Voltar ao site

Chile: “Só devemos esperar reformas ténues” do governo de Boric

20 de março de 2022

No momento em que toma posse o novo Presidente do Chile, publicamos uma entrevista ao historiador chileno Sergio Grez sobre o atual processo político e as perspetivas do novo executivo.

Juan Dal Maso, Esquerda.net, 20 de março de 2022

O que podemos esperar do governo de Boric?

Embora a coligação que apoia Boric declare que o seu objetivo é ultrapassar o neoliberalismo a fim de lançar as bases de um estado de direitos sociais garantidos num quadro de ampliação da democracia, ou melhor, a construção de uma paridade e democracia participativa, é necessário desvendar os conteúdos e as possibilidades reais de mudança para além das grandes manchetes, anúncios e promessas. Isto requer uma análise das forças em jogo, das lideranças sociais e políticas, do seu carácter de classe e dos seus verdadeiros objetivos. Dada a impossibilidade de nos alongarmos nestas questões, e com base em análises formuladas noutras ocasiões, defendo que estamos a viver um momento de mudança nas elites políticas de cariz reformista; uma mudança essencial e inevitável, tanto por razões biológicas (geracionais) como estritamente políticas (reprodução do capitalismo dependente e governabilidade). Esta mudança assume a forma de uma mudança de hegemonia nas elites reformistas, da "velha" geração, basicamente a antiga Concertação de Partidos pela Democracia, para a geração jovem, representada principalmente pela Frente Ampla (FA). Embora esta mudança esteja a ocorrer no meio de contradições e fricções, culminará durante o governo de Boric numa nova aliança em torno do núcleo emergente (a FA), mas incorporando forças muito significativas da velha Concertação (especialmente do Partido Socialista). Isto significa que o programa de reforma apresentado pela candidatura de Boric, que já tinha sido diluído entre a primeira e a segunda volta das eleições presidenciais, será ainda mais reduzido no interesse da coexistência com estes novos parceiros da coligação governamental e em termos de "realismo" político, uma vez que o novo governo não terá maiorias parlamentares e terá de negociar os seus projetos de reforma com setores como os representados pelos democratas-cristãos, o Partido Popular e mesmo a direita tradicional.

Em suma, só se podem esperar reformas fracas acompanhadas de anúncios formulados com linguagem inovadora e "inclusiva", de acordo com as tendências em voga, mas que não significarão grandes mudanças estruturais, que se refletirão também na atitude do Estado face às mobilizações sociais, como sugerido em recentes declarações de Izkia Siches (nova Ministra do Interior), que declarou que - ao contrário do que foi anunciado anteriormente - não exclui a manutenção do estado de emergência em Wallmapu porque, nas suas palavras, "evidentemente nada está escrito em pedra". Isto leva-nos a acreditar que algo semelhante irá acontecer noutras áreas e com respeito a outras promessas, especialmente nas políticas sociais, que terão de passar pelo "filtro" do Ministro das Finanças, Mario Marcel, uma conhecida figura neoliberal e pró-concertação, que até há algumas semanas era presidente do Banco Central.

Tem-se criticado os vários gestos de moderação de Boric (lembro-me neste momento, por exemplo, da sua proposta de "melhorias" para os Carabineros). Estes gestos são "táticas" para alcançar um público mais "centrista" ou são de natureza mais programática?

É evidente que não são meras "táticas"; estes "gestos" correspondem a um programa que visa levar a cabo reformas limitadas, com o objetivo de limar alguns aspetos do modelo neoliberal para ganhar mais alguns anos de governabilidade sistémica, deslocando no processo uma boa parte daqueles que foram os administradores do modelo durante mais de três décadas e incorporando alguns destes antigos atores numa coligação alargada que, em caso algum, nem sequer em declarações relativas a um horizonte a longo prazo, se situa numa perspetiva anti-capitalista. Isto significa ganhar o maior apoio possível no centro político, mesmo de setores da direita em prol do "bem do Chile", ou seja, as forças sociais hegemónicas.

De um ponto de vista historiográfico, trabalha sobre a história da classe trabalhadora e dos movimentos populares no Chile. Em 12 de Novembro de 2019 houve uma ação muito importante da classe trabalhadora organizada. Que papel desempenhou este dia no processo de rebelião popular no Chile?

Nesse dia houve uma greve nacional (greve geral) muito bem sucedida que, no contexto da "explosão social" (prefiro o termo rebelião popular), abalou a classe dominante e a casta política, desencadeando em poucas horas o famoso "Acordo de Paz Social e a nova Constituição", apresentado ao público na madrugada de 15 de novembro, como uma manobra destinada a desativar a revolta popular. Infelizmente, a classe trabalhadora e as suas organizações não tinham capacidade política para responder às artimanhas da casta parlamentar e, como sabemos, o processo constituinte que começou a tomar forma pouco tempo depois desenvolveu-se sem a convocação de uma Assembleia Constituinte livre e soberana, mas através do funcionamento de uma espécie de substituto - a Convenção Constitucional - vinculada pelas disposições do referido Acordo.

Continuando com o que foi dito acima, como vê a situação atual da classe trabalhadora?

