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Breno Bringel: Covid-19 e o novo caos global

12 de setembro de 2021

A partir das lutas de nosso tempo, é preciso articular um movimento global para disputar os rumos deste novo momento alter-globalização.

Vivemos um momento de caos global. O caos não implica a ausência total de algum tipo de ordem, mas evoca a turbulência, a fragilidade e a indefinição geopolítica contemporânea diante dos múltiplos “riscos globais” e destinos possíveis.

A imprevisibilidade e a instabilidade passam a ser a regra e isso se refere não apenas à maior volatilidade frente às ameaças, mas também à própria dinâmica das forças políticas e do capitalismo contemporâneo.

A ordem mundial que emergiu com a queda do Muro de Berlim buscou estender a democracia formal no mundo (por mais que as principais potências a desestabilizassem e interrompessem sempre que necessário) de mãos dadas com a globalização neoliberal, em uma espécie de “social-liberalismo global”.

Criou-se uma narrativa de “prosperidade” e “estabilidade” mundial que confinava a democracia ao capitalismo. Esta estratégia está hoje esgotada diante das apostas de que o mercado internacional possa continuar mantendo-se bem, inclusive com as derivas autoritárias, os neofascismos e as constantes violações de direitos individuais.

Se a pandemia produz uma inflexão geopolítica, torna-se necessário, portanto, discutir algumas das principais tendências e representações geopolíticas emergentes, assim como os cenários em disputa em nível global. Este é o foco deste artigo.

Nem desglobalização nem o fim da globalização capitalista

Não estamos, como argumentam posições precipitadas, diante do fim da globalização e da emergência da “desglobalização”, embora possivelmente frente ao fim da globalização capitalista as we know it.

O grau de radicalização da expansão territorial e financeira do capital durante as últimas décadas foi possibilitado pela construção de um grande acordo capitaneado pelo Ocidente – com os Estados Unidos à frente (por mais que sua hegemonia seja cada vez menor) –, que permitiu construir uma narrativa dominante de crescimento, sintonizada com a expansão ilimitada das empresas transnacionais e com o beneplácito de diversos grupos de poder e de organizações nacionais e internacionais.

Seu desdobramento se deu, como se sabe, com a remoção de qualquer tipo de barreiras diante de uma gramática de desregulação, flexibilização e liberalização que afiançou o neoliberalismo no mundo, ao mesmo tempo em que destruía o meio ambiente e o tecido social. Junto a isso, veio um processo de disputa cultural para enraizar a globalização neoliberal como um modelo não apenas econômico, mas também societal.

Posições “anti-globalistas” e nacionalistas emergem em toda parte, seja no coração do sistema, nas “potências emergentes”, ou em países periféricos, buscando reorganizar o capitalismo de maneira mais fechada e autoritária

Apesar das críticas ferozes do movimento alter-globalização e de uma diversidade de resistências territoriais – e por mais que a crise de 2008 tenha destapado a dimensão mais trágica e letal do capitalismo financeiro e da globalização –, a resposta não foi uma alternativa a isso, mas uma radicalização do modelo.

As perdas foram socializadas com toda a população e os Estados aplicaram políticas de ajuste e austeridade, enquanto salvavam os bancos, que, por sua vez, privatizaram os benefícios. A globalização capitalista pôde, assim, seguir seu curso de acumulação e espoliação, aprofundando o modelo extrativista.

O cenário recente, amplificado em tempos de pandemia, parece ser um pouco diferente: entre diferentes setores da direita e da extrema direita, posições “anti-globalistas” e nacionalistas emergem em toda parte, seja no coração do sistema, nas “potências emergentes”, ou em países periféricos, buscando reorganizar o capitalismo de maneira mais fechada e autoritária.

Não há uma estratégia ou um rumo unívoco. De fato, Luis González Reyes e Lucía Bárcena mostram como os três principais nós da globalização capitalista estão seguindo estratégias diferentes: os Estados Unidos promovem políticas protecionistas, fortalecendo, ao mesmo tempo, a guerra comercial com a China que, assim como a União Europeia, busca reforçar as cadeias econômicas globais, embora o façam de maneiras diferentes. No primeiro caso, impulsando um plano ambicioso de expansão econômica, no qual destaca a iniciativa da Nova Rota da Seda; no segundo, com negociações comerciais e investimentos bilaterais.

Enquanto isso, o comércio internacional, as privatizações e os fluxos de capitais podem tropeçar com mais regulações públicas propostas por atores diversos; a dependência de insumos e produtos de outros países (visível na pandemia com as máscaras ou os respiradores, mas cuja realidade se estende, em muitos casos, a produtos essenciais), está levando muitos países a revisarem suas políticas, pensando na autossuficiência ou, ao menos, na redução da dependência.

