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“Danos colaterais” do joystick ou a alegada “guerra limpa”

31 de dezembro de 2021

Desta vez não foi Julien Assange. Edward Snowden também não. A informação não tem origem num órgão de informação russo ou chinês. Nem cubano. Também não vem de fonte jihadista, nem do Irão, nem da “esquerda radical” – referência de sentido desqualificativo muito querida dos que rangem o dente perante evidências difíceis de desmontar. Não, neste caso a fonte é o prestigiado e americaníssimo New York Times (NYT) e vem apenas confirmar o que há muito se sabia através de outras fontes de informação.

José Manuel Rosendo, meu mundo minha aldeia, 22 de dezembro de 2021

O jornal norte-americano diz que teve acesso a 1.300 relatórios do Pentágono sobre ataques com drones, no Afeganistão, Síria e Iraque. O resultado arrasa a teoria da alegada “guerra limpa” e dos “ataques de precisão”, sempre anunciados pelos Estado Unidos desde que o presidente Barack Obama privilegiou esse tipo de arma nas guerras no Médio Oriente.

O NYT refere que nenhum destes 1.300 relatórios conduziu a acusações ou a sanções disciplinares para os militares envolvidos, apesar do resultado ter sido a morte de largas centenas de civis, incluindo muitas crianças. Muitos destes ataques basearam-se em informação deficiente e foram ataques prematuros.

Em cinco anos, os militares dos EUA realizaram mais de 50.000 ataques aéreos no Afeganistão, Síria e Iraque. Admitem ter matado “acidentalmente” 1.417 civis nos ataques na Síria e no Iraque desde 2014. No Afeganistão, os Estados Unidos reconhecem oficialmente a morte “acidental” de 188 civis desde 2018.

Para chegar a estes números e a estes relatórios, o NYT explica que teve de se envolver em diversos processos contra o Pentágono e o Comando Central do Exército dos EUA. Mas a juntar a tudo isto o jornal foi ao terreno – uma centena de locais bombardeados – tentar verificar a informação e a conclusão a que chegou é que os “danos colaterais” estão subestimados. As conclusões dos relatórios assentam em “confirmações enviesadas” e em probabilidades. Muitos relatos de bombardeamentos com vítimas civis foram rejeitados com o argumento de que os vídeos não mostravam corpos nos escombros e não permitiam tirar conclusões.

Muitas vezes, a informação deficiente que determinava os ataques com drones, permitia que pessoas a correr num local bombardeado fossem identificadas como combatentes do Estado Islâmico e não como socorristas a tentarem chegar às vítimas, ou que simples motociclistas a deslocarem-se em simultâneo fossem considerados agentes de um ataque iminente.

Os militares norte-americanos ignoravam, por exemplo, que em tempo de Ramadão, muitos muçulmanos dormem durante a tarde, para melhor passar o tempo de jejum e também para fugir ao calor. Um casa vigiada, que aparenta estar vazia, pode abrigar várias famílias. Imagens de fraca qualidade ou tempo insuficiente de vigilância dos locais-alvo deram origem a ataques mortais.

Apesar da Lei da transparência das administrações, o NYT diz que encontrou opacidade e impunidade. O Pentágono diz que os erros de identificação representam apenas 4% das vítimas civis, mas o NYT contrapõe que tiveram um papel importante em 17% dos incidentes e causaram quase um terço das vítimas (mortos e feridos). O jornal sublinha que, deste trabalho, o que emerge é uma instituição – o exército norte-americano – que aceita a inevitabilidade dos “danos colaterais”. Uma conclusão depois de citar o porta-voz do CENTCOM: “mesmo com a melhor tecnologia do mundo, ocorrem erros, seja por desinformação ou por interpretação incorrecta da informação disponível”.

A guerra dos drones é silenciosa mas terrivelmente letal. Não adianta olhar para o céu à procura de sinais, porque a morte há-de chegar sem anúncio prévio, comandada por um joystick a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Quem carregou no botão ainda terá tempo de ir jantar em casa com a família. Afinal, foi apenas mais um dia no escritório.

O último exemplo chegou a 29 de Agosto, já com os militares dos Estados Unidos quase fora do Afeganistão e depois do ataque do Estado Islâmico, 3 dias antes, que provocou a morte a quase 200 pessoas, incluindo 13 militares norte-americanos. O Presidente Joe Biden disse não perdoar e prometeu retaliação. Na resposta, os Estados Unidos utilizaram um drone para atacar um alegado membro do Estado Islâmico que, veio a saber-se, não tinha nenhuma relação com a organização. Era afinal um engenheiro que trabalhava desde 2006 para uma organização com sede na Califórnia. Morreram 10 civis, incluindo 7 crianças. Pior teria sido difícil. A desculpa chegou a seguir: “erro trágico”.

É verdade que, na guerra, vale tudo, por muito que digam que não. Até “danos colaterais”, sem que ninguém seja responsabilizado. Mas é também neste “vale tudo” que se joga, e define, a legitimidade dos envolvidos. E por muito que se reconheçam os erros ou se apresentem desculpas, a memória daqueles que perdem pessoas próximas regista os factos, e as consequências desse registo perduram no tempo.