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Brasil ultrapassa 150 mil mortes, um terço desde 8 de agosto

Este pequeno dossiê, composto de matérias do El País Brasil, dá uma panorâmica da dramaticidade e complexidade da situação brasileira.

13 de outubro de 2020

País reduz média diária de vítimas de mil para seiscentos, mas patamar segue alto, com o terceiro maior índice de óbitos por milhão de habitantes no mundo. Cidades levantam restrições e seguem sem coordenação

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País Brasil, 10 de outubro de 2020

O Brasil chega à dura marca de 150.000 mortes pelo coronavírus num momento em que celebra pequenas vitórias em direção ao arrefecimento da pandemia, ainda que siga imerso em um cenário grave e sem uma política nacional efetiva contra a crise. De acordo com o balanço divulgado neste sábado pelo consórcio de veículos de imprensa (com base nos dados oficiais das secretarias estaduais de saúde), o país tem 150.023 óbitos confirmados pela covid-19. Para se ter uma dimensão da gravidade do problema, um terço de todas as mortes pela doença foi registrado somente nos últimos dois meses. Isso significa que ao menos 50.000 vidas foram interrompidas justamente no período em que os números oficiais começavam a dar sinais de amortecimento da crise sanitária.

A partir de agosto, logo depois de o país somar 100.000 mortes, as taxas de contágio do coronavírus começaram a apresentar redução, ficando em alguns momentos abaixo de 1, índice que limita a situação de descontrole. A média de mais de 1.000 mortes diárias notificadas até então também caiu para a centena alta. Os dados mais recentes soam promissores: o Imperial College, de Londres, divulgou nesta semana que o Brasil manteve a taxa de transmissão do vírus para abaixo de 1 por duas semanas consecutivas pela primeira vez desde abril. E a média de mortes diárias da última semana epidemiológica (entre 27 de setembro e 3 de outubro) caiu 5% e ficou em 654. O país é o segundo com o maior número de mortes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Também aparece com altos índices quando a métrica são os mortos por um milhão de habitantes. O Brasil aparece em terceiro lugar nos óbitos proporcionais à população: tem 695 mortes um milhão habitantes, contra 989 do Peru, campeão do ranking, e 867 na Bélgica.

Mas esses avanços não são suficientes para retirar o país do estágio preocupante, ainda que possam surtir na população uma sensação de maior segurança para retomar algumas atividades. Apenas 33,8 milhões de brasileiros (16% da população) seguem rigorosamente isoladas, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), do IBGE. O número de pessoas em isolamento rígido caiu em 1,6 milhão entre a segunda e a terceira semana de setembro, conforme pesquisa divulgada nesta sexta-feira.

Seja como for, não há como desprezar o fato de que mais de 600 mortes pelo coronavírus são registradas diariamente no Brasil. São pais, mães, filhos e amores de alguém que deixam um luto imenso em milhares de famílias brasileiras. “É uma perda brutal”, define Gabriel Erick dos Santos, que perdeu a irmã, Erika Regina Leandro dos Santos, uma atriz que vivia “como se nunca fosse morrer”. Com diabetes, hipertensão e excesso de peso, ela costumava enfrentar alguns problemas de saúde, mas sempre se recuperou de cada um deles. Até ser infectada pelo coronavírus. Erika morreu aos 39 anos sem que o irmão pudesse lhe retribuir o cuidado que havia oferecido a ele quando se recuperava de um afogamento, há um ano. “O que mais me dói é que não pude ficar ao lado dela ou me despedir”, lamenta Gabriel.


A pandemia não lhe deixou nem mesmo prestar as homenagens que Erika merecia, especialmente por tê-lo praticamente criado depois que os pais deles morreram, quando eram pequenos. “Ela era uma pessoa muito aberta, era muito fácil chegar perto dela e ter carinho por ela”, conta. O que Gabriel lembra como o mais terrível foi o funeral, com apenas seis pessoas (quase toda a família), que só podiam fazer uma breve oração, enquanto os trabalhadores do cemitério os apressavam. “Não consegui nem pendurar um riacho com o nome dela gravado no caixão, uma lembrança de família”.

