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Cuba: solidariedade com os presos políticos do 11 de julho

16 de dezembro de 2021

Convoco a solidariedade internacional com Abel Lescay, porque só assim seremos ouvidos. A esquerda, apesar dos seus matizes e diferenças, deve pensar-se como unida no mundo diante destes atropelos. Não podemos pensar o opressor apenas como um burguês, a burocracia também oprime.

Lisbeth Moya González, Esquerda.net, 16 de dezembro de 2021

Abel Lescay: Ministério Público cubano pede uma pena de sete anos de prisão pelo "delito" de manifestar-se pacificamente

As manifestações de 11 de julho em Cuba significaram uma grande mudança. Pela primeira vez, desde 1959, os cubanos saíram às ruas em diferentes províncias do país, manifestando-se por muitas razões, mas sobretudo pelo descontentamento popular gerado pela crise económica e pela gestão da burocracia.

Sendo certo que as sanções impostas pelos Estados Unidos afetam a economia, ao analisar Cuba não podemos ignorar o fenómeno da burocracia e a falta de participação popular na política.

A dissensão é punida fortemente, como mostrou o governo em 11 de julho. A sua reação a qualquer discordância, incluindo a de esquerda, é chamar aos cidadãos de “contrarrevolucionários”, “politicamente confundidos” ou “mercenários pagos pelo governo norte-americano”.

O fenómeno Arquipélago foi exemplo disso. Trata-se de uma plataforma que depois dos acontecimentos do 11-J procurava estabelecer um diálogo nacional, para além dos condicionamentos ideológicos, e que convocou uma marcha pacífica para o dia 15 de novembro. Este projeto político foi dando mostras de uma viragem à direita através dos pronunciamentos públicos e do posicionamento de alguns dos seus membros.

O que é notável, no que se refere a esta análise, não é Arquipélago, mas o tratamento(link is external) que o governo deu a este tipo de dissidência. Mais uma vez, os meios de comunicação foram utilizados, sem direito de resposta, para desmerecer, de todas as formas possíveis, os principais organizadores e para tentar provar as suas ligações com o governo dos Estados Unidos. A manifestação foi desautorizada pelo governo, com a alegação de que o socialismo é constitucionalmente irrevogável e que as intenções do protesto eram derrubá-lo.

Uma das questões mais preocupantes é que no fim de semana em que ocorreria a manifestação, repetiu-se em Cuba, de forma massiva, um dos capítulos mais sombrios da sua história: voltaram os “atos de repúdio”, eventos organizados pelo poder político para, com gritos, palavrões e todo tipo de violência verbal, atacar o espaço mais privado de quem discorda: a família, o lar.

Imagine acordar com uma multidão em frente a casa a gritar “contrarrevolucionário” e outras coisas, uma manifestação política organizada na sua porta, no seu bairro, na frente dos seus filhos e pais. É disto que se trata quando nos referimos a um “ato de repúdio”, algo comum e constrangedor em Cuba nos anos 80, do qual já se falou muitas vezes, algo de que muitos cubanos se envergonham, mas que se repete hoje, com a participação estridente das redes sociais.

Nesse contexto, o governo pretende evitar a denúncia de uma questão crucial: Cuba está a abrir-se à liberalização de uma economia centrada no Estado. O “ordenamento monetário”, medida anunciada para enfrentar a crise, já visível antes da Covid-19, surgiu num momento de escassez e com aspetos nada vantajosos para o povo. Trata-se, de facto, de uma segregação económica que levou os cubanos ao desespero devido à falta de produtos básicos e à inflação.

O “ordenamento” eliminou a CUC, a emergente “moeda forte” que circulava em Cuba desde 1994, em pleno Período Especial, para dar lugar à Moeda Livremente Conversível (MLC), bem como a qualquer divisa internacional altamente cotada no mercado negro.

Ao anunciar a “Tarefa ordenamento”, o ministro da Economia, Alejandro Gil, garantiu que junto com as lojas da MLC, as demais lojas continuariam a vender todo o tipos de produtos necessários em pesos cubanos, pois as novas lojas tinham precisamente como objetivo arrecadar divisas estrangeiras para abastecer as vendas em pesos cubanos. Na prática, isso não aconteceu. As lojas às quais os cubanos que não possuem MLC têm acesso estão desabastecidas e o seu número reduz-se dia a dia. Conseguir produtos básicos em Cuba é uma odisseia e, apesar do aumento dos salários, o dinheiro não é suficiente porque o processo inflacionário é descomunal.

Não é de estranhar, então, que diante de tal situação, agravada pela Covid-19, pela impossibilidade de dissidência e de participação popular; e do discurso político repetitivo que os líderes cubanos usam de forma tosca nos meios de comunicação para “legitimar” o processo, as pessoas tenham saído às ruas em protesto.

Em Cuba, a palavra esquerda é tabu. Grande parte da população assume como socialismo ou esquerda o discurso e as práticas do governo. Trata-se de uma cidadania descontente, com pouquíssima formação política, já que os planos de estudo, desde muito cedo, estão centrados na doutrinação política segundo as conveniências do poder e não no desenvolvimento do conhecimento e do raciocínio em condições de liberdade.

