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Catar 2022: Copa ou massacre?

Não importa o vencedor, a sociedade como um todo já perdeu!

16 de novembro de 2022

Marco Gonsales, militante da Insurgência São Paulo. 16 de novembro de 2022.

A copa mais cara da história é também a que mais matou trabalhadores em suas obras. Em um relatório publicado em 2021, com base nos dados fornecidos pelo próprio governo do Catar, a Anistia Internacional afirma que mais de 15.021 imigrantes morreram no Catar entre 2010 e 2019, principalmente nos canteiros dos empreendimentos construídos para a realização dos jogos, como sete estádios, um aeroporto, inúmeras estradas, metrôs, mais de cem hotéis e uma nova cidade, que sediará a final do mundial. O jornal The Guardian, em fevereiro de 2021, contabilizou, através de informações enviadas pelas embaixadas da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka, 6.750 mortes de trabalhadores que atuavam nas obras de preparação para Copa do Mundo (PATTISSON et al., 2021). 

No entanto, o jornal britânico não obteve informações da Filipinas, do Quênia e de Gana, nacionalidades de outros tantos milhares de estrangeiros que atuaram nas obras da Copa. Não por menos, os próprios dados fornecidos pela Autoridade de Planejamento e Estatística do Catar à Anistia Internacional não levam em consideração as mortes por ataque cardíaco e insuficiência respiratória, doenças muitas vezes acometidas por insolação, altas temperaturas e excesso de esforço, fatores característicos dos canteiros de obra deste país, onde muitos dias a temperatura alcança os 50º celsius. Outros fatores que levam a subnotificação dos óbitos é que muitos destes trabalhadores imigrantes faleceram depois de retornarem aos seus países natal e os números também não incluem os óbitos de trabalhadores catarianos, uma minoria, já que cerca de 95% da força de trabalho deste país é composta por imigrantes (GOODWIN, 2021).

O relatório, além de números, traz relatos de colegas das vítimas do massacre:

Sujan Miah tinha apenas 32 anos quando colegas de trabalho o encontraram morto na sua cama na manhã de 24 de setembro de 2020. Ele era um encanador em um projeto no deserto e trabalhava em temperaturas que ultrapassavam 40°C nos quatro dias anteriores. Manjur Kha Pathan tinha 40 anos e trabalhava de 12 a 13 horas por dia como motorista de caminhão. O ar-condicionado do seu caminhão estava com defeito. Ele desmaiou em sua acomodação em 9 de fevereiro de 2021 e morreu antes da chegada da ambulância. Ele era casado e tinha quatro filhos (ANISTIA INTERNACIONAL, 2021, p. 36).

“Agora tudo acabou”, disse Bhumisara, esposa de Yam Bahadur Rana também morto nas obras. “A minha vida se tornou como um espelho quebrado.” Ela disse à Anistia Internacional que, desde que ficou viúva, ela e seus dois filhos tiveram que sobreviver com 2.000 rúpias (aproximadamente R$ 80,00) por mês, fornecidas pelo governo nepalês. Bipana, esposa de Tul Bahadur Gharti, disse: “Chorei muitas vezes. Ficar sozinha é muito difícil... Meu marido foi queimado. Sinto que estou queimando em óleo” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2021, p. 36).

Não tendo nada além de sua força de trabalho, estes trabalhadores, como muitos outros, são atraídos pelos salários superiores ao que normalmente encontram em seus países. No entanto, no Catar, eles se tornam reféns dos seus empregadores, pois estes, são protegidos pelo sistema kafala, que impede que os imigrantes troquem de empregos ou mesmo saiam do país sem a autorização do patrão. Não por menos, são inúmeros os relatos de descontos indevidos e atrasos nos pagamentos levando muitos trabalhadores a relatarem dificuldades para se alimentar. Alguns retornam a suas nações com uma mão na frente e outra atrás e acabam sendo perseguidos pelos intermediários, que agenciaram a imigração e agora cobram pelos “serviços prestados”, segundo informa a Human Rights Watch (BURDULIS, 2022).

Os pesquisadores franceses Sébastian Castelier e Quentin Muller entrevistaram 60 trabalhadores das obras da Copa do Catar e recentemente publicaram o livro “Les Esclaves de l’Homme Pétrole” (Os escravos do petróleo). Segundo relato de um dos entrevistados, publicado pela rede France 24, Krishna Timislina, a vida no Catar “era o inferno na terra [...] sabíamos que nossa saúde estava sendo prejudicada, mas tínhamos escolha?”. Ele disse que trabalhava muitas vezes 18 horas por dia em um calor abrasador, bebendo água suja e energéticos, vivendo em alojamentos precários, sem espaço ou privacidade, vendo inúmeras pessoas se acidentando, adoecendo e morrendo (HOUEIX, 2022).