Um país diverso no contágio e nas ações políticas
O luto pelos que morreram de covid-19 já está em todos os Estados brasileiros, mas cada um deles enfrenta velocidades e intensidades diferentes da pandemia. Estados do Nordeste que foram brutalmente afetados nos primeiros meses da crise, como o Ceará, parecem de fato ter desacelerado a transmissão. Mas não se pode baixar a guarda, como revela o caso de Manaus, onde se acreditava que se havia alcançado um certo esgotamento da transmissão do vírus. O Estado do Amazonas, que atingiu um violento pico de infecções entre abril e maio, voltou a apresentar crescimento de casos. Por ora, especialistas evitam falar em uma segunda onda, mas pedem atenção às autoridades políticas e sanitárias.

Já São Paulo, a cidade que foi a porta de entrada para o vírus no país, concentra desde o início da crise os mais elevados números de casos e mortes. Foi uma das primeiras capitais a implementar o lockdown parcial para ter tempo de preparar seu sistema de saúde. A demanda hospitalar reduziu ao longo dos meses, e hospitais de campanha chegaram a ser desativados. Mas, atualmente, a populosa megalópole ainda conta mais de 100 mortes pela covid-19 diariamente. E se prepara para entrar em uma fase ainda menos restritiva nas medidas contra o contágio. A partir de sábado, a capital paulista permite a reabertura de equipamentos culturais como cinemas e museus. Os impactos das novas medidas precisarão ser analisados nas próximas semanas.

“O Brasil ainda tem um nível de contágio preocupante, tanto nacionalmente quanto em alguns locais. A gente nunca implementou medidas que impedissem o contágio em si. O que fizemos foi tomar medidas de distanciamento que são mitigatórias e custosas, que é ficar em quarentena”, analisa o pesquisador do Observatório Covid-19, Rafael Lopes. Ele afirma que os gestores públicos brasileiros focam em gerenciar contágios para promover as aberturas econômicas, mas o país não tem uma estratégia para controlar de fato a pandemia. “O Brasil é um país continental, a gente tem diversas realidades e diversas epidemias, tem um déficit de testagem ainda muito grande. Não conseguimos usar os testes que temos para descobrir novos casos, usamos para confirmar casos. Seria muito importante a gente testar amplamente para identificar cadeias de contágio e quebrá-las”, defende.

Ausência de coordenação nacional
Depois de mais de sete meses de crise, o Brasil não tem uma política nacional sólida de controle da pandemia. Decisões importantes como o relaxamento da quarentena seguem sendo tomadas pelos gestores locais como decidiu o STF, mas sem qualquer orientação nacional explícita. Em geral, governantes locais se baseiam em dados como taxa de ocupação de UTI, velocidade de transmissão do vírus e taxa de positividade dos testes para determinar suas aberturas, com critérios próprios. Tudo isso passará por um teste adicional nas próximas semanas, já que haverá eleições presenciais nos mais de 5.000 municípios do país em novembro. Em muitas cidades, os atos de campanha têm simplesmente ignorado os protocolos de segurança.

O trabalho do Ministério da Saúde, tradicionalmente responsável por coordenar e direcionar as políticas aos demais entes federativos, tem se concentrado principalmente na distribuição de insumos e em ações que corroboram com as ideias do presidente Jair Bolsonaro, um negacionista que contraiu a doença mas segue minimizando a gravidade da pandemia. Recentemente, a pasta suspendeu uma ação chamada Dia D para estimular o tratamento precoce em pacientes com sintomas de covid-19. Ainda não existe medicamento nem tratamento capaz de curar a doença, e a comunidade científica interpretou como uma ação para estimular o uso da cloroquina, um medicamento que a ciência tem demonstrado ser ineficaz para a covid-19, mas que é amplamente defendida por Bolsonaro. Pesquisadores e ex-ministros chegaram a realizar um evento em defesa da ciência, uma resposta ao suposto Dia D da cloroquina.