A classe trabalhadora no Chile ainda não conseguiu ultrapassar as limitações e condições drásticas impostas pelo modelo neoliberal e pelo sistema de democracia representativa restrita, tutelar e de baixa intensidade que temos tido desde 1990. Embora tenha havido um processo lento - por vezes muito lento - de reconstrução do tecido social destruído pela ditadura e pelo modelo neoliberal, isto não se traduziu numa expansão significativa das organizações sindicais ou numa autonomia sustentada em relação ao Estado e aos partidos políticos. Além disso, podemos ver que a classe operária (e num sentido mais amplo, a classe trabalhadora) carece de representação política, o que se reflete claramente na composição dos partidos de esquerda e muito particularmente nas suas lideranças, no Parlamento (no que está a terminar e no que vai tomar posse nos próximos dias) e na Convenção Constitucional. Em nenhum destes organismos (especialmente no Congresso Nacional e na Convenção Constitucional) existem representantes "orgânicos" da classe trabalhadora. A política institucional no Chile é hoje um assunto para a burguesia e a classe média profissional, com os trabalhadores manuais e os setores populares em geral praticamente excluídos.

Qual é a sua análise da situação da Convenção Constitucional?

A Convenção é determinada pela imposição do quórum de dois terços e pela proibição de alterar os tratados internacionais assinados pelo Chile como resultado do Acordo de 15 de Novembro e da consequente reforma constitucional de Dezembro de 2019, que condicionou o processo constituinte. O bloco hegemónico no seu seio (principalmente a Frente Ampla e o Coletivo Socialista, frequentemente unido pelos "independentes não-neutros" e o Colectivo del Apruebo) juntamente com a direita tradicional, reafirmaram este quórum antidemocrático sem um plebiscito intermédio (uma vez que as condições aprovadas para o mesmo o inviabilizam). Desta forma, as forças da conservação social criaram um cenário ideal para alcançar "grandes acordos" que assegurem a estabilidade sistémica e mudanças essencialmente secundárias. Como salientou corretamente um membro convencional do partido com um historial concertacionista reconhecido (Patricio Fernández), "os dois terços estão a fazer o seu trabalho", uma vez que este dispositivo "acabou por ser uma fórmula surpreendentemente estabilizadora". Isto reflete-se nas normas que a Convenção Constitucional tem vindo a aprovar. Geralmente, propostas que só têm a ver com formulações gerais como "Estado Regional, Plurinacional e Intercultural" baseadas em princípios como a solidariedade, colaboração, associativismo, participação popular, equidade e justiça territorial, o que não terá muito efeito prático, uma vez que, entre outros elementos, as assembleias regionais aprovadas não conseguiram passar o quórum de dois terços, as assembleias regionais aprovadas não gozarão de poderes legislativos e o "Estado Regional" (suposto ponto intermédio entre um Estado unitário e um Estado Federal) manterá a sua unidade e integralidade, sendo a secessão expressamente proibida, o que significa que a autonomia não pode infringir a natureza indivisível do Estado do Chile. Por outras palavras, o direito à autodeterminação dos povos originais não será respeitado na nova Constituição. Do mesmo modo, podemos prever que a futura Carta Constitucional conterá a proclamação de um grande número de direitos sociais (não só de pessoas, mas também da natureza e dos animais), mas que a sua realização será muito insuficiente, se não impossível de alcançar. Basicamente porque o seu financiamento não será assegurado e porque até agora não existem mecanismos à vista para os tornar aplicáveis pelos próprios cidadãos. Se a nova Constituição não assegurar que o Estado possa nacionalizar recursos naturais e meios de produção e criar empresas estatais, o financiamento necessário não estará disponível, pelo que os direitos serão puramente nominais. A "ilusão constitucional" pode rapidamente transformar-se numa tremenda desilusão. Tudo isto sem considerar que a regra dos dois terços também está a "fazer o seu trabalho" em questões tão transcendentais do sistema político como a configuração do futuro Congresso Nacional, uma vez que, dada a impossibilidade de alcançar um quórum tão elevado e a possibilidade de acabar num "apocalipse legislativo" (uma Constituição sem Parlamento), alguns setores - como a Frente Ampla - que eram a favor de um Congresso unicameral (provavelmente a aspiração maioritária no país) expressaram a sua vontade de apoiar uma fórmula retorcida de "bicameralismo assimétrico" que incluiria um "Conselho Territorial" para substituir o actual Senado, embora alegadamente com funções mais restritas. A cidadania contempla passivamente estas discussões e compromissos, já que a ausência de plebiscitos intermédios ou decisivos reforça o clima de desmobilização.

Sergio Grez Toso (Santiago do Chile, 1953) é professor na Universidade do Chile e tem um doutoramento em História. Em 1976, em plena ditadura de Pinochet, decidiu deixar o seu país após sofrer uma prisão política (1975). Instalou-se em França, onde estudou na Universidade de Paris VIII e na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales em Paris. A sua investigação centra-se na história do movimento operário e popular no Chile. É o autor de livros como La “cuestión social" en Chile. Ideas y debates precursores (1804-1902), De la “regeneración del pueblo” a la huelga general. Génesis y evolución histórica del movimiento popular en Chile (1810-1890), Los anarquistas y el movimiento obrero. La alborada de "la Idea" en Chile, 1893-1915 e Historia del Comunismo en Chile. La era de Recabarren (1912-1924), e promotor do Fórum para a Assembleia Constituinte. Compilou e publicou recentemente, juntamente com Jorge Elías, o livro Masacres obreras y populares durante el siglo XX en América Latina, publicado por Imago Mundi.

Entrevista publicada na página Ideas de Izquierda(link is external). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.