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China: somos cúmplices do confinamento de uigures

12 de dezembro de 2020

Campos de concentração. Essa expressão parecia circunscrita aos livros de história e ligada a uma era sombria, mas passada. Mas eis que está ressurgindo no século XXI. Em Xinjiang, uma região no noroeste da China, mais de um milhão de pessoas estão presas e são exploradas, de acordo com ONGs, a maioria uigures, mas também cazaques e outras minorias muçulmanas. Pequim se defende contra qualquer violação dos direitos humanos, citando “campos de reeducação” comparáveis a “centros de formação”.

Jean-Christophe Catalon, IHU-Unisinos / Alternatives Économiques, 9 de dezembro de 2020. A tradução é de André Langer.

Deputado europeu pelo Place Publique, Raphaël Glucksmann luta para que a Europa reaja àquilo que descreve como um crime contra a humanidade. Ele está, de modo especial, na origem de uma campanha nas redes sociais lançada no dia 1º de outubro, Dia Nacional da China, que consiste na postagem de uma imagem em azul, nas cores da bandeira uigur, seguida de uma mensagem pontuada com a hashtag “#FreeUyghurs”. Ele acredita que através do destino dessa minoria lança-se um questionamento sobre a forma como se estruturou a globalização.


Por que o regime chinês está infligindo esse tratamento aos uigures?

Os uigures são um povo com sua própria língua e religião, uma existência autônoma. Há muito tempo eles são discriminados pelo regime chinês e, a partir de 2016, mais uma etapa foi ultrapassada. Pequim embarcou em uma política de confinamento sistemático, de esterilização de mulheres e de redução à escravidão.

Esse tratamento reservado aos uigures faz parte de uma política mais geral de supressão das identidades consideradas como potencialmente relutantes. O regime chinês apresenta suas ações como parte da luta contra o que chama de “radicalização” e tem como alvo os muçulmanos. Usa a luta internacional contra o terrorismo como pretexto para destruir uma identidade.

Acima de tudo, os uigures vivem em uma área estratégica para o regime, bem no meio das futuras novas rotas da seda. No entanto, Pequim quer um controle absoluto sobre a região.

Todos esses fatores interligados contribuem para um confinamento em massa, o maior do mundo e, portanto, o maior crime contra a humanidade do século XXI.

Você menciona a política de esterilização das mulheres, o que mostra a vontade de agir na renovação da população. Pode-se falar de genocídio?

Existem elementos constitutivos do genocídio tal como definido pelo direito internacional, isso é evidente. No entanto, podemos comparar a situação dos uigures à Shoah ou ao genocídio dos tutsis em Ruanda? Ainda não chegamos a tanto.

Uma prática das autoridades chinesas é reveladora do que está em jogo. Todas as manhãs, nos campos, é realizada uma cerimônia durante a qual os prisioneiros devem renunciar à sua língua, à sua identidade e prestar juramento ao Partido Comunista. Então você tem que renunciar a ser uigur para sobreviver como indivíduo.

Em todo caso, é certo que esse povo é reduzido à escravidão. O regime o utiliza como banco de órgãos, sujeita-o a trabalhos forçados a serviço de empresas chinesas... Os uigures são desumanizados, considerados como material humano que pode ser explorado à vontade.

Esse tratamento seria a definição de crime contra a humanidade. Para isso, Pequim teria que enfrentar forte reação das outras potências, principalmente da Europa.

As empresas chinesas que recorrem ao trabalho forçado são fornecedoras de multinacionais bem conhecidas do público em geral. Como podemos acabar comprando, sem o saber, roupas ou carros, alguns dos quais foram fabricados por uigures?

A questão do crime contra a humanidade pode parecer algo muito distante; na verdade, faz parte do nosso cotidiano. Este vínculo é fruto da globalização.

Da coleta de algodão à confecção de camisas Zara ou calçados Nike, os uigures são usados como escravos por empresas chinesas, ligadas ao regime, que são as principais fornecedoras das marcas globais.

O Instituto Australiano de Estratégia Política (ASPI), um think tank, identificou 83 marcas internacionais que recorrem ao trabalho forçado dos uigures por meio de suas subsidiárias ou fornecedoras chinesas. Existem grandes nomes do fast fashion, mas também da tecnologia, como a Apple e a Huawei, ou fabricantes de automóveis, como Volkswagen e BMW.

Há um conluio de fato entre as grandes marcas capitalistas e os campos de concentração chineses, um sistema híbrido que combina o pior da repressão comunista com o pior da ganância capitalista. Assistimos ao encontro de dois fenômenos históricos, tidos como antitéticos, cujo resultado é um crime contra a humanidade.