Um protocolo com orientações do uso do medicamento para tratar a covid-19 foi implementado no país pelo ministro Eduardo Pazuello (Saúde), um militar que recentemente admitiu ter assumido o posto mais sensível do combate à pandemia no país sem sequer conhecer o Sistema Único de Saúde brasileiro, o maior sistema público do gênero do mundo. “Eu não sabia nem o que era o SUS. Eu passei a minha vida sendo tratado em instituição pública do Exército, vim conhecer o SUS a partir deste momento da vida e compreendi a magnitude dessa ferramenta que o Brasil nos brindou”, afirmou durante um evento sobre o câncer de mama na última semana.

As apostas do Ministério da Saúde para superar a pandemia parecem estar focadas agora nas vacinas do coronavírus, ainda em teste. O Brasil ―que já tinha firmado um contrato com a Aztrazeneca para compra de doses e transferência de tecnologia da vacina de Oxford― recentemente entrou em um consórcio global para adquirir outras sete potenciais vacinas. Confiante no estágio dos testes, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, afirma que o país espera iniciar sua campanha de vacinação ainda no primeiro trimestre do ano que vem e que tem uma estratégia desenvolvida que deve garantir 140 milhões de doses de vacinas até a metade de 2021.

A Anvisa já adaptou procedimentos para tentar acelerar o registro das vacinas logo que os testes revelem segurança e eficácia, analisando parte do processo antes da finalização das pesquisas. Também admite que pode reduzir de 70% pra 50% o índice de eficácia exigido por entender que numa pandemia grave como esta esse nível de imunização já surtiria importantes efeitos à saúde pública. “Flexibilizar critério de eficácia de vacina não significa abrir mão de segurança. Esta é a prioridade que colocamos”, destaca o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes. Um grupo de especialistas trabalha junto com o ministério para desenhar um programa de imunização. As estratégias parecem promissoras, falta a ciência conseguir de fato desenvolver uma vacina segura.

São Paulo reabre cinemas, mas não parques aos domingos

Marcelo Cabral, El País Brasil, 9 de outubro de 2020

Mais de 13.000 morreram na cidade, primeira a registrar óbito por coronavírus no Brasil. Bares ganham mais uma hora de funcionamento. Fase Azul, de “normal controlado”, pode depender da vacina

São Paulo passou de fase. Em meio a uma pandemia que já deixou mais de 13.000 mortos e ao menos 340.000 casos confirmados de covid-19 na cidade, a maior cidade do Brasil foi elevada nesta sexta-feira da Fase Amarela para a Fase Verde ―a segunda menos restritiva― do plano criado pelo Governo do Estado para combater o novo coronavírus, junto com outras cinco regiões (Campinas, Sorocaba, Piracicaba, Taubaté e Baixada Santista) que, juntas, reúnem 76% da população estadual.

Na prática, isso significa que a partir deste sábado (10) estarão de volta atividades culturais como cinemas, teatros, museus, eventos e convenções ―embora os parques municipais sigam abertos apenas durante a semana e não haja previsão de retomar projetos como a Paulista Aberta, que liberta a avenida dos carros aos finais de semana. A prefeitura considera que é muito difícil controlar ao acesso de uma quantidade limitada de pessoas a esses locais, como forma de evitar aglomerações.

Mesmo os lugares reabertos poderão funcionar com apenas 60% da capacidade e com obrigação de controle de acesso e hora marcada. Já outros pontos tradicionais de diversão dos paulistanos, como shopping centers, comércio e serviços, inclusive academias, ganham a permissão de funcionar durante 12 horas a cada dia. Restaurantes e bares poderão ficar abertos até as 23h, mas deverão encerrar o consumo dos clientes às 22h, para tristeza dos boêmios. Atividades que gerem aglomeração como festas, baladas, torcidas em estádios e shows com o público de pé seguem proibidos.

