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Byung-Chul Han: A dominação tem sucesso ao se disfarçar de liberdade

6 de abril de 2022

Estudando literatura alemã e teologia na Universidade de Munique, Byung-Chul Han doutorou-se em filosofia na Universidade de Freiburg. Um estudo sobre Martin Heidegger o levou até o doutorado. No início do século, tornou-se professor, na Universidade de Basileia, e dez anos depois se somou como pesquisador da Universidade de Artes e Design de Karlsruhe. Hoje, é um dos filósofos mais inovadores e lidos de nosso tempo. Com uma estranha mistura de idealismo e pessimismo sombrio, adentra em questões como ética, filosofia social, fenomenologia, antropologia cultural, estética, religião, teoria da mídia e interculturalidade. Desde 2012, é professor de Estudos de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade das Artes de Berlim. 

Seu olhar cuidadoso sobre o trânsito humano foi firmado em suas obras que, logo que publicadas, tornaram-se best-sellers. Sociedade do cansaço (2012) e Sociedade da transparência (2013) unificam a ideia do absoluto desinteresse do sujeito contemporâneo submetido ao mundo digital. Não-coisas: Transformações no mundo em que vivemos (2021) aborda uma nova forma de dominação, na qual o que determina a riqueza é o acesso à informação e não a posse de objetos. Duas frases o definem: “Não precisam mais curvá-lo. Você foi convencido a se submeter voluntariamente”. Em seu novo livro Infocracia (Taurus), que acaba de ser publicado, aprofunda-se na digitalização e a crise da democracia. 

Flavia Tomaello entrevista Byung-Chul Han, La Nación, 4 de abril de 2022. A tradução é do Cepat. 

Você disse que “a sobrevivência se converterá em um absoluto, como se vivêssemos em um estado de guerra permanente”, uma definição que parece ter sido aperfeiçoada na pandemia. Considera que o cansaço da sociedade se aprofundou nesse tempo? 

A sociedade da sobrevivência gastou todo o bom senso para apreciar as coisas boas da vida. O positivismo hiperexacerbado tornou a incerteza insustentável. O excesso de informação assinalou o desespero das eternas quarentenas e a reconversão de um status quo que se retroalimentou (e segue nisso) com o surgimento de novas cepas. Parece que nos apegamos a esse presente fraco de sentido. Não deixamos a Covid partir. Nós nos apegamos ao vírus como se ele tivesse nos dado um propósito. 

Nesse sentido, avalia que há um jogo alternado de ilusões e desilusões? 

A Covid nos encheu de novos vazios, embora com preocupações alarmantes às quais esse homem contemporâneo embarca sem análise, em parte arrastado pela apatia criada pelo hiperconsumismo e a hipertransparência. Impuseram-nos monitoramentos atentos, quarentenas mais alinhadas ao critério da política do que aos argumentos da saúde. Marcos que implicaram um compromisso com as liberdades como não víamos desde a Segunda Guerra Mundial.

Em busca da saúde, dinamitou-se qualquer esboço de prazer, embora, nesse paradoxo, todo o anterior pressupõe uma artilharia debilitante para seu construtor. O pano de fundo deixa entrever uma destruição do tecido humano em prol do surgimento de um medo em massa que polariza o conceito de sobrevivência, submetendo-o às realidades do mercado. 

É a isso que se refere quando sustenta que a morte não é democrática? 

A Covid se tornou uma luz negra que desnuda o que não pode ser visto a olho nu, mas que alguém pôs aí. A vulnerabilidade humana não é igualitária ou inclusiva. A mortalidade depende do status social. A morte jamais foi equitativa. A pandemia não mudou as coisas, apenas colocou sobre a mesa as desigualdades sociais que revelam por que uns adoecem mais do que outros, uns morrem sem a atenção adequada e outros ainda não receberam suas vacinas. 

Centenas de estudos científicos se encarregaram de apontar como os afro-americanos quase duplicam os números de mortalidade, gravidade ou doença em comparação às populações brancas nos Estados Unidos. Isso parece ser uma novidade para as massas, mas é uma realidade que conhecemos. Não nos surpreende, apenas nos reconfirma. Aqueles que tiveram que trabalhar independente de qualquer coisa foram, justamente, os moradores de bairros suburbanos que não podiam deixar seus empregos porque pertencem a um grupo indocumentado ou fora da legalidade trabalhista. 

O que não existe 

O que acreditamos ser real perde as fronteiras sob a intangível virtualidade?

