verba para Estados e Municípios, são um capítulo ainda não finalizado. O que podemos dizer agora é quea Lei mostrou a força da categoria artística e ao mesmo tempo as fragilidades estruturais da Cultura no país. Sem mecanismos de controle institucional, plataformas de cadastramento e sistema de cultura implantado, os movimentos de trabalhadores precisaram correratrás do prejuízo provocado por anos de descaso público.Sairemos mais fortes desta experiência?É possível, é nossa aposta.   

Não é de hoje que sabemos que a construçãode uma política pública e popular, uma política de Estado para a cultura, deve passar por conselhos representativos, compostos por membros da sociedade civil em composição paritária com representantes do poder público. O que não significa alimentar ilusões sobre ”política inclusivas” que adiam eternamente as necessárias mudanças de fundo.   

Para finalizar, como prova de boa vontade, queremos concordar com o temor da extremadireita em relação ao marxismo cultural. Afinal, os integrantes desta perigosa seita (nós, artistas e cidadãos comprometidos com nosso tempo) pretendemos, de fato, por um ponto final nestemodelo injusto de sociedade. E sabemos que a arte e a cultura são importantes, senão essenciais, neste projeto. Eles têm razão em se preocupar com nossa existência. Estamos vivos e alertas!   

Finalizamos com algumas palavras de Julio Cortázar,do livro Nicarágua,tão violentamente doce:   

"...A urgência da hora impõe ao intelectual [e ao artista] uma tríplice militância: a da participação nas organizações políticas progressistas; a da inclusão do compromisso no contexto de sua obra; e a terceira, a militância de batalhar pela inserção de sua obra no âmbito real dos meios massivos de comunicação, antecipando-se assim à revolução política, que terminará por colocá-los integralmente a serviço do povo. Porque enquanto a política não assegurar a libertação cultural de nossa América, a cultura deverá abrir o caminho para a libertação política."