Sem liberação
É um momento marcante para a cidade, que entrou em quarentena junto com o resto do Estado em 21 de março, quatro dias após registrar a primeira morte por coronavírus no país. Uma rara sinalização positiva para o local que se tornou o epicentro da pandemia e a cidade mais atingida pela covid-19 no país, enquanto segue incerto o desenvolvimento de uma vacina. O Governo estadual aposta em uma parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan para a fabricação local da chamada Coronavac, mas esbarra em dificuldades técnicas e políticas— o governador João Doria (PSDB) é adversário do presidente Jair Bolsonaro, que prefere jogar suas fichas na parceria entre a Fiocruz e o universidade inglesa de Oxford. O resultado é uma espécie de corrida entre São Paulo e Brasília para desenvolver o remédio, uma disputa que acaba prejudicando ambas as partes. Durante a coletiva de imprensa na qual anunciou a Fase Verde, o próprio Doria admitiu que existe um Plano B caso o Ministério da Saúde se recuse a comprar a Coronavac para distribuí-la no SUS: negociar sua venda diretamente para outros Estados do país.

No entanto, nada disso significa, nem de longe, que São Paulo está livre do novo coronavírus. O plano do governo não é uma liberação total. A Fase Verde ―a quarta das cinco classificações governamentais, chamada de Abertura Parcial― ainda é mais rigorosa que a Azul, descrita como Normal Controlado. O plano estabelece cinco fases, marcadas por cores. Da mais para a menos restritiva, as Fases são Vermelho, Laranja, Amarelo, Verde e Azul.

Para que cada regiões do Estado evolua de um nível para o outro, é necessário que ela preencha diversos requisitos, como a queda nos índices de ocupação de leitos de UTI pelo novo coronavírus, a quantidade disponível desses leitos para cada 100.00 habitantes e a evolução nas curvas de novos casos e óbitos ao longo de sete dias consecutivos. Para repassar à Fase Azul, no entanto, as regras podem ser diferentes. José Medina, coordenador do Centro de Contingências do Coronavírus no estado, disse que as condições ainda estão sendo estudadas - mas que a existência de uma vacina pode ser estabelecida como pré-condição.

Existem especialistas, no entanto, que veem em planos parecidos com o adotado por São Paulo um modelo desastrado. Outras cidades que tentaram receitas de reabertura precoce, como Belo Horizonte e Curitiba, tiveram que voltar atrás, numa espécie de efeito ioiô – ainda que Doria insista que o Plano São Paulo seja “modestamente, um exemplo para o mundo”.


Independência e morte
Cores à parte, a covid-19 segue grassando em terras paulistas, ainda que o Estado, de fato, puxe a queda na curva de mortes registradas no país, como mostra o recuo no número de mortes diárias na cidade. O último boletim disponível da prefeitura, da quarta-feira, mostra 40 notificações de óbito – um número que chegou a superar a casa dos 130 em junho. Ainda assim, em nível estadual, já são mais de 1 milhão de casos e o número de óbitos supera os 37.000 – basicamente um estádio do Pacaembu lotado. Ao mesmo, tempo, no país como um todo, as mortes devem superar os 150 mil nas próximas horas – e isso apenas dois meses depois de baterem na fatídica marca de 100.000 vidas perdidas, no dia 08 de agosto. Ontem, quinta-feira, de acordo com os dados do governo, foram 729 novos óbitos. É como se quatro aviões seguissem caindo no país, dia após dia.

Mas mesmo essa queda desenfreada parece fazer pouco para chamar a atenção da população paulistana, após quase oito meses de quarentena e restrições sociais. Nas ruas, aos poucos, as máscaras começam a dar lugar aos rostos desprotegidos. Ver bares lotados fora do horário estabelecido deixou de ser algo incomum. Calçadas superlotadas de pedestres, consumidores e transeuntes voltaram a fazer parte da cena urbana, como antes. Essa espécie de quarentena ao avesso começou a ganhar corpo principalmente após o feriado de 7 de Setembro, o dia da Independência do Brasil, quando houve uma superlotação de praias, bares e parques. É como se a população tivesse decidido declarar a sua própria independência da quarentena. Com cenas tão presentes na memória recente como a falta de vagas para os mortos no cemitério da Vila Formosa, na Zona Leste, faz sentido questionar se esse caminho é o mais sensato.

