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Dossiê: O direito ao aborto sob ataque nos EUA

Yolanda Monge e Iker Seisdedos situam o contexto e a história do direito reprodutivo fundamental em debate em Washington

5 de dezembro de 2021

Suprema Corte decidirá sobre o direito ao aborto nos EUA

Tribunal, hoje com maioria conservadora, debate uma lei do Mississippi que proíbe a interrupção da gravidez a partir da 15ª semana

Yolanda Monge, El País Brasil, 1 de dezembro de 2021

O direito ao aborto nos Estados Unidos está em perigo, quase 50 anos depois de ser garantido sob a Constituição. Depois que Donald Trump nomeou três juízes conservadores para a Suprema Corte, esse direito cambaleia sob repetidos ataques nas instâncias inferiores, podendo ir definitivamente a nocaute a partir desta quarta-feira, quando o mais graduado tribunal norte-americano começa a estudar o assunto. A sentença ainda vai demorar até o final do ano judicial, nas últimas semanas de junho, ou antes, se assim decidirem os juízes.

Os autodenominados defensores da vida há décadas esperam por este momento. Seis juízes conservadores contra três progressistas (apenas três mulheres na instituição, e uma delas uma católica devota e intérprete ortodoxa da Constituição) ouvem nesta quarta-feira as alegações que podem provocar ou impedir que a famosa sentença do caso Roe versus Wade, de 1973, se torne letra morta. O futuro do direito ao aborto no país inteiro, garantindo por aquela decisão de quase meio século atrás, pode afinal depender do resultado de uma ação contra a única clínica que realiza abortos no Estado do Mississippi.

O processo, oficialmente intitulado Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization– o nome da clínica do Mississippi – representa a batalha mais importante pela liberdade reprodutiva em várias gerações. Também servirá para provar se Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Barrett, os juízes conservadores nomeados por Trump, cumprirão a promessa do ex-presidente de derrubar a sentença que garante o aborto. O célebre processo de 1973 contrapunha a cidadã Jane Roe (nome fictício de Norma McCorvey), a Henry Wade, promotor de Dallas que tornou efetiva uma lei do Texas que proibia o aborto, exceto para salvar a vida da gestante. Durante sua campanha eleitoral de 2016, Trump atraiu votos da direita religiosa com a promessa de nomear para a Suprema Corte juízes conservadores dispostos a emendar a jurisprudência que fez história para os direitos femininos na década de 1970.

Sem a Roe versus Wade, os Estados que assim desejarem terão liberdade absoluta para proibir todos os abortos desde o momento da concepção. “Se a Roe for revogada, quase metade dos Estados norte-americanos limitariam estritamente o aborto, e possivelmente o proibiriam por completo”, afirma Nancy Northup, presidenta e diretora executiva do Centro para os Direitos Reprodutivos, organização que apoia o direito da mulher a decidir.

O caso em mãos do Supremo trata de uma lei de 2018, quando o então governador republicano Phil Bryant restringiu o direito ao aborto ao estabelecer como limite as 15 semanas de gestação, o que entra em conflito com o direito constitucional garantido no precedente de 1973, de poder interromper a gravidez até o momento em que existir viabilidade para o feto, ou seja, que for “potencialmente capaz de viver fora do útero materno, sem ajuda artificial” (o que acontece por volta da 24ª semana). Entretanto, em novembro de 2018 um juiz federal revogou a lei, e posteriormente outro tribunal se pronunciou a favor de manter tal revogação. O caso acabou na Suprema Corte.

Quase 60% dos norte-americanos consideram que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, um número que se manteve relativamente estável nos últimos anos, segundo uma pesquisa do Pew Research Center feita no primeiro semestre. Mas existem enormes diferenças entre republicanos e democratas sobre o tema. As cifras confirmam também que quase uma em cada quatro mulheres do país já se submeteu à interrupção legal de uma gravidez.

A pesquisa do Pew mostrou que 80% dos democratas e simpatizantes consideram que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, mas apenas 35% dos republicanos opinam assim. E a divisão partidária vem se ampliando: as cifras eram de 72% e 39%, respectivamente, em 2016. As convicções religiosas também desempenham um papel importante: 77% dos evangélicos brancos acreditam que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos.

Em 2021 foram promulgadas 90 leis estaduais que restringem o aborto, mais do que em qualquer outro ano desde o caso Roe versus Wade, segundo cálculos do Instituto Guttmacher, organização internacional que milita pela liberdade reprodutiva.

Também tramita na Suprema Corte a lei do Texas conhecida, como a lei do batimento cardíaco, em referência à suposta pulsação do feto, e que proíbe o aborto a partir da sexta semana, quando a maioria de mulheres ainda nem sabe que está grávida. A lei texana foi desenhada para esquivar o potencial bloqueio dos tribunais federais, ao delegar a responsabilidade da aplicaçãoda lei ao cidadão comum, e não às autoridades estaduais, quem costumam ser os acusados nas ações judiciais que procuram frear uma norma inconstitucional. A Suprema Corte ouviu os argumentos sobre a lei do Texas em 31 de outubro.

