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Contra o veganismo anti-humanista e racista de Xuxa

Por um projeto societário ecossocialista, antirracista e anti-punitivista

29 de março de 2021

Nas décadas de 1930 a 1970, no Alabama- EUA, foi realizada uma pesquisa por parte do Estado, com 600 homens negros. Aproximadamente 2/3 deles foram infectados com a bactéria causadora da sífilis. O objetivo era estudar o avanço da doença sem nenhuma intervenção. Tudo em prol da ciência.

Ana Luisa Morato, Carla Benitez, Lívia Vieira e Lucas Marques

Na última sexta-feira, 26 de março de 2021, Maria da Graça “Xuxa” Meneghel, a Xuxa, ao participar de uma live transmitida no Instagram da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) sobre direitos dos animais, manifestou-se no sentido de que cosméticos e remédios deveriam ser testados em pessoas em situação de prisão, e não em animais. Nas palavras racistas e eugenistas da apresentadora, existiriam “muitas pessoas que fizeram muitas, muitas coisas erradas e estão aí pagando pelos seus erros num ad eternum, para sempre em prisões” e que “poderiam ajudar nesses casos”. Assim, poderíamos ir “provando tudo nessas pessoas pra ver se funciona” e elas “pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer”.

Após críticas de internautas, em seguida, ainda na madrugada do dia 27 de março, a autora gravou um novo vídeo para pedir desculpas pela fala infeliz, ocasião na qual também proferiu dizeres que merecem toda a nossa atenção:

“Algumas pessoas usaram a expressão, que eu fui falando sobre raças, sobre negros, sobre presidiários negros e pobres. Mas não me passou nada disso pela cabeça. O que me passou foi uma pessoa que estupra uma criança, que fica anos em um presídio e poderia pensar em ajudar as pessoas de outras maneiras. É errado? É errado. Me expressei mal? Me expressei mal.”

Não se trata de proferirmos um julgamento moral sobre a apresentadora, mas, enquanto ecossocialistas e anti-punitivistas, não poderíamos deixar de tecer algumas ponderações sobre o debate provocado pelo episódio e sobre a evidente ignorância e brutalidade trazida pelas falas em questão, tanto durante a live quanto em sua rede social. A assunção da pauta da proteção animal não pode dar ensejo a uma desconsideração dos direitos humanos e jamais poderá ser adotada em uma dimensão simplista, absoluta, sem que sejam levadas em conta as circunstâncias materiais na qual está inserida.

  1. Como defender a natureza sem defender a humanidade? Qual veganismo e qual ecologismo nos interessa?

Antes de irmos mais fundo no significado de uma celebridade reconhecida em todo o território nacional, como é a Xuxa, defender, serenamente, a possibilidade de utilização compulsória de pessoas em situação de prisão como cobaias para experimentos científicos, gostaríamos de frisar que esta fala foi realizada em um contexto de defesa dos direitos dos animais. Por isso, pelo avesso da situação posta, dizemos com todas as cores e tons que o ecologismo deve ser profundamente radical e humanista ou não nos serve – tema já tratado em outro texto do blog Aos que Virão. A necessidade do abandono de aparentes saídas disruptivas dos fundamentos das relações sociais capitalistas, pautadas em um suposto progresso via desenvolvimento das forças produtivas é tarefa para toda e todo aquele lutador(a) social que esteja conectado com as pulsantes contradições do real.

O planeta Terra está respirando por máquinas de oxigênio e o sistema em agonia depende de mais sofisticadas e intensas formas de exploração do trabalho – em todas as suas formas, inclusive as não reconhecidas enquanto tal, como parcela do trabalho de reprodução social -, de dilapidação de direitos sociais, bem como de mecanismos de apropriação e espoliação da natureza para forjar maiores lucros. A Amazônia está rifada, em chamas. O aquecimento global se anuncia como a perenidade da situação agonizante vivida pela atual crise sanitária decorrente da pandemia do novo coronavírus.

A defesa dos direitos dos animais, para nós, só é coerente se acompanhada da denúncia dos impactos socioambientais do agronegócio e da indústria massiva de carnes, ovos e laticínios, que destrói a terra e florestas, contamina a água, superaquece o globo, tudo sob profunda e degradante exploração de seres humanos, bem como uma apropriação irracional e violenta de animais.