Além disso, existe a questão cada dia mais presente da ameaça de uma possível segunda onda. Enquanto São Paulo muda suas cores e relaxa seu confinamento, a europeia Madri volta a decretar estado de alerta por 15 dias e fecham novamente suas portas, diante do risco de recrudescimento do vírus. Já Paris volta a impor algumas restrições. É difícil comparar as situações nas cidades porque elas usam critérios diferentes para adotar as medidas de isolamento social. Madri prefere indicadores relacionados ao número de casos detectados via testes PCR em determinadas parcelas da população ―um número que mostrou alta nos últimos dias, um indicado apontado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Em São Paulo, como não há controle total sobre os dados da testagem, o indicador preferido é a porcentagem de leitos de UTI ocupados por pacientes com covid-19. Hoje esse número está na casa dos 37% na capital paulista e vem recuando ―em junho, chegou a superar 90%.

Onda de casos em Manaus coloca em xeque a imunidade de rebanho

Aumento das infecções na capital amazonense lança dúvidas sobre o estudo que apontou, em setembro, que a cidade que, com 2.685 casos, foi a primeira do mundo a conter o coronavírus sem fazer nada, mas ao custo de muitas vidas

Naiara Galarraga Gortázar, El País Brasil, 12 de outubro de 2020

recente aumento de contágios por coronavírus atrapalhou os melhores planos para se divertir e compensar o calor úmido de Manaus: ir à praia de areias douradas nas águas do Rio Negro ou fazer festas em casinhas flutuantes com música a todo volume está proibido durante um mês na cidade. A retomada da pandemia lança dúvidas sobre o estudo científico preliminar que, em setembro, apontou que 66% dos moradores da maior cidade da Amazônia brasileira têm anticorpos para a covid-19 e, assim, Manaus havia alcançado a imunidade coletiva que impede ou reduz ao mínimo a transmissão do vírus. Parecia promissor. Seria a primeira grande cidade do mundo a conter o vírus praticamente sem fazer nada, embora ao custo de uma pilha de mortos. Seus quase dois milhões de habitantes entraram no radar de virologistas em todo o mundo.

 

A pandemia causou, segundo dados oficiais, ao menos de 2.685 mortes em Manaus e 160.000 infectados no Amazonas, onde proliferam teorias da conspiração e notícias falsas sobre essa praga do século 21. Difícil esquecer os enterros coletivos no cemitério municipal. Embora para muitos moradores isso de imunidade de rebanho soe como chinês, boa parte se comporta como se fosse uma realidade inquestionável e achava que não corria o risco de infectar-se. “Muitos pensavam que não iriam se infectar, não estavam preocupados. Infelizmente, muitas pessoas morreram por serem imprudentes e irresponsáveis”, explica uma veterana fiscal de saúde da Prefeitura, Luciana Fares.

Durante uma recente operação fluvial de vigilância por causa do aumento dos contágios, a fiscal advertiu as pessoas que participam de várias festas em casinhas flutuantes, temporariamente proibidas, como os bares e as discotecas. É um plano dos mais tentadores ―para quem tem condições de pagar― quando faz mais de 30 graus e 70% de umidade. Todo o dia de roupa de banho, entrando e saindo da água, com música para dançar ou cochilar na rede e cerveja bem gelada.

 

Para Ralf, de 20 anos, frustram o 29º aniversário de sua mulher, que eles comemoram em família em uma dessas casinhas. Estavam prestes a sair da água para cortar o bolo de chocolate quando chegou a fiscal acompanhada de um batalhão dividido em três lanchas. São policiais e militares armados, fiscais de saúde e do meio ambiente e uma equipe deste jornal. Cerca de 20 pessoas. “Quem me alugou disse que não iríamos ter problemas, que estava tudo resolvido”, explica este funcionário público que se esconde sob pseudônimo porque trabalha para o Estado. Apesar da operação, seu poder coercitivo é limitado. Aplicam uma multa, que nem sequer é para eles, mas para o proprietário, mas os representantes do Estado também não podem acabar com a festa porque não têm meios para os levar para o cais.

