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Chile: mais um grande prego no caixão do neoliberalismo

28 de dezembro de 2021

A rebelião de 2019 no Chile abriu um caminho que a vitória de Boric consolidou. Mas este continua a ser acidentado e complicado. Até porque falta organização política.

Francisco Dominguez, Esquerda.net, 27 de Dezembro, 202 - 17:44h

Os homens [e as mulheres] fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” Marx, “18 de Brumário de Louis Louis Bonaparte”.

Há alguns dias, quando o candidato neofascista José Antonio Kast ganhava a primeira volta das eleições presidenciais do país, a rebelião de 2019 do Chile, que pretendia enterrar o neoliberalismo, parecia estar destinada a acabar. Contudo, foi em grande medida revigorada pela vitória esmagadora do candidato do Apruebo Dignidad [1], Gabriel Boric Font, que obteve 56% dos votos na segunda volta, ou seja, perto de cinco milhões de votos, a maior votação de sempre da história do país. Gabriel, de 35 anos, é o Presidente mais jovem de sempre.

Este resultado teria sido ainda maior se não tivesse sido implementada a política da ministra dos Transportes, Gloria Hutt Hesse, que deliberadamente não ofereceu quase nenhuma alternativa de transportes públicos, especialmente autocarros para os bairros pobres, com vista a minimizar o número de eleitores pró-Boric, esperando que desistissem e voltassem para casa. [2] Ao longo do dia das eleições houve relatos constantes nos meios de comunicação social mainstream, especialmente nas televisões, de pessoas nas paragens de autocarro de todo o país, mas particularmente de Santiago, [3] a queixar-se amargamente de terem de esperar duas ou três horas por autocarros para chegar aos locais de votação. Assim, havia medos justificados de que a eleição poderia ser viciada, mas a determinação dos eleitores pobres foi de tal ordem que a manobra não funcionou.

A campanha de Kast, com a cumplicidade da direita e dos principais meios de comunicação social, travou uma das campanhas eleitorais mais sujas da história do país, a fazer lembrar a “propaganda do terror” financiada e dirigida pelos EUA contra o candidato socialista Salvador Allende em 1958, 1964 e 1970. Através dos boatos e do uso das redes sociais, o campo de Kast espalhou propaganda anti-comunista básica, acusou Boric de ajudar o terrorismo, sugeriu que instalaria um regime totalitário no Chile e coisas desse género. Esta campanha procurava instilar medo principalmente na pequena-burguesia ao prever que a toxicodependência – até sugerindo que Boric consumia drogas –, o crime e o narcotráfico ficariam fora de controlo se este se tornasse presidente. Para além disso, os principais meios de comunicação social assediavam Boric com perguntas insidiosas sobre a Venezuela, a Nicarágua e Cuba às quais ele não deu respostas muito impressionantes.

Em vão, a massa da população percebeu isso e soube que o seu voto era a única maneira de impedir que o pinochetismo se apoderasse da Presidência, e já estavam fartos do Presidente Piñera. A sua perceção estava correta, sabiam que, naquelas circunstâncias, a melhor maneira de garantir os objetivos da rebelião social de outubro de 2019 era derrotando Kast e a sua marca de pinochetismo não adulterado.

À medida que a campanha eleitoral decorria, apesar de Kast se ter retratado de algumas das mais virulentas afirmações pinochetistas, o povo sabia que se ele ganhasse não iria hesitar em implementá-las por completo. Entre outras pérolas, Kast declarou que iria abolir o ministério das Mulheres, o casamento entre pessoas do mesmo género, a (muito restritiva) lei do aborto, eliminar o financiamento do Museu Memorial às vítimas da ditadura e ao Centro para a Promoção das Artes, Literatura e Teatro Gabriela Mistral, tirar o Chile da Comissão Internacional para os Direitos Humanos, fechar o Instituto Nacional para os Direitos Humanos, encerrar a FLACSO (um prestigiado centro de investigação sociológica da América Latina), construir uma vala na fronteira norte do Chile (com a Bolívia e o Peru) para travar a imigração ilegal e atribuir autoridade legal ao Presidente para deter pessoas em locais que não esquadras ou prisões (ou seja, restaurar os procedimentos ilegais da sinistra polícia de Pinochet).

