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Ernest Mandel: Hegemonia reformista e frente única

5 de fevereiro de 2022

"Uma política de frente única dirigida para os partidos socialista e comunista é um componente tático da orientação estratégica geral. Mas é apenas isso - um componente e não um substitutivo dessa orientação” - afirma Ernest Mandel. Para ele, a “redução simplista da estratégia de unificação das forças proletárias e elevação máxima da consciência de classe à política da frente única dos partidos socialista e comunista tem paralelo frequente na ilusão espontaneísta de que a formação real dessas frentes únicas é, por si só, suficiente para levar os trabalhadores a romper com os reformistas. em virtude da amplitude das lutas unificadas que resultariam. Ainda mais ilusória e espontaneísta é a noção de que a experiência de um “governo sem ministros capitalistas" seria suficiente para abrir caminho a um rompimento das massas trabalhadoras com o reformismo e à formação de um autêntico ''governo dos trabalhadores'' anticapitalista”.

Ernest Mandel, Marxismo revolucionário atual, 1979 (extrato das páginas 62 à 67)

[O texto a seguir é um extrato de Marxismo revolucionário atual (Zahar, Rio de Janeiro, 1981), um livro de entrevistas com Ernest Mandel feitas por Robin Blackburn, Quentin Hoare, John Rothschild e Henri Weber, por ele revistas e originalmente publicado em 1979 pela New Left Books. Nele, Mandel procura resgatar os elementos do marxismo revolucionário referenciado na Revolução Russa e na experiência posterior do trotskismo, para analisar a dinâmica dos três setores da revolução mundial. A passagem reproduzida conclui a primeira parte, intitulada “A estratégia socialista no Ocidente”.]

Inicialmente devemos notar que a realidade da luta de classes nos países capitalistas adiantados desde a Primeira Guerra Mundial - ou desde 1905 na verdade - não pode ser reduzida simplesmente à fórmula do “predomínio do reformismo" ou à pretensão contrária de que ''os trabalhadores tendem espontaneamente a ser revolucionárias mas os traidores reformistas impedem que eles façam a revolução". Na realidade essas duas proposições são ambas analiticamente absurdas.

A primeira significaria simplesmente que o socialismo é impossível, e a segunda é uma concepção demonológica da história. Nenhuma delas é capaz de explicar a realidade histórica. O fato é que durante períodos de funcionamento normal da sociedade burguesa a classe operária é na realidade dominada pelo reformismo. Isso, na realidade, pouco mais é do que um truísmo, pois como funcionaria o capitalismo normalmente se a classe operária contestasse sua existência pela ação direta a cada dia? Mas o capitalismo não funcionou normalmente nos últimos 60 ou 70 anos. Períodos de normalidade foram interrompidos pela deflagração de crises, de situações pré-revolucionárias e revolucionárias. É impossível - econômica.

social e psicologicamente - para a classe operária viver num estado constante de ebulição revolucionária. Essa alternação de condições suscita, portanto, a mesma velha questão dos limites temporais das crises revolucionárias e pré-revolucionárias.

Isso nos leva de volta à problemática trotskista fundamental: a da liderança revolucionária, da concordância entre a elevação da consciência de classe do proletariado e sua capacidade de auto-organização, da construção de uma liderança revolucionária. A coincidência de todos esses fatores pode levar a crise a um resultado diferente do habitual, que em si mesmo estimula a dominação reformista. Para os que podem querer classificar esta análise como ''revisionista'', devemos lembrar que esse tipo de revisionismo tem raízes profundas, já que até mesmo Lênin disse que a classe operária “é naturalmente sindicalista'' durante períodos de funcionamento normal do capitalismo, e ''naturalmente anticapitalista'' em situações revolucionárias ou pré-revolucionárias.

Os reformistas continuarão a ser a maioria da classe operária durante períodos ''normais", se tal expressão tem qualquer significado durante a fase de decadência capitalista. De qualquer modo, é clara a existência de uma diferença fundamental entre, de um lado, uma situação na qual há dissensão entre pequenos agrupamentos revolucionários isolados e, de outro, a máquina dos partidos de massa que são praticamente onipotentes na classe trabalhadora, bem como situações nas quais os revolucionários já atravessaram o umbral da acumulação primitiva de forças, embora ainda representem apenas uma pequena minoria dessa classe. Neste último caso, a luta para arrancar dos reformistas a hegemonia sobre as massas se torna infinitamente mais fácil, uma vez surgida a crise revolucionária.