Quando você compra uma camisa Zara, está comprando um produto da escravidão de um povo. Este capitalismo torna-nos cúmplices de um crime contra a humanidade. E é isso que deve nos mobilizar.

Através da questão uigur, passa-se a colocar em perspectiva e a questionar a forma como a globalização tem sido estruturada.

Como essas multinacionais podem ter legalmente esse tipo de prática e por que não são punidas pela justiça?

A situação dos uigures mostra que a globalização foi construída como uma pirâmide de irresponsabilidades: quanto mais você é uma grande multinacional, menos você tem que prestar contas, porque a responsabilidade legal é do fornecedor.

O desafio é implantar uma legislação sobre o dever de vigilância das empresas. Esta é a luta levada a cabo por muitas ONGs e sindicatos em todo o mundo e que nós, grupo de socialistas e democratas, no Parlamento Europeu, travamos. Na França, uma lei já está em vigor desde 2017.

Assim que uma marca ganha dinheiro com uma cadeia produtiva, sua responsabilidade deve estar comprometida em todos os elos. Por exemplo, por suas camisas, a Zara deve assumir a responsabilidade legal de respeitar os direitos humanos, desde a colheita do algodão, passando pela manufatura, até a sua venda nas lojas.

Devemos reintroduzir a responsabilidade em um mundo onde os mais fortes e os mais ricos são desresponsabilizados.

Para isso, a luta deve ser travada tanto no Legislativo quanto na opinião pública. Por isso, buscamos estruturar uma campanha nas redes sociais onde as práticas dessas marcas sejam apontadas. Como a Nike, que não hesita em fazer comerciais pró-Black Lives Matter, mas que, por outro lado, escraviza indiretamente os uigures. O business model dessas empresas está baseado sobre dois pilares: a produção de baixo custo e a imagem da marca. Quando centenas de milhares de jovens, que também são consumidores, as interpelam, elas reagem.

Após o lançamento da campanha, conversamos com vários executivos. Alguns, que incluem Lacoste, Adidas e H&M, se comprometeram a rever sua política e cessar sua colaboração com as empresas chinesas envolvidas. Outras, como Nike e Zara, estão fazendo ouvidos moucos.

Os consumidores e os cidadãos têm um verdadeiro poder de influência, mas não é suficiente. A lei deve assumir a dianteira e acabar com esta irresponsabilidade jurídica. A Europa é o maior mercado do mundo. Se ela estabelecer a responsabilidade legal e aplicá-la com firmeza, isso terá implicações globais. Imagine, se a Nike for a um tribunal europeu por escravidão ou destruição do meio ambiente por sua linha de produção, isso seria uma virada de jogo.

Em setembro, Emmanuel Macron denunciou publicamente a repressão dos uigures. Na Assembleia Nacional no início de outubro, o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, exortou as empresas francesas e europeias a serem “vigilantes” quanto ao respeito dos direitos humanos. Afirmações importantes, mas, na realidade, onde estamos?

Em lugar algum! Observemos que a declaração, que é necessária, vem depois de quase quatro anos de silêncio ensurdecedor. Quando Emmanuel Macron vai à China para brindar com Xi Jinping, ele nunca pronuncia a palavra “Uigur”, nem “campo”. Para existir, os grandes crimes precisam de grande silêncio.

Foi porque os jovens se mobilizaram nas redes sociais que o assunto entrou no debate público e penetrou no parlamento francês que, por sua vez, interpelou o ministro. Tivemos que lutar para obter uma declaração.

Essas palavras acabam não tendo um efeito prático. Se isso é um crime contra a humanidade, medidas devem ser tomadas. No entanto, elas não são tomadas, nem mesmo discutidas pelos líderes europeus e franceses.

No Parlamento Europeu, propusemos um texto sobre o dever de vigilância, mas vai demorar algum tempo até que surja. Nesse ínterim, medidas imediatas podem ser postas em prática. A China não é uma nebulosa terrorista e seus dirigentes são conhecidos. As empresas que exploram os uigures têm uma sede, um endereço e executivos. A Europa deve sancioná-los, por exemplo, banindo-os do mercado europeu, assim como as marcas globais que as utilizam. Isso forçaria as multinacionais a rever sua cadeia produtiva.

Hoje, a Europa ainda é mezza voce, ela quase pede desculpas por dizer palavras que deveriam estar no centro de suas considerações. Deixemos de nos colocar numa posição de dependência em relação a Pequim. A China também precisa da Europa. Se medidas fortes de retenção comercial forem tomadas, isso forçará os dirigentes chineses a reconsiderar a relação custo-benefício de escravizar um povo que, até agora, lhes proporcionou ganhos econômicos massivos.