Depois de muita pressão de inúmeras organizações como a Human Rights Watch, Migrant-Rights, Anistia Internacional, da Organização Internacional do Trabalho e de algumas federações de futebol, em 2018, o governo catariano implementou reformas que, por exemplo, extinguiu o nefasto sistema kafala, criou um fundo para assegurar e agilizar os salários dos trabalhadores, ampliou as penalidades para os empregadores inadimplentes, estabeleceu comissões para julgarem conflitos trabalhistas, dentre outras medidas.

No entanto, segundo relatório da Anistia Internacional (2021), apesar da reforma, muito pouco se efetivou. Os salários, segundo a organização, continuaram sendo atrasados e muitas vezes não foram pagos, o Fundo de Amparo e Seguros aos trabalhadores entrou em operação apenas em 2020 e ainda não ficou claro como e quando os trabalhadores podem se qualificar como beneficiários, o governo também não revelou a quantidade de trabalhadores que solicitaram recursos ao fundo e diversos trabalhadores que venceram seus processos julgados pelas comissões trabalhistas disseram não terem recebido um centavo se quer. 

No caso do regime kafala, de fato, o Catar revogou a necessidade de os imigrantes apresentarem uma autorização dos seus patrões para poderem deixar o país e permitiu a livre movimentação, ou seja, a troca de empregos pelos trabalhadores estrangeiros. Por outro lado, o fracasso das autoridades em implementar e fiscalizar as novas leis, além das inúmeras brechas do sistema, impedem que as mudanças diminuam o fardo dos imigrantes trabalhadores neste país.

Por exemplo, o empregador ainda pode solicitar ao Ministério do Desenvolvimento que 5% da sua força de trabalho dependa de autorização para deixar o país, o confisco do passaporte pelo empregadores continua sendo uma prática comum, muitos se recusam a pagar a passagem de retorno dos imigrantes, outros roubam seus próprios trabalhadores e os acusam de largarem o emprego, comportamento considerado crime no Catar. A nova lei permite a mudança de emprego, contudo, os trabalhadores imigrantes precisam ter trabalhado pelo menos 6 meses na empresa e caso não tenham, seu novo empregador devera ressarcir os custos de passagem e recrutamento do antigo patrão (ANISTIA INTERNACIONAL, 2021).

A FIFA, em seu site, na seção Pilar (Des)Humano, afirma que o mundial é uma oportunidade para o Catar implementar importantes legislações de cunho trabalhista. A organização afirma que, graças a Copa, o Catar se tornou o único do Golfo a estabelecer um salário-mínimo e permitir que os imigrantes mudem de emprego, contudo, como demonstrado acima, essas mudanças aparentemente são apenas paliativas (FIFA). Como é de notório saber, o país é comandado através de um regime autoritário, onde partidos, associações, sindicatos, protestos e greves são proibidos, não há eleições, a mídia é controlada, apenas 300 mil pessoas (dos aproximadamente 3 milhões de habitantes) são consideradas cidadãs e o Emir (o líder, ou melhor, o dono) do país, Tamim bin Hamad Al Thani, comanda os três poderes com mão de ferro. Portanto, sem liberdade e fazendo uso de uma força de trabalho quase exclusivamente imigrante, dificilmente, a classe trabalhadora deste país conseguira sustentar as tímidas mudanças realizadas pelo país nos últimos anos que, ao fim ao cabo, objetivaram apenas salvaguardar a imagem da inescrupulosa FIFA e de sua principal mercadoria: a Copa do Mundo. 

ANISTIA INTERNACIONAL. Reality Check 2021: A year to the 2022 World Cup: the state of migrant workers’ rights In Qatar. Londres: Anistia Internacional, 2021. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/mde22/4966/2021/en/. Acesso em: 11 nov. 2022.

BURDULIS, Šarūnas. Qatar: Wage Abuses by Firm in World Cup Leadup, Human Rights Watch, 3 mar. 2022. Disponível: https://www.hrw.org/news/2022/03/03/qatar-wage-abuses-firm-world-cup-leadup. Acesso: 11 nov. 2022.

FIFA. Workers’ recruitment and working conditions. Disponível em: https://publications.fifa.com/en/sustainability-report/human-pillar/workers-recruitment-and-working-conditions/workers-recruitment-and-working-conditions-overview/. Acesso em: 11 nov. 2022.

GOODWIN, Allegra. Qatar inadequately investigating workplace deaths, ILO says ahead of World Cup. CNN, 2022.

HOUEIX, Romain ‘Just hell’: New book shines light on migrant deaths ahead of Qatar World Cup. France 24, World Cup, 2022. Disponível em: https://www.france24.com/en/middle-east/20221102-just-hell-new-book-shines-light-on-migrant-deaths-ahead-of-qatar-world-cup. Acesso em: 11 nov. 2022.

PATTISSON, P. et al. Revealed: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World

Cup awarded. Rights and freedom. The Guardian, 2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022. Acesso em: 11 nov. 2022.