As intenções de Kast não deixavam margem de dúvidas sobre qual seria a opção correta nestas eleições. Mas eu fiquei espantado com várias análises esquerdistas que defendiam que não se votasse, num caso porque se dizia que “não há diferença essencial entre Kast e Boric”, e, até pior, outra sugeria que “o dilema entre fascismo e democracia era falso porque a democracia chilena é defeituosa”. O meu desespero relativamente a estas “posturas de princípio”, provavelmente guiadas pelas melhores intenções políticas, transformou-se em choque quando no próprio dia das eleições, o correspondente da Telesur em Santiago entrevistou um ativista chileno que só atacava Boric, sendo a mensagem central da peça “seja quem for que ganhe, o Chile perde”. [4]

A coligação de centro-esquerda Concertación, [5] que governou o país durante 24 anos no período 1990-2021 e carrega muita da responsabilidade pela manutenção e até pelo aperfeiçoamento do sistema neoliberal, expressou abertamente a sua preferência por Boric, e apoiou-o assiduamente na segunda volta. Assim, quem acredita que não há diferença entre Kast e Boric, fá-lo não apenas a partir de uma posição de extrema-esquerda mas também considerando-o culpado por associação, apesar dele ainda não ter tido sequer oportunidade de cometer qualquer crime.

Isto traz-nos de volta ao tema político central: o que foi que a rebelião de outubro de 2019 e as suas impressionantemente positivas consequências trouxeram à classe trabalhadora chilena? O que está em questão no Chile é a luta não (ainda) pelo poder mas pelas massas que durante décadas foram levadas a aceitar (embora a contragosto) o neoliberalismo como um facto da vida, até à rebelião de 2019 que foi a primeira mobilização de massa não apenas para se opor mas também para se livrar do neoliberalismo. [6] A rebelião conseguiu arrancar concessões extraordinárias da classe dominante: um referendo para uma Convenção Constitucional com a tarefa legal de esboçar uma constituição anti-neoliberal para substituir a de 1980, promulgada sob o poder de Pinochet.

O referendo aprovou a proposta de uma nova constituição e a eleição de uma Convenção por 78% e 79%, respetivamente, em outubro de 2020. A eleição da Convenção deu à direita chilena apenas 37 lugares em 155, ou seja, cerca de 23%, ao passo que aqueles a favor da uma mudança radical obtiveram um total de 118 lugares, ou seja 77%.

Ainda mais notável, socialistas e democratas-cristãos, os velhos partidos da Concertación, obtiveram em conjunto um total de 17 lugares. O maior problema reside agora na fragmentação das forças emergentes que lutam por mudança, uma vez que juntos têm quase o resto dos lugares mas estão organizados nuns cinquenta grupos diferentes.

Contudo, em sintonia com o contexto político, a Convenção elegeu Elisa Loncón Antileo, uma líder indígena Mapuche, como presidente e havia 17 lugares reservados exclusivamente para as nações indígenas e eleitos apenas por estas; um avanço de significado gigantesco.

A rebelião massiva também conseguiu obter outras concessões do Governo e Parlamento como o regresso de 70% das contribuições para as reformas dos “administradores de pensões” privados que os chilenos corretamente veem como uma fraude massiva que dura há mais de três décadas. Isto causou um pesado golpe no capital financeiro chileno. Uma proposta para o retorno dos restantes 30% falhou a aprovação no Parlamento no final de setembro de 2021 por uma margem de votos muito pequena. Acredito que os administradores de fundos de pensões ainda vão ouvir falar mais sobre este assunto no futuro.