Os Estados Unidos bloqueiam as importações de Xinjiang. Por que a Europa não está fazendo o mesmo? Porque a Grécia e a Itália receberam financiamentos de Pequim para as novas rotas da seda e porque a Alemanha depende do mercado chinês para exportar?

Essa falta de ação é a soma de vários fatores. De fato, existe uma dependência econômica de alguns países europeus em relação à China. A Europa é parcialmente responsável por isso. A austeridade imposta na última década, por exemplo, levou a Grécia a vender o porto do Pireu aos chineses. É um absurdo absoluto ceder um ativo estratégico a uma potência estrangeira em desacordo com nossos valores e interesses. Além disso, uma parte dos empregadores alemães vê a China como um El Dorado. Não há como negar a existência de poderosos fatores de interesse.

Além disso, também acho que existem outros, mais políticos e psicológicos. A Europa está lutando para se afirmar como uma potência e sair dessa visão dos anos 1990-2000 segundo a qual a globalização geraria uma generalização da democracia e do Estado de Direito, que todo o mundo viveria em uma nova ordem liberal e, portanto, que não teria mais um adversário ideológico. O americano Francis Fukuyama escreveu “O fim da história” após a queda da URSS, e os europeus são os que mais aderiram a esta ideia, de maneira quase religiosa.

É claro que essa visão é profundamente questionada hoje. O sucesso chinês é a maior e mais contundente negação disso. Campeão da globalização, a China absolutamente não se democratizou. Pelo contrário, ela é mais autoritária e imperialista do que há dez anos.

A posição da Europa é, portanto, o resultado de interesses e reticências mentais. Ela deve perceber que existem relações de poder e que, nessas condições, ela deve se afirmar como um poder.

Que medidas estão em discussão a nível europeu?

Três expedientes estão em andamento. Em primeiro lugar, no dia 10 de dezembro, a União Europeia deve finalmente adotar o seu regime de sanções contra os responsáveis pelas violações dos direitos humanos, que prevê congelar os seus bens e proibi-los de viajar em solo europeu. No Parlamento, travamos a luta para garantir que não sejam apenas os pequenos países os principais alvos, mas também grandes potências como a Rússia e a China.

O segundo consiste em tomar medidas comerciais. Juntamente com outros 100 eurodeputados, pedimos à Direção-Geral do Comércio que crie uma “lista negra” de empresas chinesas que utilizam a força de trabalho desta mão de obra escrava uigur. O acesso dos seus produtos ao mercado interno deve ser proibido.

Por último, a Comissão e os Estados-Membros estão atualmente negociando um acordo de investimento com a China. A mensagem do Parlamento Europeu é clara: não há dúvida de que os investimentos europeus financiam um sistema escravocrata. Se o acordo não garante o fim deste sistema, então vamos nos opor a ele. A luta nesta questão promete ser acirrada.

Estes temas são defendidos por uma maioria no Parlamento Europeu?

Não me permitiria falar em nome do Partido Popular Europeu (PPE, o grupo de direita). Observo, no entanto, que está ocorrendo um ponto de inflexão nos acordos de livre comércio. Pela primeira vez, alguns textos foram alvo de fortes críticas, em particular o do Mercosul.

No que concerne especialmente à China, o movimento é ainda mais forte. Todos os grupos estão revendo sua estratégia em relação a Pequim. A Covid tem muito a ver com isso. Ela aumentou a tomada de consciência sobre o quanto a Europa depende da China para o fornecimento de máscaras ou do doliprano, coisas básicas e estratégicas em tempos de pandemia. Este desejo de reorientar a política industrial e comercial à luz do que vivemos e estamos para viver atravessa todos os partidos, mesmo os conservadores.

De maneira mais geral, essas questões e a dos uigures, que é um imperativo humanista, questionam profundamente nossas políticas comerciais e econômicas levadas a cabo desde os anos 1990 e como elas foram construídas. O Conselho, a Comissão e todos os grupos do Parlamento, todos temos de nos colocar a seguinte questão: comércio, sim, mas com que finalidade? A Europa tem princípios, interesses políticos, um imperativo ecológico e social. A nossa política comercial deve estar a serviço destes valores ou é um fim em si mesmo?

A discussão promete ser dura. A visão idílica do livre comércio tem sido tão difundida na Europa que não sairemos dela sem tensões. Isso não significa que devemos parar o comércio, apenas significa que temos interesses estratégicos e que eles devem vir em primeiro lugar.