Ainda assim, a possibilidade de uma segunda onda preocupa São Paulo. Chama a atenção que, ainda durante o anúncio da passagem para a Fase Verde, o próprio Doria tenha comentado que “o verão na Europa deixou uma lição para o mundo. O descuido com o uso de máscaras e as aglomerações criou uma segunda onda de infecção. Que sirva de lição para o Brasil”, disse, antes de fazer um alerta enfático sobre os riscos presentes no feriado de 12 de outubro, a próxima segunda-feira: “O vírus não escolhe vítima nem idade, sem sexo nem condição sócioeconômica. Pense nas pessoas que você perdeu ao longo desses oito meses antes de tomar atitudes equivocadas”.

O citado estudo de cientistas das Universidades de São Paulo, Oxford, Harvard e outras instituições de pesquisa indica que, apesar da volta à normalidade sem vacina, Manaus conteve a epidemia graças ao fato de muitos moradores terem anticorpos e o coronavírus esbarrar constantemente em becos sem saída que o impedem de se espalhar. A pesquisa ainda não foi revisada por outros cientistas. Especialistas locais descartam que os novos contágios sejam uma segunda onda, mas pedem cautela. “O que esperamos para confirmar realmente esse porcentual de imunidade de rebanho é um programa de testes em massa da população, o N (a amostra) da pesquisa é muito pequena em relação à população”, explica em sua sala o infectologista Antonio Magela Tavares, diretor de assistência médica da Fundação de Medicina Tropical. Usando uma máscara de estampa de camuflagem militar, ele insiste em que estavam cientes de que o vírus chegaria, mas não com tanta fúria. Isso os pegou desprevenidos.

O outro problema que Tavares aponta no estudo sobre a imunidade coletiva é que ele se baseia na análise de doações de sangue coletadas antes e durante a pandemia em um grupo geralmente saudável. Um perfil muito diferente dos idosos, obesos, hipertensos e doentes crônicos em que o vírus tem caráter devastador. “Infelizmente, entre os pacientes renais, a mortalidade superou 90%”, enfatiza.

A pandemia teve três fases em Manaus. Primeiro, uma explosão de casos em abril e maio, com um pico de mortes sete vezes maior do que a média de enterros antes da epidemia e ambulâncias esperando por horas para que seus pacientes fossem colocados em um leito de UTI. Segundo, diminuição e estabilização de contágios de junho a setembro, apesar do retorno às atividades com as lojas, igrejas, escolas, bares e a praia reabertos. Terceiro, um aumento de casos há duas semanas que se traduz em um mês de restrições. De novo, muitos as ignoram.

Manaus é a capital mais remota do Brasil, mas uma das mais internacionais graças à sua zona franca industrial. Suspeita-se que o vírus tenha entrado pelo aeroporto com algum viajante procedente do exterior, se aninhado na cidade e de lá, rio acima, se espalhou velozmente até quase o último canto do Estado do Amazonas em embarcações abarrotadas que fazem viagens de vários dias nas quais se dorme em redes ao ar livre. São o principal meio de transporte. Assim, causou estragos mesmo em comunidades indígenas distantes.

É possível que a imunidade de rebanho tenha sido alcançada entre os mais pobres porque os casos recentes afetam sobretudo os moradores das classes A e B, os ricos. Gente que, farta de meses de trabalhar de casa, se lançou às praias e às festas no feriadão de 7 de setembro. A maioria dos brasileiros, porém, teve que sair às ruas durante a crise para buscar o sustento diário, enquanto os mais privilegiados puderam fazer home office.

A distância de segurança inexiste nas longas filas que se formam todas as manhãs em frente aos bancos para recolher o auxílio emergencial que tem permitido a milhões evitar a fome. Muitos dos que usam máscara não cobrem a boca e o nariz. Preferem deixá-la no pescoço.