O cenário acima esboçado tornou-se repentinamente confuso com os resultados da primeira volta das eleições presidenciais em que não apenas Kast ficou em primeiro (com 27% contra 25% de Boric) mas também elegeu deputados e senadores para as duas câmaras do parlamento. Apesar do Apruebo Dignidad ter tido um resultado muito bom (com 37 deputados em 155 e cinco senadores em 50), a força de direita Chile Podemos Más (os apoiantes de Piñera) obteve 53 deputados e 22 senadores, enquanto a velha Concertación teve 37 deputados e 17 senadores.

Há várias dinâmicas em causa aqui. Nas eleições parlamentares, aplicam-se os mecanismos tradicionais e as relações clientelares que fazem com que políticos experientes com influência local sejam eleitos. Contrastando com isto, a maior parte dos membros eleitos para a Convenção são uma série de grupos de pressão heterogéneos, organizados em campanhas de tema único (pensões, privatização da água, preço do gás, abuso de empresas de serviços públicos, defesa das terras ancestrais Mapuche, corrupção estatal e assim por diante), que não apresentou candidatos parlamentares.

Um facto muito importante foi o compromisso público de Boric no seu discurso de vitória em apoiar e trabalhar em conjunto com a Convenção Constitucional para uma nova Constituição. Isto deu e dará um ímpeto enorme aos esforços de substituir constitucionalmente o modelo económico neoliberal existente.

O que a classe trabalhadora do Chile deve resolver é a sua falta de liderança política. Não têm uma Frente Popular de Resistência (FNRP) como o povo das Honduras para lutar contra o golpe que afastou Mel Zelaya em 2009. A FNPR, feita de muitos e variados movimentos políticos e sociais, evoluiu para o partido Libre que acaba de ser ter sucesso na eleição de Xiomara Castro como a primeira mulher presidente do país. [7] Um caminho possível para lidar com esta falha potencialmente perigosa seria juntar numa conferência nacional todos os grupos monotemáticos com os movimentos sociais e as correntes políticas disponíveis para construir uma Frente Popular por uma Constituição Anti-Neoliberal.

Afinal, eles têm saído às ruas há dois anos para enterrar o modelo neoliberal opressor, abusivo e explorador e está a ficar cada vez mais claro o que deve substituí-lo: um sistema baseado numa nova Constituição que permita a nacionalização de todos os serviços públicos e recursos naturais, puna os corruptos, respeite as terras ancestrais dos Mapuche e garanta saúde, educação e pensões decentes. O caminho para lá chegar continuará a ser acidentado e complicado, mas conquistámos as massas; agora, com um governo solidário, podemos lançar a transformação do estado e construir um Chile melhor. 

Francisco Dominguez é professor de Ciência Política na University of Middlesex. Texto publicado originalmente no Public Reading Rooms. Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net. 

Notas

[1] Uma coligação eleitoral basicamente constituída pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista, junto com grupos mais pequenos.

[2] No Chile o voto é voluntário e os níveis de abstenção da primeira volta foram 53%; O El País de 17 de dezembro noticiava que 60% dos eleitores de La Pintana, um bastião de Boric, tinham ficado em casa na primeira volta.

[3] Santiago tem mais de seis milhões de habitantes do 19 milhões do total de chilenos.

[4] Os líderes e presidentes dos países da América Latina que tornam possível a existência da Telesur possivelmente não concordariam com esta, a meu ver, mensagem irresponsável.

[5] A Concertación é constituída, basicamente, pelos Partidos Socialista e Cristão Democrata, mais outros partidos mais pequenos, com estes dois partidos a ter a presidência respetivamente em três e dois períodos de um total de sei.

[7] Ver a minha posição sobre as Honduras aqui(link is external).Chile: Mais um grande prego no caixão do neoliberalismoChile: Mais um grande prego no caixão do neoliberalismo