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Encontro de Saberes: As reivindicações da Amazônia

5 de novembro de 2021

Reunidos no Encontro de Saberes de Belém entre 20 e 23 de Outubro de 2021, representantes dos povos da floresta amazônica, construíram o seguinte documento, em concerto com outros segmentos das sociedades sul-americanas, para fazê-lo chegar aos governos e à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC), reunida na Conferência das Partes (COP26) em Glasgow, em 9 de Novembro de 2021. Enriquecido com as contribuições da Assembleia Mundial sobre a Amazônia e a Crise Climática, os signatários deste documento comunicam às Partes representadas em Glasgow três reivindicações fundamentais. Elas serão formuladas abaixo, após uma justificativa introdutória.

Justificativa

O que segue acolhe e aprofunda a Resolução 48/13 do Conselho dos Direitos Humanos da ONU (Human Rigths Council), que reconhece o direito humano universal a um meio ambiente saudável. Essa Resolução foi aprovada unanimemente com longos e entusiásticos aplausos em 8 de Outubro de 2021 pela Assembleia desse Conselho em Genebra por 43 votos a favor e 4 abstenções.[1]

As três reivindicações dos Povos da Amazônia estão situadas no coração destes Direitos Universais, mas também em uma visão não antropocêntrica do mundo, e partem da seguinte constatação:[2] após meio século de destruição por corte raso e de degradação do tecido florestal amazônico, o desmatamento voltou a se acelerar nos últimos anos, de modo que partes crescentes da floresta já não apresentam mais as condições ambientais de sequestro de carbono, de umidade e integridade que a permitem se regenerar e sobreviver.[3] A floresta amazônica vive hoje no limiar de um ponto de inflexão (tipping point) e de não retorno. Como afirmam reiteradamente inúmeros cientistas, entre os quais Carlos Nobre e Thomas Lovejoy: “o ponto de inflexão é aqui, é agora. Os povos e líderes dos países amazônicos juntos têm o poder, a ciência e as ferramentas para evitar um desastre ambiental em escala continental, na verdade, um desastre ambiental global ”.[4]

“Um desastre ambiental global”: a Amazônia é um elemento crítico do sistema Terra[5] e se os povos e governantes do mundo todo consentirem que a devastação se prolongue por mais alguns poucos anos, o planeta muito em breve não terá mais como recuperar a maior extensão remanescente de suas florestas tropicais, lar de 80% da biodiversidade terrestre. A humanidade e a biodiversidade como um todo serão mortalmente atingidas e a desestabilização do sistema climático sofrerá nova aceleração, diminuindo imensamente as perspectivas de adaptação da vida no planeta. A conservação e a restauração da floresta Amazônia é absolutamente imprescindível para a meta central do Acordo de Paris, qual seja conter o aquecimento médio global “bem abaixo” de 2oC em relação ao período pré-industrial.

As novas NDCs apresentadas à COP26 permanecem muito inferiores ao minimamente necessário para conter o aquecimento global em níveis compatíveis com as metas do Acordo de Paris e com a sobrevivência de nossas sociedades. O negacionismo e o ilusionismo climático ainda imperam, sobretudo no Brasil e em outros governos dos 9 países amazônicos. A estratégia mais socialmente justa, mais segura e com resultados mais imediatos para conter as emissões de gases de efeito estufa é proteger as florestas tropicais, a começar pela Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. E a estratégia mais justa, imediata e segura para proteger a Amazônia é fornecer a seus habitantes as condições necessárias para que eles mesmos a protejam e façam valer os direitos da natureza.

Reivindicação 1:

Os povos da floresta amazônica reivindicam uma participação direta – como beneficiários imediatos e/ou como prestadores de assessoria, baseada em seu profundo conhecimento da floresta –, nas negociações e decisões internacionais, públicas e privadas, de transferências de recursos para a mitigação e adaptação em relação às mudanças climáticas, em especial no que se refere à restauração da floresta amazônica.