A fraqueza das organizações revolucionárias durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial,  por exemplo, era tal que foi impossível qualquer desafio político real aos reformistas. Aos olhos das massas, os revolucionários não representavam uma alternativa genuína aos reformistas e stalinistas; a relação de forças teria de ser, primeiro, modificada. Mas as organizações revolucionárias, que contam não apenas com centenas, mas com aproximadamente dez mil membros, podem esperar, realisticamente, travar batalha com a máquina reformista, quando surgirem condições mais favoráveis. A composição social das organizações e sua capacidade de recrutar um número suficiente de dirigentes da classe operária, reconhecidos como líderes autênticos, ou pelo menos potenciais, da classe na fábrica, também são elementos decisivos que podem ser estudados em detalhe em vários casos específicos: o Partido Bolchevique entre 1912 e 1914, a ala esquerda do Partido Social-Democrata Independente (USPD) na Alemanha entre 1917 e 1920, a esquerda revolucionária na Espanha entre 1931 e 1936.

A isso devemos acrescentar que o desaparecimento de uma tradição anticapitalista é um fenômeno relativamente recente, que acompanhou a fixação definitiva da posição dos partidos comunistas nos países industrialmente adiantados ao término da Segunda Guerra Mundial e em especial ao fim da Guerra Fria. Esse tipo de educação anticapitalista havia continuado até mesmo durante a Frente Popular, tendo a política stalinista sido implementada em dois níveis,  por assim dizer. Hoje, o reformismo social-democrata e stalinista une forças para manter a classe operária como prisioneira da ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Mas qualquer visão da luta de classes que se centralizasse exclusivamente sobre esse aspecto da realidade subestimaria as molas mestras quase que estruturalmente anticapitalistas inerentes à luta de classes, durante qualquer fase de instabilidade acentuada.

O fato de ser a classe operária espontaneamente anticapitalista durante os períodos pré-revolucionários foi confirmado em escala maciça em país após país: Alemanha. 1918-1923; Itália, 1917-20; França. 1934-36; Espanha. 1931-36; novamente a França em maio de 1968; novamente a Itália em 1969-70 e 1975-76; Espanha novamente em 1975-76; Portugal em 1975; e assim por diante.

Por outro lado, essas explosões de atividade anticapitalista espontânea (e consciência) têm efeitos menos duradouros sobre a consciência de classe e permitem aos reformistas reconquistar o controle de modo relativamente rápido, pois do contrário serão açambarcadas por poderosas organizações anticapitalistas de massa, como os partidos comunistas de princípios da década de 1920, ou por uma vanguarda dos trabalhadores de proporções significativas, que têm permanente desconfiança das máquinas burocráticas. (...)

Pergunta: Será que esta análise da consciência de classe do proletariado implica que a política de frente única dos trabalhadores deve ser a linha estratégica fundamental dos revolucionários?

Aqui devemos distinguir dois objetivos políticos - ou, antes, socio-políticos. A classe operária não pode derrotar o capitalismo, exercer o poder e começar a construir uma sociedade sem classes a não ser que atinja um grau de unificação de suas forças sociais e um nível de politização e consciência qualitativamente maiores do que os existentes sob o sistema capitalista em épocas normais. Na verdade, é somente através de tal unificação e politização que a classe inteira se constitui como uma classe por si, além de qualquer distinção de ocupação, nível de qualificação, origem regional ou nacional, raça, sexo, idade etc.

A maioria dos trabalhadores só adquire consciência de classe, no sentido mais elevado da palavra, através da experiência desse tipo de unificação na luta. O partido revolucionário desempenha um papel mediador crucial em tudo isso. Mas através de sua própria atividade não pode substituir essa experiência na luta unida pela maioria dos trabalhadores. O partido sozinho não pode ser a fonte de aquisição dessa consciência de classe para milhões de assalariados. (...)

Não há dúvida, então, de que a política de unificação das forças proletárias é uma constante, um objetivo estratégico permanente para os marxistas revolucionários.

Essa problemática da unificação e politização de todo o proletariado, porém, se distingue da questão das propostas particulares de frentes unidas dirigidas a diferentes organizações e correntes políticas dentro da classe operária. Não falarei das origens objetivas e históricas desses vários partidos e organizações. Mas gostaria de examinar a articulação precisa entre a política de frente única na medida em que implica os dois partidos tradicionais - os partidos comunista e socialista - e a estratégia de unificação e politização marxista do proletariado inteiro.

Há uma série de razões pelas quais esses dois tipos de conjunto de problemas não são identicos. Primeiro, os partidos comunista e socialista não incluem - nem mesmo influenciam - todos os trabalhadores. Segundo, dentro do proletariado há camadas de vanguarda, algumas organizadas mas muitas não, que tiraram conclusões das traições passadas da social-democracia e do stalinismo e que já desconfiam profundamente do aparelho burocrático dessas correntes. Terceiro, dentro da classe operária as lideranças burocráticas dos partidos socialista e comunista mantêm orientações políticas que frequentemente entram em conflito com os interesses imediatos, e sempre conflitam com os interesses históricos, do proletariado. Portanto, é perfeitamente possível para eles concluir acordos unificados destinados a desorientar, restringir e fragmentar as mobilizações dos trabalhadores. Isso acontece, em particular, durante situações revolucionárias e pré-revolucionárias, quando esses aparelhos tipicamente se esforçam para previnir a tomada do poder pelo proletariado.

