Voltar ao site

Chile: Que as alamedas permaneçam abertas ao povo

19 de dezembro de 2021

19 de dezembro de 2021. Helena Cunha é bacharel em relações internacional pelo IRI-USP, é mestranda do Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina na mesma universidade e é militante da Insurgência São Paulo.

O Chile se encontra hoje em uma encruzilhada histórica. Longe de ser apenas uma disputa eleitoral entre diferentes frações tradicionais da burguesia, o que está em jogo nas eleições deste 19 de dezembro é o futuro do processo de transformações sociais iniciadas com a grande revolta popular de 2019, que colocam em xeque o legado neoliberal herdado da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). Assim, se a candidatura de Gabriel Boric, pela coalizão Apruebo Dignidad, representa a consolidação do bloco de forças populares que tomou as ruas em 2019 e abriu o caminho para a redação de uma nova Constituição, seu adversário José Antonio Kast, candidato da ultra-direita que venceu o primeiro turno, representa uma saída conservadora para a crise que se aprofundou durante a pandemia e o fortalecimento do legado pinochetista no país.

Muito embora a diferença entre os dois candidatos no primeiro turno tenha sido de apenas 2%, o clima político no dia 21 de novembro era de derrota da esquerda, em um país onde desde 2019 os movimentos populares têm demonstrado uma maioria social nas ruas e nas urnas. Depois da esmagadora vitória do "Apruebo" no plebiscito que definiu a abertura do processo constituinte, em outubro de 2020, a esquerda também triunfou nas eleições para a Convenção Constitucional, em maio de 2021, com candidaturas de partidos de esquerda e independentes que representam os setores populares que foram às ruas em 2019. Já no pleito de novembro, que além do primeiro turno presidencial também elegeu novos representantes para a Câmara de Deputados e renovou parte do Senado, a direita conseguiu recuperar parte do terreno que havia perdido na Convenção, conquistando uma leve maioria na Câmara Alta.

Todavia, o clima de derrota e medo do que uma possível vitória de um candidato que defende abertamente a ditadura de Pinochet poderia significar não foi determinante para a continuidade da campanha de Boric. No dia seguinte ao pleito do primeiro turno, movimentos sociais, artistas e setores que protagonizaram a revolta de 2019 convocaram assembleias e tomaram para si a tarefa de impedir uma derrota que significaria mais que um fracasso eleitoral - a vitória de Kast representa a derrota de um processo de transformações radicais que visa romper com a lógica neoliberal que predomina há décadas no país.

Nesse sentido, a campanha de Boric incorpora em seu programa muitas das pautas centrais da revolta de 2019 e de toda uma geração que cresceu desamparada pelo paradigma neoliberal e cansada do endividamento a que a maior parte das famílias chilenas é submetida para recorrer a direitos básicos. Com 35 anos de idade, Boric foi forjado nas lutas do movimento estudantil de 2011, que colocaram em xeque o funcionamento da educação sob a lógica de um negócio privado. Assim, além da defesa da educação pública gratuita, em seu programa estão presentes temas como a reforma do sistema de aposentadorias - que através das Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), vigentes desde a ditadura militar, transformaram-se em verdadeiras fontes de investimentos para os grandes grupos econômicos se capitalizarem,  enquanto os contribuintes convivem com a incerteza do quanto receberão ao se aposentarem -, sistema universal de saúde, estatização da água e direitos reprodutivos, estes últimos ancorados na potência do movimento feminista que se tornou um dos maiores movimentos de massa dos últimos anos no país.

Em uma sociedade forjada sob uma razão neoliberal herdada da ditadura militar, tendo como marco uma constituição que possibilita a mercantilização de direitos sociais, a campanha de Boric, de forma muito inteligente, retoma o sentido de liberdade, capitulado pelo liberalismo econômico, reivindicando-a enquanto um direito coletivo. Deste modo, se a atuação irrestrita da iniciativa privada, vista como uma liberdade individual, transforma direitos em mercadorias, operando em uma lógica na qual na prática o único direito a ser garantido aos indivíduos é a liberdade de consumo, a campanha de Boric ressignifica a ideia de liberdade enquanto seguridade social. Aqui, a liberdade passa a ser algo que se sente "quando se tem a segurança de que o salário durará até o fim do mês", "quando estudar não significa viver preso em uma dívida", "quando nem a saúde e a justiça são um privilégio". Ou seja, a liberdade só pode ser alcançada a partir da garantia de direitos sociais, e não pelo endividamento resultante da lógica de mercantilização da vida.

É verdade que Boric não expressa integralmente as demandas dos que foram às ruas em 2019. Mas, se as grandes alamedas por onde passam homens e mulheres livres para construir uma sociedade melhor, como nos lembra o discurso histórico de Salvador Allende às vésperas do golpe de 1973, são abertas pelo povo nas ruas, também é verdade que o projeto que ocupa a cadeira da Presidência da República tem forte influência sobre o quanto essas alamedas poderão ou não permanecer abertas ao povo. Nesse sentido, para a continuidade do projeto de mudanças que a sociedade chilena reivindicou em 2019 e a garantia do processo constituinte, dizemos, sem titubear: Boric presidente!