A vida secreta de Jane Roe: a história real por trás do caso que legalizou o aborto nos EUA e que agora o Supremo revisa

Tribunal de maioria conservadora, que estuda uma lei restritiva do Mississipi, se inclina por solapar o direito e por derrubar um precedente estabelecido em 1973 pelo caso ‘Roe contra Wade’

Não é verdade, como dizia Scott Fitzgerald, que não exista segundos atos nas vidas americanas. Não foi assim para Norma McCorvey, uma garçonete de Dallas que em 1970 demandou em um processo histórico Henry Wade, promotor do distrito da cidade texana, para exigir seu direito a abortar nesse Estado.

O caso chegou ao Supremo Tribunal, que em janeiro de 1973 decidiu, sete votos contra dois, a favor da requerente, amparando-se na décima-quarta emenda, que garante a privacidade. Já era tarde para McCorvey: deu à luz a menina em junho de 1970 e a deu em adoção. Sob o pseudônimo com que denunciou, Jane Roe, se transformou em um símbolo da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e em munição entre os dois lados de uma amarga disputa. Ainda hoje, a sentença de Roe contra Wade costuma ser acompanhada dessa nota: “A decisão mais controversa da história do Supremo”.

Essa decisão, que garantiu constitucionalmente o direito a interromper uma gravidez até a semana 23, em que se fixa a viabilidade do feto, começou a ser revisada agora em Washington. A discussão é sobre uma lei do Estado do Mississipi que pretende adiantar essa fronteira em dois meses, até as 15 semanas. Com três juízes progressistas e seis conservadores (metade dos quais designada por Donald Trump com a pretensão expressa de derrubar esse precedente), a maioria dos analistas concorda que Roe contra Wade tem, após sobreviver durante meio século a múltiplas formações do Supremo, os dias contados (a resolução está prevista para o fim da temporada judicial, em junho ou julho). “Sabemos o que os magistrados farão. A única dúvida é como pensam em explicar”, escreveu no sábado no The New York Times Linda Greenhouse, referência em Washington sobre informação judicial. Mais de 20 Estados esperam o fim da proibição de legislar para mudar suas normas.

McCorvey recebeu a permissão de usar um pseudônimo de maneira excepcional pelo entendimento de que o estigma social que o aborto tinha à época pesava mais do que a obrigação de comparecer diante do juiz com um nome real. Em 1994, McCorvey publicou I Am Roe (Eu Sou Roe), o primeiro de seus dois pouco confiáveis livros de memórias. No ano seguinte, foi batizada na religião protestante, deixou seu trabalho em uma clínica dedicada à interrupção da gravidez e passou ao outro lado. Em 1998, se tornou católica e, seis anos depois, tentou sem sucesso que o Supremo revisasse seu caso. Morreu em 2017 aos 69 anos.

O segundo ato da vida de Shelley Lee Thornton, a filha que Roe não queria, começou em setembro. Sua identidade era secreta até a publicação do livro The Family Roe. An American Story (A família Roe. Uma história americana), do jornalista Joshua Prager, que revela que Thornton foi Roe Baby, como a imprensa e as associações antiabortistas batizaram a misteriosa garota.

O jornalista, que trabalhou por 11 anos no projeto, pôde encontrá-la graças a Connie Gonzales, uma mulher que manteve durante décadas uma relação, cheia de infidelidades e outros problemas, com a demandante, que renegou sua homossexualidade após abraçar a fé. “Gonzales me disse que, por um despejo iminente, iria se desfazer de uma montanha de papéis de sua ex”, disse Prager na sexta-feira em uma conversa telefônica. Entre eles, havia uma entrevista com um boletim católico em que estavam a data e o local exatos do nascimento de Roe Baby. O repórter rastreou as 37 possíveis candidatas e encontrou a garota, à época uma mulher de 40 anos. “No começo se negou a falar comigo, mas por fim concordou em me contar sua história. Foi questão de perseverança e de cultivar a confiança”.

Thorton, cujo advogado não respondeu neste sábado ao pedido do EL PAÍS de uma entrevista com sua representada, soube de seu segredo prestes a completar 19 anos, quando o repórter de um tabloide sensacionalista a abordou no estacionamento de um supermercado e o revelou à queima-roupa. “Não quis saber nada daquilo. Em todos esse anos havia se transformado em um exemplo aos pró-vida de como o aborto poderia se tornar pernicioso. Mas ela não queria ser um símbolo de nada”, esclarece Prager. Depois disso, manteve um contato telefônico esporádico com sua mãe biológica, que a encorajou a sair do anonimato porque pensava que as duas poderiam se beneficiar disso. Sempre se negou a conhecê-la pessoalmente. Após sair das sombras na revista Atlantic, declarou em uma entrevista com o ABC News que havia se sentido “aliviada após anos guardando um terrível segredo”.

Prager também encontrou em suas pesquisas as duas outras filhas de McCorvey. O grande símbolo do aborto nos Estados Unidos na verdade nunca passou por isso: deu as três, de pais diferentes, para adoção. Quando o jornalista as colocou em contato em 2013, nenhuma sabia da existência das outras duas.