Concretamente, essa primeira reivindicação exprime-se na seguinte forma mais circunstanciada:

(a) Os povos da floresta Amazônica devem ter o direito de formular projetos de conservação e restauração florestal que façam jus a tais aportes;

(b) Os povos da floresta Amazônica, através de suas próprias organizações, devem ter assento, voz, voto e poder de veto nas instâncias de formulação, decisão e auditoria no emprego desses recursos;

(c) Os recursos destinados à Amazônia através de mecanismos de repasse previstos no Acordo de Paris devem ser destinados explicitamente à conservação da floresta, e não a subsidiar o agronegócio, com suas falsas soluções de replantio de Áreas de Proteção Permanente (APPs);

(d) Empréstimos não são transferências de recursos. Empréstimos não devem ser, portanto, conceitualmente contabilizados como parte do Acordo de Paris, tal como tem ocorrido. Essas transferências de recursos aos países e povos mais vulneráveis, no âmbito da UNFCCC, devem ser um instrumento de justiça climática, ao invés de subterfúgios para promover negócios no setor financeiro (bancos privados ou Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, tais como o Banco Mundial ou o Asian Bank). Esses recursos anuais de US$ 100 bilhões que deveriam ter sido sido desembolsados até 2020, e agora devem sê-lo até 2025, devem provir na forma de doações (grants), isto é, na forma de transferências diretas a projetos, em nível subnacional, de proteção e restauração da floresta, de modo a promover, de fato, os objetivos do Acordo de Paris.

Reivindicação 2

Reivindicamos o boicote pelas Partes do Acordo de Paris das commodities produzidas pelas corporações em toda a região amazônica.

Há uma demonstrada incompatibilidade entre as metas do Acordo de Paris e o sistema alimentar globalizado, cujas emissões combinadas atingem entre 21% e 37% das emissões globais desses gases na média do período 2007-2016.[6] É fundamental se compenetrar desse fato gravíssimo: a destruição da floresta amazônica e sua redução a uma alavanca do sistema alimentar corporativo globalizado precisa ser detida imediatamente. Essa é uma tarefa à qual o Acordo de Paris não tem dado a devida atenção. Um trabalho publicado na revista Science mostra que “mesmo se as emissões provenientes dos combustíveis fósseis fossem imediatamente zerados, as tendências atuais nos sistemas alimentares globais impediriam o cumprimento da meta de 1,5°C. Assim sendo, mudanças maiores no modo como os alimentos são produzidos são necessárias se quisermos atingir os objetivos do Acordo de Paris.” [7]

O principal problema da região é o agronegócio, com ênfase na produção de ração animal e na proliferação de ruminantes. No período 1990-2005, a abertura de pastagens foi responsável por mais de 80% da perda da floresta amazônica no Brasil, por mais de 60% na Colômbia e por quase 40% na Bolívia (sendo que neste país o agronegócio como um todo é responsável por 80% da perda florestal).  Se os governantes do mundo todo de fato pretendem conter o aquecimento global em níveis não catastróficos, uma moratória de importação das commodities produzidas pelas corporações na região amazônica é inevitável, enquanto não houver mecanismos válidos e confiáveis de rastreabilidade desses produtos no que se refere à sua associação com o desmatamento. O momento é agora. Nossa reivindicação de boicote endossa e fortalece outras propostas em curso, cujos efeitos ainda não se fizeram sentir em grande parte por omissão das Partes da UNFCCC.[8] Apenas sob forte pressão internacional, os governos da Amazônia sul-americana, reféns do agronegócio, se alinharão aos objetivos do Acordo de Paris. E, no entanto, bastaria que esses governos cessassem o desmatamento para que suas NDCs se colocassem entre as mais ambiciosas do mundo.

Reivindicação 3 (Demanda 3)

Reconocer los derechos de la Amazonia y la naturaleza.

La Amazonía es el mayor bosque y la eco región de mayor biodiversidad del planeta. De la sobrevivencia de la Amazonía depende la estabilidad del clima del planeta y la posibilidad de evitar que se consume la sexta extinción de la vida en la Tierra. Los gobiernos, las Naciones Unidas y las instituciones financieras deben dejar de tratar a la Amazonía como un simple sumidero de carbono y reconocer los derechos de la Amazonía, de sus ríos, de sus bosques, de sus animales, de sus plantas y de todos los seres no humanos que la habitan. Cuando se discuten planes para la Amazonía se debe tomar en cuenta los derechos de la naturaleza y dejar de promover proyectos para remplazar una selva viva con plantaciones de monocultivos.

En la Amazonía se está desarrollando el mayor ecocidio del planeta y las autoridades nacionales y multilaterales están siendo cómplices directos o silenciosos de este ecocidio. Los gobiernos reunidos en la CNUMCC deben condenar el ecocidio en curso, plantear que el delito de ecocidio sea reconocido por la Corte Penal Internacional y pedir que la Corte Penal Internacional inicie inmediatamente el juzgamiento del caso de la Amazonía por el delito de ecocidio. Es imposible pensar en resolver el tema del cambio climático si no se sanciona a las empresas, gobiernos y entidades financieras causantes, por acción u omisión, de este ecocidio.