Do mesmo modo, tal defesa precisa estar coadunada com a denúncia do desmatamento da Amazônia, da destruição e queimadas do cerrado, tal qual do reconhecimento da importância e potência da resistência e existência dos povos tradicionais, combatendo a nova etapa de etnocídio em curso. É preciso, ainda, que se desnude o papel da indústria farmacêutica que não pinçando na exploração animal, exclusivamente, mas que possa demonstrar o seu lugar geopolítico e sua intervenção marcada pela profunda mercantilização da nossa existência – inclusive com a denúncia sobre a necessidade de quebra de patentes que desponta com mais força diante da necessidade urgente de imunização vacinal da população do globo.

Assim, para nós, a defesa dos animais é essencial e deve ser objeto de preocupação de todo aquele ou aquela que se preocupa com justiça. Mas deve ser sempre acompanhada da defesa da humanidade. A defesa da natureza é uma defesa da humanidade, até porque somos parte inerente dela. Parece-nos incoerente e desviante posturas que enxergam humanidade nos animais e não em determinadas pessoas, aqui no caso daquelas em situação de prisão. Como se além de perderem significativamente sua liberdade, também perdessem seu direito à humanidade.

  1. Primeiro passo na construção de uma cultura e uma política anti-punitivista: compreender a realidade do sistema penal

No discurso de Xuxa notamos um profundo desconhecimento sobre a realidade do sistema prisional brasileiro. Comentários que insinuam sobre prisões perpétuas e coisas do gênero para as pessoas em situação de prisão, “sujeitos incorrigíveis”.

Nas contradições inerentes à ficção jurídica, afirmamos que aquilo que legitima formalmente a existência do sistema penal no Brasil é justamente um discurso expresso na legalidade de restrição exclusivamente da liberdade das pessoas, sem retirar todos os seus outros direitos e de maneira proporcional ao fato, visando com isso, por excelência, reinseri-las na sociedade. A execução penal brasileira, como em todos os países do mundo que declaram formalmente construir um Estado Democrático de Direito, é pautada no modelo progressivo, sendo modulável seu cumprimento visando a diminuição do tempo fixado em sentença da privação da liberdade em regime fechado (nos casos em que este é o regime inicial). Inclusive, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX, define que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Apesar do aumento da pena máxima para 40 anos, decorrente dos retrocessos da Lei 13964/2019 (derivada do Pacote AntiCrime apresentado pelo ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro), não há que se falar em prisão perpétua no Brasil.

A falácia discursiva desta legitimidade jurídica da pena no Brasil é chacoalhada em um sopro, desde as contradições inerentes ao próprio ordenamento e a persistência de critérios de periculosidade – com puro subjetivismo e autoritarismo na sua modulação, pautados no lugar de mundo (de classe) do jurista – para apreciação da aplicação dos direitos da pessoa processada, condenada ou em situação de prisão.

Por isso falamos em MITO da ressocialização, que oculta por trás de si um punitivismo que o guia, e que é legitimado, essencialmente, não pela lei em si, mas pelo seu uso atravessado de um senso comum criminológico, cultivado cotidianamente pelas instituições de controle penal informal, tais quais as escolas, igrejas e a mídia, com seus jornais, seus Datenas e suas celebridades tipo Xuxa. E assim, sorrateiramente, vão se naturalizando processos de inferiorização e subalternização de determinados seres humanos, desumanizando-os.

Ademais, esse discurso demonstra total desconhecimento sobre a natureza das condutas que são selecionadas e resultam em encarceramento no Brasil. A fala de Xuxa pressupõe que as prisões concentram sujeitos que tenham supostamente cometido condutas atentatórias de bases morais tidas como fundamentais pela sociedade, no estilo das séries estadunidenses que relatam os tenebrosos atos cometidos por assassinos em séries.

Embora, de modo algum, essa realidade fantasiosa justificasse a fala da cantora, uma rápida análise sobre os crimes cometidos pelas pessoas que cumprem pena no Brasil desmonta completamente esse discurso. Conforme dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes ao primeiro semestre de 2020, mais de 70% das pessoas sob tutela do sistema penitenciário estão nessa condição por condenações por crimes contra o patrimônio e previstos na Lei de Drogas.