Mas, embora esses dois conjuntos de problemas não sejam idênticos, não podem ser completamente separados. Pois em todos os países nos quais o movimento organizado dos trabalhadores possui longa tradição, uma parte significativa da classe continua a manifestar algum grau de confiança nos partidos socialista e comunista, não só nas eleições, mas também política e organizacionalmente. Portanto, é impossível fazer qualquer progresso real no sentido da unidade das forças proletárias, enquanto se ignorar essa confiança relativa ou supor que os trabalhadores socialistas ou comunistas participarão da frente sem levar em conta as atitudes e

reações de suas próprias lideranças.

Segue-se que uma política de frente única dirigida para os partidos socialista e comunista é um componente tático da orientação estratégica geral. Mas é apenas isso - um componente e não um substitutivo dessa orientação. Isso é particularmente exato na medida em que a unificação

e politização máximas de todo o proletariado exigem tanto a dedicação dos trabalhadores socialistas e comunistas quanto um rompimento, por parte da grande maioria desses trabalhadores, com as opções de colaboração de classe mantidas pelos aparelhos burocráticos.

É interessante assinalar que a redução simplista da estratégia ou pelo menos exercer. a partir das bases, pressão tal que os aparelhos teriam de pagar um alto preço por não aceitarem o caminho de unificação das forças proletárias e elevação máxima da consciência de classe à política da frente única dos partidos socialista e comunista tem paralelo frequente na ilusão espontaneísta de que a formação real dessas frentes únicas é, por si só, suficiente para levar os trabalhadores a romper com os reformistas, em virtude da amplitude das lutas unificadas que resultariam. Ainda mais ilusória e espontaneísta é a noção de que a experiência de um

“governo sem ministros capitalistas" seria suficiente para abrir caminho a um rompimento das massas trabalhadoras com o reformismo e à formação de um autêntico ''governo dos trabalhadores'' anticapitalista.

A experiência da história mostra que essas noções são falsas. Basta lembrar, por exemplo, que depois de nada menos de seis governos trabalhistas "puros" na Grã-Bretanha - e com isso quero dizer governos que não contavam com ministros burgueses - a máquina reformista continua mantendo seu controle sobre a maioria da classe trabalhadora, embora tal

máquina esteja integrada ao Estado burguês e à sociedade burguesa mais estreitamente do que nunca, e embora defenda e mantenha uma política de colaboração cada vez mais íntima com o grande capital.

A tática da frente única só serve à estratégia de unificação do proletariado e elevação de sua consciência se várias condições forem adequadamente atendidas.

Primeiro, as propostas de frente única dirigidas aos partidos socialista e comunista devem centralizar-se nas questões mais prementes da luta de classes e devem concítar as lideranças desses partidos a se unirem para lutar por objetivos específicos, que articulem os interesses dos trabalhadores. Devem, portanto, conter um aspecto programático - sem o qual poderiam

até mesmo (em condições revolucionárias) facilitar as operações contra a classe operária.

Segundo, essas propostas devem ser formuladas de maneira a serem dignas de crédito pelas grandes massas, em momentos nos quais parece possível implemente-las e nas formas que levam na devida conta o nível de consciência dos trabalhadores que ainda seguem esses partidos. Em outras palavras, uma das funções essenciais dessas propostas é provocar rea/mente a ação comum, ou pelo menos exercer, a partir das bases, pressão tal que os aparelhos teriam de pagar um alto preço por não aceitarem o caminho da ação unificada.

Terceiro, seja através da realização real da frente única (variante que é, de longe, a preferível) ou através da pressão das bases em favor da frente, essas propostas devem provocar um processo de mobilização, luta e, em certo ponto, auto-organização das massas, seja pela ampliação da própria frente ou através da luta por ela. Tal processo que se relacionou com o crescente papel do partido revolucionário, acentua a força objetiva do proletariado, aumenta sua confiança em si, eleva seu nível de consciência, leva segmentos maciços da classe operária a romper com a ideologia e estratégia reformista e cultiva a capacidade dos trabalhadores de irem além do mecanismo burocrático em ação. 

Quarto, para facilitar todo esse processo, o partido revolucionário deve relacionar essas propostas de frente única com advertência aos trabalhadores sobre a verdadeira natureza e objetivos das lideranças do partido socialista e comunista. Não deve haver ilusões de que o caráter desses partidos possa ser modificado pela frente única: não se deve confiar em que essas lideranças (ou um governo por elas composto) implementem os objetivos da frente única e defendam os interesses do proletariado. A demanda de uma frente única deve, portanto, ser acompanhada de iniciativas dos próprios trabalhadores para resolver seus problemas através de sua própria mobilização, sua própria luta, e sua própria organização na mais ampla escala possível. A frente única deve facilitar e estimular esses processos e não pode se colocar no lugar deles.