As estratégias de especialização e de internacionalização da produção, por outro lado, estão se reelaborando e os Estados centrais e as empresas transnacionais estão se reorganizando, com investimentos crescentes em tecnologias como a robotização ou a inteligência artificial.

O mundo, portanto, parece caminhar, ao menos no curto prazo, não à desglobalização, mas rumo a uma globalização capitalista mais descentralizada, reticular e ultra-tecnológica.

As cadeias globais de valor tenderão a se reorientar diante da recessão pós-pandêmica, embora certamente seguirão tendo bastante peso. O arcabouço institucional supranacional projetado para facilitar as lógicas de acumulação pode perder peso diante de uma trama econômica e política mais complexa de acumulação nas cidades e em redes hierárquicas.

Nem tudo são novidades, mas a pandemia pode acelerar e consolidar mudanças geopolíticas que já vinham se precipitando durante a última década. É o caso do fortalecimento relativo da China, que, mesmo que não se torne um novo hegemon no curto prazo, terá um papel mais decisivo no sistema mundial.

Parece difícil que uma nova governança global da saúde possa emergir

A brecha entre centro e periferia, por outro lado, tende a aumentar ainda mais, devido tanto à centralidade do desenvolvimento tecnológico quanto à recessão econômica, que costuma ser acompanhada sempre de um receituário macroeconômico conhecido e nefasto para os países do Sul.

Estes cenários e tendências reforçam que a ordem geopolítica vigente estará previsivelmente marcada por uma maior rivalidade no sistema interestatal, desconfiança entre atores políticos e econômicos, mas também pelo aprofundamento, por parte dos atores dominantes, da militarização global, que poderá fortalecer o caos sistêmico.

Parece difícil que uma nova governança global da saúde possa emergir, tanto pelo papel vacilante da Organização Mundial da Saúde quanto pela própria falta de comprometimento dos Estados. As organizações internacionais e multilaterais de todo tipo também não estiveram à altura da tragédia da pandemia, seja por silêncio, incapacidade ou incongruência. Justamente por isso, precisam se reinventar, como argumentam Bernabé Malacalza e Mónica Hirst em artigo recente publicado em Nueva Sociedad.

A maioria dos blocos regionais saem fragilizados e, em alguns casos, desmantelados e sem autoridade moral diante da pandemia. É o caso da União Europeia que, durante a crise sanitária global, perdeu a oportunidade de estabelecer-se como uma alternativa ao fracasso da resposta à pandemia dos Estados Unidos, mas também frente ao modelo centralizado e autoritário chinês.

As fissuras e as assimetrias dentro do bloco voltaram a aparecer, dificultando a coordenação interna e a projeção externa. Já aqueles projetos regionais que há alguns anos tentavam projetar-se na América Latina como regionalismos contra-hegemônicos – como a UNASUL, a CELAC e a ALBA-TCP, passaram quase despercebidos na pandemia e não tiveram envergadura suficiente para construir qualquer resposta política supranacional relativamente bem articulada.

No caso onde funcionaram minimamente, como no Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), isso ocorreu principalmente com o objetivo de intercambiar informações e coordenar políticas de estímulo ao comércio e aos negócios. Desta forma, em alguns casos a pandemia pode levar ao enterro definitivo de alguns projetos regionais. Em outros, o regionalismo tenderá a se reorganizar em função das mudanças geopolíticas e geoeconômicas mais amplas.

Entre a contenção do vírus e a contestação social: choque nacional e alternativas locais

Durante a pandemia, os sentimentos nacionais foram massivamente mobilizados e o Estado interventor foi reivindicado até mesmo pelos neoliberais. Emergiu uma espécie de “Leviatã sanitário transitório”, como propôs Maristella Svampa. Com ele vieram, em boa parte dos casos, as políticas de proteção social e sanitária, mas também os militares nas ruas, estados de emergência nos quais tudo se suspende e a instalação de uma perigosa narrativa bélica.

Apesar das restrições e dificuldades inerentes aos protestos, a revolta sempre pode se produzir através de algum evento catalisador, mesmo em momentos improváveis ​​como uma pandemia

Acontece que a vigilância permanente – das formas mais clássicas aos rastreamentos digitais e drones –, o controle e o gerenciamento de big data, os novos dispositivos de reconhecimento facial e outras formas sofisticadas de controle social não estão se aprofundando apenas para combater um vírus. Medidas de concentração de poder adotadas para combater um vírus. Medidas de concentração de poder adotadas para combater a Covid-19 podem inclusive ser necessárias para possibilitar o atendimento público da saúde e a “proteção” da população. Todavia, existe uma fronteira muito tênue entre isso e as práticas autoritárias.