Assim, percebe-se que uma das ferramentas do discurso desumanizador das pessoas presas é atribuir-lhes os considerados piores crimes pelo imaginário popular (uma pessoa que estupra uma criança, como disse Xuxa), para, assim, justificar qualquer atrocidade contra elas praticada.

  1. Eugenia, mito da democracia racial e suas reinvenções no Brasil hoje

Justo a Xuxa, essa “cidadã de bem”, teria reproduzido racismo? Por que sua fala é profundamente racista? O que revela?

Partindo do pressuposto de que nosso sistema penal não apenas reproduz racismo, mas é um dos principais, senão o principal, mecanismo de controle social de populações racializadas, podemos desvendar o porquê da fala da apresentadora ser tão racista. No Brasil, aproximadamente dois terços da população carcerária é composta por pessoas negras, uma evidente sobre representação.

Ao afirmar que ela não se referia, em sua fala de desculpas, a negros e pobres, a apresentadora acaba por reafirmar o discurso da democracia racial, desconsiderando serem esses os alvos prioritários do sistema prisional. Michelle Alexander demonstra como o discurso racista explícito contra negros/as foi mascarado por um discurso contra “criminosos” que, na prática, tem o mesmo resultado. Não porque pessoas negras cometam mais crimes que brancos, afinal, só a título de ilustração, em relação aos crimes relacionados ao tráfico de drogas, que compõem grande parcela da população carcerária, 71% dos negros condenados possuíam, em média, 145 gramas de maconha, em comparação com 64% dos brancos condenados, cuja apreensão média era de 1,14 quilo. Mas sim porque o direito e o sistema prisional constroem uma falsa imagem do/a negro/a enquanto criminoso/a, de modo a justificar sua inerente seletividade penal.

Por outro lado, tampouco as práticas eugenistas sugeridas por Xuxa são algo novo na história brasileira. Mesmo após a escravidão, foram aplicadas, por exemplo, no manicômio de Barbacena e defendidas por intelectuais como Nina Rodrigues, Vital Brazil e Arthur Neiva, até hoje nomes de ruas em todo o país.

Esse tipo de discurso, que nunca sumiu de verdade no Brasil, tem ganhado cada vez mais engajamento nos últimos anos. A eleição de Bolsonaro é mais uma expressão disso e é importante sempre pontuar que o atual presidente não existiria sem suas narrativas de combate à dita criminalidade por meio de medidas desumanizantes. Foi assim, inclusive, que ele ganhou relevância nacionalmente. Seu vice, Hamilton Mourão, por exemplo, já chegou a defender o “embranquecimento da raça” em um elogio ao seu neto.

A “rainha dos baixinhos” reúne em suas posturas e discursos a amálgama única brasileira de sustentar o discurso do “preconceito de ter preconceito”, brilhantemente ensinado por Florestan Fernandes, combinado, subterraneamente ou não, ao velho e ainda lustroso discurso positivista criminológico, de base eugênica, a sustentar, pelo estranhamento para com o outro, uma sua intrínseca inferioridade, capaz de legitimar as maiores atrocidades oficiais.

  1. Da denúncia ao anúncio: por um veganismo popular e antirracista, associado a uma alternativa ecossocialista.

Se a apresentadora quer realmente rever seus atos, é preciso mais que desculpas vazias afirmando ter se expressado mal. Sua fala foi mais evidente que nunca. Que tal a partir de agora, Xuxa, utilizar de sua fama e engajamento para debater as problemáticas do cárcere no Brasil? Por que não utilizar suas redes para combater o racismo e conscientizar sobre a dura luta durante a pandemia, travada especialmente pelas familiares de pessoas em situação de cárcere e de vítimas do Estado, por condições mínimas de dignidade e de controle social nas prisões?

Por fim, afirmarmos reconhecer a importância do veganismo, mas que não seja uma simples dieta para desencargo de consciência, mas sim, de fato, um movimento comprometido com o combate a TODAS as formas de opressão e, por isso mesmo, antirracista, anticapitalista e antipunitivista.

Ana Luisa Morato, Carla Benitez, Lívia Vieira e Lucas Marques são militantes ecossocialistas da Insurgência em Minas Gerais.