Voltando ao debate sobre imunidade coletiva, a virologista espanhola Margarita del Val, do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), explica que, como isso “ocorre em grupos relativamente fechados e que têm um comportamento homogêneo”, os dados mais recentes de Manaus poderiam indicar que “agora os ricos não estão se beneficiando da imunidade coletiva que talvez os mais pobres tenham adquirido”. Em todo caso, a cientista alerta: “Tentar conseguir essa imunidade coletiva, como a Suécia parecia estar tentando no início, não é uma estratégia, é selvageria. Não é ético nem realista”. Enfatiza que aqueles que estão imunes devem continuar a usar máscara e manter distância. “Não podemos ter certeza de que não transmitirão o vírus se forem infectados novamente.”

Outra incógnita é quanto tempo dura a imunidade. Enquanto limpa no mercado, sem usar a máscara, um enorme tambaqui para um cliente, o peixeiro Danilo Mendonça garante que já teve o coronavírus, embora ninguém o tenha testado para confirmar isso. Conta que durou dois meses em que só bebeu água, sucos e um remédio caseiro: “Você coloca alho, limão, gengibre, mastruz (erva local)... Os caras que tomaram esses outros remédios pioraram. Por isso morreu esse montão de gente. O cara chega lá (no hospital), eles o intubam e lá mesmo ele morre”. Superstições de longa data ainda caem fundo entre os menos instruídos, mas também se espalham na velocidade da luz nos grupos do WhatsApp, por isso as autoridades dedicam uma boa dose de energia para combater a desinformação.

A gestão da covid-19 no Brasil tem sido marcada pelo ceticismo do presidente Jair Bolsonaro e seu empenho em salvar a economia. São muitos os que o acusam de agravar a epidemia, mas outros milhões de compatriotas se unem à sua posição anticientífica, desprezam a ameaça e a máscara. Com 150.000 mortes e cinco milhões de casos, é o terceiro país mais afetado, depois dos Estados Unidos e da Índia.

 

Além do mais, em Manaus a disputa política envenena a gestão e proliferam as denúncias de corrupção. O prefeito, Artur Virgilio Neto (PSDB), acusa o presidente brasileiro de ser irresponsável e proclama em entrevista a este jornal que “a covid não acabou”, após relembrar sua experiência pessoal. Ele foi infectado e a doença o atingiu com tanta força que foi internado em Manaus e posteriormente transferido para São Paulo. Ainda parece frágil. Ressalta que só se orienta pela ciência e questiona os números oficiais divulgados pelas autoridades estaduais do Amazonas. E acusa abertamente o governador Wilson Lima (PSC) de maquiá-los para minimizar o impacto do coronavírus.

O prefeito da capital amazonense embasa sua denúncia em uma conta contundente: o excesso de mortes, evidente no número de sepultamentos. “Há uma diferença extraordinária na cifra de enterros. Se eram 25 antes da pandemia, agora estão perto dos 50 e sempre acima dos 40, é a média que a gente vê ... Alguma coisa tem que explicar essas mortes. Por quê? Eu vejo isso como a maquiagem da covid.” Para arrematar, recorda que as autoridades admitiram que o governador se baseou em dados falsos quando, em julho, declarou que o Amazonas havia vencido o vírus.

 

Outra operação de fiscalização encerra sob a lua cheia uma festa clandestina, supostamente organizada por traficantes de drogas (segundo a polícia), com centenas de adolescentes em uma fazenda. Os fiscais advertem vários restaurantes de que, às 22h, devem baixar as portas e fechar os bares. No Sensation, com banda ao vivo e clientela aglomerada em mesas baixas, Bruna Araújo, fisioterapeuta que atende pacientes de covid-19, se queixa de que os policiais com submetralhadoras, colete à prova de balas e máscaras estão arruinando sua noite. Ela está indignada, quer voltar à normalidade. “Os ônibus e o mercado, sim, estão lotados e lá não fiscalizam.”