As respostas estatais foram diversas, variando também de acordo com os perfis dos regimes políticos. Em alguns casos, prevaleceu um capitalismo de Estado autoritário, enquanto em outros a face mais social do Estado apareceu. No entanto, boa parte das análises sobre a gestão estatal da crise procurou sublinhar os casos de “êxito” e de “fracasso”.

A variável principal, para isso, foi a contenção dos casos de contagiados e de mortos. Certamente podem existir estratégias mais bem-sucedidas do que outras e casos em que o negacionismo, unido à incompetência (nisso é difícil ganhar de Bolsonaro e Trump), oferece o pior lado das respostas ofertadas. Contudo, não podemos esquecer que, no caso dos Estados dependentes da periferia e da semiperiferia mundial, as dificuldades para enfrentar a pandemia são ainda maiores: sistemas de saúde pública praticamente inexistentes, direito à água e à alimentação minado, casas precárias e ultra-povoadas nas periferias urbanas e limitadas capacidades estatais.

Não obstante, a importância do Estado e da esfera nacional coexistiu com uma forte revalorização dos lugares e da escala local. Em todo o mundo, proliferaram iniciativas locais que buscaram gerar dinâmicas de apoio mútuo e construir bairro e comunidade com o objetivo de dar respostas coletivas a partir de baixo, com base nas necessidades quotidianas das pessoas.

Diante da dificuldade de protestar nas ruas, boa parte das análises sobre as resistências em tempos de coronavírus tenderam a enfatizar o papel fundamental do ativismo digital, mas também a criatividade dos movimentos sociais para gerar espaços e propostas inovadoras.

A imprensa, como de costume, costuma olhar apenas para a parte mais visível das ações cidadãs e dos movimentos sociais, como os flash mobs, os panelaços ou as petições eletrônicas. Embora esta tenha sido uma parte importante das ações de contestação durante a pandemia, é fundamental observar também o que se move por baixo da superfície do visível, como a auto-organização e a proteção dos trabalhadores que tiveram que continuar trabalhando, seja por questões de sobrevivência, seja porque suas tarefas se enquadram no que são considerados “serviços essenciais”.

Apesar das restrições e dificuldades inerentes aos protestos, a revolta sempre pode se produzir através de algum evento catalisador, mesmo em momentos improváveis ​​como uma pandemia. Este foi o caso do assassinato brutal em 25 de maio de 2020 de um homem afro-americano, George Floyd, por um policial branco em Minneapolis, que desencadeou um ciclo de protestos antirracistas sem precedentes nos Estados Unidos desde a luta pelos direitos civis nos anos 1960, impactando o mundo inteiro.

As chances de morrer por racismo estrutural são maiores do que pelo coronavírus, motivo que leva a uma relativização dos custos do protesto em tempos de pandemia

Embora seja comum dizer que a população idosa é a mais vulnerável ao coronavírus, os acontecimentos recentes deixaram claro que ser afro-americano nos Estados Unidos (ou negro no Brasil) significa também pertencer a uma "população de risco". Em outras palavras, as chances de morrer por racismo estrutural são maiores do que pelo coronavírus, motivo que leva a uma relativização dos custos do protesto em tempos de pandemia.

Para além das necessidades materiais e do imediato, a aposta de muitos grupos e coletividades pelo comunitário e pela reconstrução do vínculo social em tempos de profunda individualização da sociedade tem sido uma das características mais significativas. Buscou-se, também, visibilizar a desigualdade na divisão dos cuidados, a solidariedade e a soberania alimentar e energética. O confinamento de 1/3 da população mundial serviu, da mesma forma, para difundir uma mensagem em que as feministas insistem há muito tempo: o corpo também deve ser considerado como uma escala.

A escala local não foi importante apenas em um sentido transformador não institucional e, em alguns casos, anti-institucional. Nos países que não conseguiram impulsionar medidas contundentes para todo o território nacional, houve uma forte queda de braço com líderes locais e regionais que, juntamente com as iniciativas extraoficiais, assumiram o protagonismo institucional do combate à pandemia. Em outros casos, municípios progressistas também procuraram impulsionar e promover plataformas colaborativas de cuidado ou assumiram diretamente as rédeas da gestão da crise.

Este “novo retorno” dos lugares e sua centralidade para as resistências sociais e os movimentos sociais em tempos de coronavírus não podem nos levar a cair novamente em dicotomias que pareciam já superadas, mas que voltam a circular amplamente hoje, como que a escala global é o lugar do capitalismo e a escala local o locus das resistências.