Ainda somos acumuladores, mas agora de bits. Os objetos são pilares que nos oferecem segurança. Mas esses tempos estão obscurecidos pela informação e todas as suas nuances. Não se trata mais do que o apresentador de notícias ou a manchete do jornal sugerem. O lado escuro da informação é introduzido, inclusive por meio das coisas, mas para transformá-las em não-objetos. Por exemplo, o smartphone não é mais uma coisa. É o próprio canal no qual cada um de nós recebe seu próprio bombardeio de informações que voejam como beija-flores diante de nossos sentidos, coibindo a capacidade de análise.

Esse fluxo de informações é o contrário de qualquer objeto que possa sustentar a tranquilidade humana. Invade-nos com excitação constante. Torna-nos viciados em receber mais, cada vez mais o novo, o imediato. Os acontecimentos vão para o passado mais rápido do que o tempo. A hiperconexão dinamitou nossas dinâmicas. O teletrabalho é a prova disso. A arquitetura do dia foi arrasada. Nossos rituais perderam estruturas. A pandemia acelerou esse novo esquema em que a perda de forma mergulha as pessoas em um mar líquido no qual os náufragos se debatem com a depressão. 

Diferentes tempos e continuidades coexistem na hipercultura em um universo de mosaico. Os vínculos emergem múltiplos e variáveis. A superficialidade da amizade é a base da hiperculturalidade. Sua própria falta de regras permite um impacto generalizado. Cria um máximo de solidariedade com um mínimo de inter-relação. Tanto positivismo esgota.

Não há polarização de amigo versus inimigo, de dentro versus fora, ou do pessoal versus o estranho, do real versus o virtual. As redes sociais parecem ser o cenário da cultura contemporânea. Nesse hiperespaço, tentam evitar mensagens negativas de qualquer tipo ao proporcionar apenas janelas estreitas para a interação. 

Quando você fala sobre o hiperespaço, refere-se apenas ao mundo digital ou a hipercultura também é evidente em outros lugares? 

O hiperespaço é um híbrido onde tudo se cruza. Nele, os parâmetros culturais e geográficos são eliminados. É uma esfera com a ausência da distância, o que retira a possibilidade de perspectiva. A hiperculturalidade é diferente da multiculturalidade. Ela a supera. Como diria [o filósofo francês Jean] Baudrillard, emerge um cenário mais real que o real, a hiper-realidade.

As redes sociais não são um espaço de liberdade. É o que permite o controle total. Oferece aos usuários uma sensação de liberdade mais ligada ao voyeurista do que ao ator. Ao contrário do que estávamos acostumados, o controle é alcançado por meio da interconexão. Os reclusos confinados abrem espaço para os usuários que acreditam ser livres. 

Você disse que a amizade é uma nova forma de empreendedorismo. O que isso significa? 

Uma campanha recente do Burger King apresentou o programa Whopper Sacrifice. As pessoas foram convidadas a excluir dez amigos do Facebook para ganhar um hambúrguer grátis. Foi um sucesso porque o que chamamos de amizade nas redes tem tão pouco valor quanto um pacote de carne de fast food. Os indivíduos são microempreendedores que avaliam suas ações com base no ganho que podem obter. Até a amizade deve ser rentável. As redes sociais não são um espaço amigável. Do ponto de vista econômico, são áreas de exploração. 

Quais tipos de trocas essas amizades produzem? 

Os amigos são os clientes dessa época, então ganhar novos é ampliar o portfólio. O aumento de seguidores fortalece o senso narcisista do eu. A internet é um espaço autorreferencial onde se busca circular a si mesmo. Mais sobre o que já pesquisei, mais sobre o que quero ler, mais sobre pessoas que pensam como eu. Não existe o desafio do outro. O espaço virtual é um inferno de monotonia. 

Você considera que a série ‘Squid Game’ é premonitória para a sua leitura da digitalização? 

É um caminho. A digitalização nos leva a um novo conceito de Homo: o Homo ludens, mais preso ao jogo do que ao trabalho. As redes sociais e os videogames vêm incorporando práticas supostamente lúdicas e inocentes, mas que reforçam o vício dos usuários. Uma condição que se acentua em crianças. Já estamos cercados por moedas sem lastro, datassexualidade, experiências comunitárias totalmente online e internet das coisas. Tudo supõe um alerta de vigilância contínua que reúne informações permanentes sobre nós, mas que agora não fica apenas nisso. Também nos prediz o que queremos.

O alerta do modelo é a sua pretensa liberdade. Optamos em deixar que o smartphone ou o smartwatch nos indique a qualidade de nosso sono ou quantos passos damos, mas, na verdade, submete-nos ao ditado da quantidade correta. A resistência nasce da opressão. A digitalização esconde sua essência repressiva por trás de um rosto sedutor. A dominação se torna bem-sucedida ao se disfarçar de liberdade. Submete-nos a mostrar como somos, ao mesmo tempo em que nos homogeneíza. Estamos chegando ao inferno de sermos todos iguais.