La Amazonía no es un objeto sino un sujeto de derechos que tiene que ser reconocido como tal por el sistema de las Naciones Unidas. Debemos superar la visión antropocêntrica imperante, y generar mecanismos para que la naturaleza tenga voz y representación en las negociaciones climáticas y multilaterales a través de la ciencia, los pueblos indígenas y todos los pobladores que quieren salvar a la naturaleza y no hacer negocios con ella. Las Naciones Unidas deben convocar a una Asamblea de la Tierra para repensar los objetivos de desarrollo sostenible desde una perspectiva no antropocéntrica. Para hacer frente al cambio climático es necesario construir democracias y procesos de integración multilaterales ecocéntricos, que tomen en cuenta a todos los componentes de la comunidad de la Tierra, porque sólo así podremos restablecer el equilibrio del sistema de la Tierra.

Os governantes reunidos em Glasgow na COP26 têm agora uma última chance de reagir à inércia e à falta de comprometimento dos governos com os objetivos centrais que motivam essa importantíssima reunião. Temos, povos da Amazônia e do mundo todo, o direito de nos insurgir contra os crimes, as ameaças existenciais e os riscos cada vez maiores e mais iminentes causados pelo tráfico global de commodities que só beneficiam corporações e bancos em detrimento da preservação dos alicerces da vida no planeta.

Notas

[1] Cf. United Nations, UN News, Climate and Environment, 15/X/2021 <https://news.un.org/en/story/2021/10/1103082>.

[2] Cf. FAO: Craig D. Allen, “Climate-induced forest dieback: an escalating global phenomenon?”, 2010; Brendan Choat et al., “Global convergence in the vulnerability of forests to drought”, Nature, 491, 29/XI/2012; Bettina Engelbrecht, “Plant ecology: Forests on the brink”. Nature, 491, 29/XI/2012; Armineh Barkhordarian et al., “A Recent Systematic Increase in Vapor Pressure Deficit over Tropical South America”. Scientific Reports, 25/X/2019.

[3] Cf. Luciana V. Gatti et al., “Drought sensitivity of Amazonian carbon balance revealed by atmospheric measurements”. Nature 506, 2014, pp. 76-80; Luciana V. Gatti et al., “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change”. Nature, 14/VII/2021.

[4] Cf. Thomas E. Lovejoy & Carlos Nobre, “Amazon tipping point: Last Chance for Action” (editorial). Science Advances, 5, 12, 20/XII/2019: “The increasing frequency of unprecedented droughts in 2005, 2010, and 2015/16 is signaling that the tipping point is at hand. (…) Today, we stand exactly in a moment of destiny: The tipping point is here, it is now. The peoples and leaders of the Amazon countries together have the power, the science, and the tools to avoid a continental-scale, indeed, a global environmental disaster.”

[5] Cf. Timothy M. Lenton et al., “Tipping elements in the Earth’s climate system”. PNAS, 105, 6, 2015, pp. 1786-1793; Will Steffen et al., “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene”. PNAS, 9/VIII/2018.

[6] Cf. Cynthia Rosenzweig et al., “Climate change responses benefit from a global food system approach”. Nature Food, 2020.

[7] Cf. Michael A. Clark et al., “Global food system emissions could preclude achieving the 1.5° and 2°C climate change targets”. Science, 6/XI/2020: “even if fossil fuel emissions were eliminated immediately, emissions from the global food system alone would make it impossible to limit warming to 1.5°C and difficult even to realize the 2°C target. Thus, major changes in how food is produced are needed if we want to meet the goals of the Paris Agreement”.

[8] Exemplos: 1. Declaração de Amsterdam (“Towards Eliminating Deforestation from Agricultural Chains with European Countries”, 2015), assinada pelos governos da Alemanha, Dinamarca, França, Holanda, Noruega e Reino Unido, exortava o agronegócio a eliminar o desmatamento associado às suas atividades até 2020; 2. “Forest Act of 2021” Richard Cowan & Fathin Ungku, “U.S. Congress Democrats target palm oil, beef trade in deforestation bill”. Reuters, 6/X/2021; 3. Laura Kehoe et al., “Make EU – Brazil trade sustainable”. Science, 26/IV/2019