Conforme insisti em várias ocasiões, nas últimas duas décadas as lutas sociais localizadas foram as mais globalizadas ou, caso se prefira, os movimentos territorializados são os que mais conseguiram se internacionalizar.

Isso foi assim, por exemplo, no caso dos movimentos camponeses e indígenas desde os anos 1990, mas também das diversas experiências reunidas em torno do movimento alterglobalização e de justiça global e ambiental. No entanto, a emergência do que defini como uma nova “geopolítica da indignação global”, durante a última década, parece ter levado a uma menor intensidade de densidade organizacional entre as lutas sociais no mundo.

Que o protesto se expanda globalmente, ou melhor, por diferentes países do mundo, não significa que esteja necessariamente se globalizando em um sentido forte

Que o protesto se expanda globalmente, ou melhor, por diferentes países do mundo, não significa que esteja necessariamente se globalizando em um sentido forte, isto é, que esteja se articulando com laços sólidos e construindo uma resposta realmente global ao sistema-mundo capitalista.

Por um lado, é necessário distinguir entre ações globais e movimentos globais. Por outro, diante da hipótese de que estaríamos frente a novas culturas políticas sem tanto afinco internacionalista, seria preciso aprofundar mais o debate sobre as mudanças na “forma-movimento” e nas modalidades de ativismos hoje no mundo. Embora sigam coexistindo com formatos mais tradicionais, nos obrigam a questionar lentes prévias para captar deslocamentos cognitivos, geracionais e identitários, com importantes repercussões sobre as práticas de resistência, as articulações políticas e as concepções e os horizontes de transformação social.

Cenários geopolíticos: recuperação, adaptação ou transição

Na geopolítica clássica houve um forte “geodeterminismo” no sentido da disposição das ações políticas às condições ambientais ou dos lugares. Além disso, o antropocentrismo predominante na modernidade permitiu que a expansão territorial e a acumulação do capital não tivessem limites, desde que o homem conseguisse “domesticar” a natureza e os recursos naturais.

Embora os limites ecossistêmicos já tenham sido ultrapassados ​​há tempos, a pandemia parece abrir uma inflexão no que se refere à centralidade que adquirem o meio ambiente e os cenários geopolíticos possíveis vis-à-vis os modelos sociais e econômicos.

No debate político contemporâneo, três projetos diferentes disputam os rumos do mundo pós-pandemia:

  • o business as usual, centrado no crescimento do PIB, no desenvolvimentismo depredador e na busca por novos nichos de mercado para sair da crise, a partir de políticas de ajuste que exigem, mais uma vez, o sacrifício de todos para maximizar o o lucro de alguns poucos;
  • o “Green New Deal”, que embora surja inicialmente uma década atrás no âmbito ecologista do Reino Unido, ganha mais ressonância nos últimos anos a partir da proposta de deputados democratas nos Estados Unidos para gerar reformas sociais e econômicas que levariam a uma transformação do sistema energético. Igualmente, se difunde muito rapidamente no último ano (e muito especialmente durante o pandemia), com apropriações diversas de empresas, organizações internacionais e da União Europeia, que está criando seu próprio “European Green Deal”;
  • a mudança de paradigma em direção a uma nova matriz econômica e ecosocial, proposta por movimentos ecologistas mais combativos e diversos setores anticapitalistas que apostam pelo decrescimento, o bem viver e medidas mais disruptivas como a única alternativa possível.

Estes projetos parecem nos levar a três cenários possíveis, que não ocorrem de forma “pura” e podem imbricar-se de múltiplas maneiras, embora todos tenham sua lógica própria: a recuperação da lógica mais agressiva do crescimento econômico; a adaptação do capitalismo a um modelo “mais limpo”, embora socialmente desigual; ou a transição para um novo modelo, que implique uma nova matriz ecosocial e econômica.

Diante destes projetos e cenários, é importante nos perguntarmos sobre as implicações de cada um deles. A implementação do “business as usual” implica um fortalecimento ainda maior da globalização militarizada, da biopolítica do neoliberalismo autoritário e de um modelo de espoliação destrutivo que levaria, previsivelmente, a cenários ainda mais catastróficos, entre os quais se incluem guerras e o aprofundamento da crise ecosocial. O “retorno à normalidade” ou mesmo “a nova normalidade” são discursos que justificam e asseguram este tipo de cenário, se apoiando na angustia de boa parte da população por recuperar sua sociabilidade e/ou emprego.