McCorvey nunca pareceu encontrar a paz, nem antes, nem depois de se transformar involuntariamente em um personagem histórico. Nasceu na Louisiana e cresceu em um ambiente pobre no Texas, entre a ausência da figura paterna e os abusos psicológicos de uma mãe alcoólatra. Deu à luz pela primeira vez aos 16 anos. Depois viria outra filha. Quando, aos 21, e já com um histórico de alcoolismo, vício em drogas e prostituição às costas, ficou grávida pela terceira vez, procurou ajuda. A colocaram em contato com Linda Coffee, uma advogada de 26 anos que procurava uma demandante cujo exemplo permitisse que ela lutasse pela legalização do aborto.

Coffee é outro dos fascinantes personagens de The Family Roe. Acabou escanteada pela fama da outra advogada que cuidou do caso, Sarah Weddington. Hoje Coffee vive, de acordo com Prager, “dos cheques de alimentação do Governo em uma casa sem calefação. Ela é a verdadeira mãe de Roe contra Wade; montou o caso, fez toda a documentação, o levou nas primeiras instâncias. O que Weddington fez com ela, mutilá-la de sua história, foi terrível”. Esta última, que defendeu a causa no Supremo com somente 27 anos, ficou com todo o mérito e acabou trabalhando como assessora do presidente Jimmy Carter (1977-1981). Uma entrevista com Coffee em 1970, disponível no YouTube, corrobora que não era uma mulher que se sentia confortável sob o escrutínio dos holofotes. Weddington não quis falar com Prager para seu livro. Também não respondeu à proposta do EL PAÍS.

McCorvey disse várias vezes que embarcar naquilo foi “o pior erro” de sua vida. Prager lembra que quando aceitaram seu caso, ela estava na décima-oitava semana de gestação, o que tornava impossível obter uma sentença a tempo para interrompê-la, a única coisa que buscava. Também não ofereceram a possibilidade de ajudá-la a abortar, como faziam com outras mulheres pobres, enviadas a Estados como a Califórnia, onde o governador, um tal Ronald Reagan, o havia legalizado em 1967.

Mas o que mais a irritou foi descobrir muitos anos depois que Weddington havia abortado antes no México e que nunca contou. Weddington publicou essa informação em um livro em 1992. “Esse foi o principal motivo que a fez trocar de lado”, diz Prager, que fez dezenas de entrevistas com a demandante. O jornalista afirma que ela não o fez por dinheiro, apesar de afirmar isso no documentário AKA Jane Roe (Pseudônimo Jane Roe, 2020): “Foi por interesse mútuo. Peguei o dinheiro e eles me colocaram diante das câmeras e me disseram o que eu deveria dizer”. “Isso é simplesmente falso. De fato, Norma sabia que caso se convertesse seria paga para que fizesse discursos (da mesma forma que era paga quando estava do lado dos pró-escolha). Mas não recebeu um centavo por se converter”, diz Prager, que lembra que McCorvey nunca foi uma fonte confiável, e dá como exemplo o fato de afirmar durante anos que a gravidez da Roe Baby foi por um estupro, até que em 1987 confessou que foi fruto de uma relação com um homem com quem estava unida “por algo que pensava que era amor, mas por fim não era”.

Olhar para trás sobre o histórico caso ilumina seu futuro no Supremo. Se todas essas vidas ficaram para sempre partidas pela metade pela decisão judicial é porque o aborto continua sendo, certamente acima da raça, o assunto que mais divide uma nação de raízes puritanas e extremamente polarizada. Por isso, a mais alta instância judicial do país aceitou agora revisar o processo Dobbs contra a Jackson Women’s Health Organization, a única clínica que pratica abortos no Mississipi, onde os requisitos cada vez mais difíceis de cumprir vão dissuadindo o restante. Em instâncias inferiores, dois juízes diferentes deram ganho de causa à clínica e consideraram inconstitucional uma lei estadual de 2018, promulgada por um governador republicano, que fixava em 15 semanas o limite para abortar. Dobbs é Thomas Dobbs, o funcionário da Saúde do Mississipi que recorreu dessa decisão no Supremo em junho do ano passado. Como Roe, seu nome pode ficar para sempre associado à história judicial dos Estados Unidos.

A magistrada Ruth Bader Ginsburg, símbolo feminista, argumentou antes de ser nomeada em 1993 para o Supremo que o pecado original de Roe contra Wade é que foi baseado no direito à privacidade, e não no de igualdade, do qual ela foi uma fabulosa defensora. A morte de Bader Ginsburg deixou seu cargo vago em setembro de 2020. Trump, então, pisou no acelerador para indicar antes de perder as eleições em novembro Amy Coney Barrett, que inclinou a balança do tribunal a uma clara maioria conservadora inédita desde os anos trinta. Após ouvir na quarta-feira os primeiros argumentos sobre o caso, parece claro que essa maioria se sente confortável com a ideia das 15 semanas, o que acabaria com meio século de precedentes. Também, que alguns estão dispostos a ir mais longe: acham que o momento de derrubar completamente Roe contra Wade chegou. Isso daria aos Estados a liberdade para decidir sobre os direitos reprodutivos de 166 milhões de mulheres.