Assim, não foi por acaso que no dia 11 de julho as pessoas saíram às ruas. Não eram mercenários, não eram seres confundidos. Eram pessoas exaustas respondendo a contradições objetivas.

Naquele dia foram para a rua pessoas contrárias às ideias da esquerda, sim, mas também foi o povo trabalhador e marginalizado, as pessoas que a esquerda deve representar, as bases sociais às quais a esquerda deveria chegar. Naquele dia também foram às ruas defensores do governo, jovens da chamada “esquerda oficial”, na sua maioria pessoas privilegiadas pelo sistema.

 

No meio do caos, veio à tona a violência de ambos os lados. Eram manifestantes desarmados contra todos os corpos repressivos do Estado e esses outros privilegiados ou velhos defensores acríticos, armados com paus e apoiados pela polícia.

O governo cubano enfrentou uma grande crise de governabilidade e seria injusto não levar em conta, nesta análise, a exaustiva propaganda anticomunista norte-americana, que a partir das redes sociais penetrou fundo no imaginário do cubano. Mas as causas internas da eclosão social estão aí, latentes no dia a dia das cidadãs e dos cidadãos cubanos. Essas causas permanecem sem solução e pioram a cada dia, devido ao que o 11 de julho significou para os manifestantes e as suas famílias.

Até este momento, o grupo de trabalho sobre detenções por motivos políticos da plataforma da sociedade civil cubana Justicia 11J (link is external)documentou 1.271 detenções relacionadas à referida explosão social. Dessas pessoas, pelo menos 659 permanecem detidas. Verificou-se que 42 foram condenados à privação de liberdade em julgamentos sumários e oito em julgamentos ordinários. Já é conhecida a acusação de 269 pessoas que aguardam condenações de 1 a 30 anos de prisão.

A figura da “sedição” foi utilizada para impor penas a, pelo menos, 122 pessoas, segundo a Justicia 11J que se responsabilizou por contabilizar e expor a situação dos envolvidos, devido a não existirem dados oficiais disponíveis.

O 11 de julho foi o auge da repressão à dissidência em Cuba. Historicamente, existia o assédio sistemático dos órgãos de Segurança do Estado a quem discordava ao longo de todo o espectro político; existiam também casos de expulsões de centros de estudo ou de trabalho por motivos ideológicos. Porém, em 11 de julho, a repressão foi exercida no corpo dos manifestantes.

É o caso do jovem músico e poeta Abel Lescay que, depois de manifestar-se na cidade de Bejucal, foi preso essa noite em sua casa. Esse processo é particular, pois o poeta foi levado à esquadra da polícia nu e apanhou Covid-19 durante a detenção. Abel agiu pacificamente, não atentou contra nenhum tipo de propriedade e mesmo assim o Ministério Público acusa-o de: desacato à figura básico, desacato à figura agravado e desordem pública, pelas quais solicita uma pena de sete anos de prisão.

Além disso, Lescay é aluno do Instituto Superior de Arte (ISA) e pode perder o seu curso se for condenado. Será julgado nos dias 5 e 6 de dezembro no Tribunal Provincial de Mayabeque1.

Abel Lescay

Casos como este acontecem em Cuba nestes dias, situações absurdas e inconcebíveis. Quando falo destes temas com militantes da esquerda de outros países, parece-lhes surpreendente que sejam pedidas tais sentenças a alguém por exercer o direito de se manifestar. “Se fosse assim, estaríamos todos na prisão para sempre”, disse-me um amigo argentino.

Escrevo estas linhas com muito medo, sabendo o que elas significam em termos de repercussão para uma militante da esquerda alternativa que vive e trabalha em Cuba. Escrevo estas linhas porque a principal dicotomia de uma militante de esquerda em Cuba é ter claro com quem se confronta e em que contexto. Embora nós, como socialistas, tenhamos a missão de lutar contra o imperialismo no mundo, embora essas palavras possam ser instrumentalizadas por outras causas, em Cuba não podemos mais ficar calados, porque se trata da vida de muitas e de muitos. Trata-se do direito de discordar e existir com dignidade.

Apelo à militância de esquerda internacional e a quem leia este texto que não hesite em investigar e apoiar a causa dos presos políticos em Cuba. Convoco a solidariedade internacional com Abel Lescay, porque só assim seremos ouvidos. A esquerda, apesar dos seus matizes e diferenças deve pensar-se como unida no mundo diante destes atropelos. Não podemos pensar o opressor apenas como um burguês, a burocracia também oprime. Não me canso de dizer: “Socialismo sim, repressão não”.

2 de dezembro de 2021

Lisbeth Moya González é jornalista e escritora marxista cubana. Publicado originalmente no blog Comunistas (link is external)e em La Joven Cuba(link is external). Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net.

1 No dia 6 de dezembro, o tribunal adiou o julgamento para o ano que vem, em data ainda por marcar. (Nota do Esquerda.net)