No caso da adaptação a um capitalismo verde, são previsíveis reajustes geopolíticos e geo-econômicos profundos. Segundo esta visão, já não é suficiente somente uma maquiagem verde, que começou com a Cúpula da Terra de 1992 no Rio de Janeiro e com a “adjetivação” do desenvolvimento como “sustentável”. Agora, seria necessário dar um passo além.

E sabemos que, se o capitalismo aceita dá-lo, não o faz necessariamente pelo meio ambiente, mas porque este pode ser uma via para maximizar os lucros. As novas estratégias de coexistência entre a acumulação do capital com o imaginário ambientalista poderão dar mais margem de autonomia à política local, mas poderiam, igualmente, aprofundar as desigualdades Norte/Sul e o racismo ambiental.

No entanto, é necessário ser justo: este cenário predominantemente “adaptativo” ainda está em forte disputa. Por um lado, parte importante das coletividades dominantes, principalmente no Norte, entende que é um caminho a se seguir. Por outro, forças políticas que defendem a justiça social e a sustentabilidade buscam tensioná-lo de várias maneiras, no sentido de uma ruptura e uma reconfiguração integral.

É o caso de propostas que reivindicam, desde o Sul, a “descolonização” da lógica do Green New Deal; ou que dialogam criticamente com seus pressupostos, buscando ancoragens em outras realidades, como a latino-americana, dando mais centralidade ao Estado e às contribuições das lutas populares, com o objetivo de promover, como sugerem, para o caso argentino, Maristella Svampa e Enrique Viale, um grande pacto ecosocial e econômico que possa servir para algumas realidades nacionais e como base para imprescindíveis diálogos Norte/Sul.

Em um momento de inflexão sistêmica em que as tentativas de saída capitalista da crise se juntam ao crescente autoritarismo político, é essencial gerar amplas plataformas democráticas e transformadoras

Finalmente, o terceiro cenário é o mais difícil, mas também o mais necessário para que o meio ambiente não seja somente, once again, uma bandeira para salvar o capitalismo, senão para salvar a humanidade e o planeta. São os próprios movimentos sociais, as experiências territoriais e uma diversidade de lutas e frentes populares e político-intelectuais que poderão impulsionar este cenário, tencionando os limites das narrativas do capitalismo verde. A transição rumo a uma mudança radical de matriz ecosocial é um horizonte de vários movimentos sociais hoje. Isso dificilmente será possível apenas por meio do autonomismo. Também não acontecerá se todas as fichas forem depositadas na via institucional ou estatal.

Em um momento de inflexão sistêmica em que as tentativas de saída capitalista da crise se juntam ao crescente autoritarismo político, é essencial gerar amplas plataformas democráticas e transformadoras que articulem ativistas, cidadãos comprometidos e organizações sociais com o objetivo de impedir a destruição de ecossistemas e as múltiplas desigualdades tornadas visíveis com a crise da COVID-19.

Não há uma receita, mas sim uma multiplicidade de rotas de fuga da globalização capitalista e de articulação de uma nova globalização das lutas translocais. Muitas já estão em andamento e buscam reinventar a solidariedade transnacional e o internacionalismo militante, expandindo os horizontes futuros.

Nesse espírito, nasceu em 2 de junho de 2020 a proposta de um Pacto Ecosocial do Sul, de caráter latino-americano, apoiada uma semana após sua implementação por mais de 1.400 pessoas e 300 organizações. Um dos pontos centrais da iniciativa é a articulação da justiça redistributiva com a justiça ambiental, étnica e de gênero.

Para isso, propostas concretas, também divulgadas em outros espaços (como a transformação tributária solidária, o cancelamento das dívidas externas dos Estados e uma renda básica universal), são combinadas com horizontes mais amplos associados à construção de economias e sociedades pós-extrativistas, o fortalecimento de espaços comunitários, de cuidado e de informação/comunicação a partir da sociedade.

Avançar nesta direção exigirá sacrifícios e mudanças drásticas que vão do âmbito pessoal (mudança de hábitos, redução do consumo ou diminuição de viagens) ao mais macro (políticas que possibilitem a relocalização dos alimentos e uma mudança no sistema alimentar ou o decrescimento radical em setores como o petróleo, o gás e a mineração), passando também pelas relações trabalhistas e pela vida social como um todo.

Também implica resistir territorialmente buscando novas formas de articulação, conexão e inteligibilidade dentro do mapa global de lutas emergentes. Ou, em outras palavras, articular, a partir das lutas de nosso tempo, um movimento global para disputar os rumos deste novo momento alter-globalização. Somente assim poderemos passar de uma globalização destrutiva para um “pluriverso”. Somente assim outros mundos possíveis poderão emergir.