Voltar ao site

Chacina do Salgueiro e guerra de extermínio em nome das drogas

7 de dezembro de 2021

Não importava nada se o indivíduo estava envolvido com o tráfico, roubo de carga ou assassinato de policial. Importava apenas se era jovem e negro de periferia. Esse era o alvo. O corpo matável

Athos Vieira, El País Brasil, 2 de dezembro de 2021

No dia 22 de novembro de 2021 os moradores do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, começaram o dia removendo corpos de um manguezal, após mais um cenário de barbárie provocado pela polícia militar. A chacina ocorreu após a morte de um policial ocorrida no sábado, dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra. A vingança veio na madrugada de 21 pra 22.

Policiais do BOPE, Batalhão de Operações Especiais, invadiram o Complexo do Salgueiro e mataram, até a última informação, 10 pessoas. Embora 7 dos 10 mortos até o momento tivessem passagem pela polícia, seus reais crimes nada tem a ver com o tráfico de drogas ou roubo de cargas, mas com o fato de serem negros, jovens e moradores da periferia. Essa chacina ocorreu quase 6 meses após a outra ocorrida no Jacarezinho, onde a Polícia Civil matou 28 pessoas, também após a morte de um policial. A dinâmica que compreende ambos os eventos é a mesma e está no Brasil desde a fundação, isto é, uma sociedade constituída, em sua maioria, por corpos matáveis.

Homo sacer e os corpos matáveis

Em Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua, Giorgio Agamben, filósofo italiano, resgata a figura do Homo Sacer, ou o “homem sagrado”, indivíduo que carrega em si a dualidade paradoxal do direito romano porque excluído da ordem ao mesmo tempo em que capturado por ela, porém do lado de fora. Agamben pretende contestar a tese foucaultiana de que a biopolítica somente se organizou enquanto poder sobre a vida dos corpos a partir da sociedade, saberes e Estados modernos. Para o italiano, esse controle sobre a vida –e a morte– remete à própria constituição do Estado ocidental, aos seus fundamentos mais básicos.

Na constituição do direito romano foi estabelecida a condição do bandido, abandonado pelo bando por representar a exceção e, por isso, capturado fora do ordenamento legal. A exceção aqui se refere aos comportamentos da vida cotidiana que formaram a base das estruturas legais. Essa ambivalência entre estar excluído, mas também capturado somente é possível devido a um conceito central para Agamben, o de soberania e que configura o poder estatal. É esse poder soberano, e apenas ele, que se faz capaz de enquadrar a vida nua nessa ambivalência da exclusão e captura. O Homo Sacer, capturado fora, se torna um indivíduo cuja morte matada, que deixa até mesmo de ter valor sacrificial, não é enquadrada como crime. É o biopoder total.

É impossível não associar esse personagem ao jovem negro da sociedade brasileira atual. Esse Homo Sacer brasileiro, excluído da sociedade, não tem voz e sua morte não produz nem mesmo um corpo a ser chorado, mas ao mesmo tempo está também capturado como exceção. Ao longo de toda a história brasileira o corpo negro foi condenado em sua própria existência. O sistema criminal foi se moldando de acordo com a necessidade para seu controle. Ainda durante a escravatura do século XIX, um toque de recolher, o Toque de Aragão, dava à polícia poderes discricionários para prender os corpos sem direitos durante os horários noturnos. Dois anos após o fim da escravidão foi criada legislação que punia com prisão quem não comprovasse residência e trabalho formal. Práticas e crenças da população negra foram e seguem sendo criminalizadas, processo do qual o proibicionismo e a “guerra às drogas” se configuram apenas como o estágio atual. 

Cabe salientar que desde a implementação da atual lei de drogas, de 2006 até 2019, a população carcerária enquadrada em crimes correlatos cresceu cerca de 600%. A grande maioria desse novo contingente carcerário é formada por jovens negros presos com pequenas quantidades e sem vinculação com facções. No mesmo período, a população brasileira cresceu 11%. Como a advogada e ativista norte-americana, Michelle Alexander, demonstra em seu livro “A nova segregação”, o sistema de justiça criminal norte-americano foi convertido em uma “estrutura racista e classista à serviço do capitalismo” com o fim de segregar a população negra através da morte ou prisão. No Brasil, a função do sistema criminal se estabeleceu de forma similar e, além de cruel e excludente, é caro para todos os contribuintes. A primeira fase do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir? revelou que somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo aplicaram mais de 5 bilhões de reais em 2017 para processar e prender pessoas enquadradas na atual Lei de Drogas. O quanto desse dinheiro não poderia ter sido usado para construir futuro ao invés de morte?

O foco não são as drogas

No início do mês de novembro, um estudo global colocou o Brasil em último lugar em uma lista de 30 países. O The Global Drug Policy Index 2021 comparou políticas de drogas de cada uma das 30 nações desde um ponto de vista dos direitos humanos. Foram atribuídas notas em critérios como a aplicação da justiça criminal, existência de políticas de cuidado e acesso a drogas regulamentadas internacionalmente para o alívio de dores crônicas que formaram um ranking no qual coube ao Brasil o último lugar, atrás de países como Uganda, Quênia, Indonésia e Afeganistão. As razões que fizeram o Brasil pontuar tão mal se referem à ausência de políticas de redução de danos e à prática, considerada “endêmica” pelo relatório, de execuções extrajudiciais relacionadas à política de drogas. Foi o que aconteceu no Jacarezinho e no Salgueiro.

Importa muito pouco o que tenha acontecido nas duas ocorrências. Se um policial foi morto, se os rapazes estavam vestidos para guerra (!), se vendiam e controlavam o narcotráfico local. Nada disso realmente importa porque o ocorrido nada teve a ver com drogas ou vingança. Os policiais festejaram antes e depois da chacina em São Gonçalo. Fizeram “uma baguncinha” no mangue do Complexo do Salgueiro, como disse um deles. A impunidade desses executores é garantida pela leniência do Ministério Público que não investiga e não processa os crimes da polícia que, sob a fachada da guerra às drogas, mantém legitimado perante à sociedade a prática de extermínio da população negra. Como o CESeC tem demonstrado em diversos estudos, a letalidade policial atinge de maneira desproporcional as populações periféricas e negras.

Naquela noite, na favela do Salgueiro e na manhã da incursão ao Jacarezinho, o que aconteceu foram sessões de terror e crueldade. A polícia invadiu casas, caçou os bandidos, os “excluídos” que seriam identificados e executados ali com base no julgamento daqueles policiais armados até os dentes e vestidos —estes sim— com camuflados de guerra com todos os aparatos de combate. Foram esses homens os juízes e os executores dos jovens negros que tiveram a desgraça de passar diante de seus fuzis. Foram esses policiais que decidiram o futuro ou o fim da existência de cada indivíduo no qual eles puseram os olhos naquela noite ou manhã. Não importava nada se o indivíduo estava envolvido com o tráfico, roubo de carga ou assassinato de policial. Importava apenas se era jovem e negro de periferia. Esse era o alvo. O corpo matável.

Athos Vieira é historiador e coordenador do projeto Drogas: quanto custa proibir no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)