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Fabio Barbosa dos Santos: América Latina 2021

27 de dezembro de 2021

Fabio Luis Barbosa dos Santos, Correio da Cidadania, 23 de dezembro de 2021

1. Os governos responderam de forma distinta às tensões acirradas pela pandemia. E também as populações. Na América do Sul, rebeliões eclodiram no Paraguai e na Colômbia, enquanto no Peru as ruas reagiram a mais um impeachment ilegítimo, derrubando um presidente. No Chile, a peste foi insuficiente para desmobilizar a população e os desdobramentos eleitorais da rebelião destampada em outubro de 2019 ganharam, inicialmente, os contornos de um protesto, sob outra forma.

2. Os fluxos da rebeldia durante a pandemia evidenciam uma relação antitética entre progressismo e rebelião: onde o progressismo está mais vivo como forma política, mais velas ainda são acesas no altar eleitoral, e menos chances há de as ruas destamparem. Mais do que uma esperança política, o progressismo se converteu em uma política da espera.

3. Do ponto de vista da ordem, Chile, Peru e Colômbia vivem, em um momento tardio, o desgaste das formas políticas associadas ao neoliberalismo. Formas que em outros casos foram reconstituídas pelo progressismo – como no México. Nesses países que ficaram fora da onda, as rebeliões produzem uma crise de legitimidade comparável à que desembocou no progressismo, e as formas de encaminhamento desta crise tendem a mimetizá-las: entre eleições e Constituições, é possível que o alcance da mudança se limite a um reordenamento político e institucional.

4. Está claro que a demanda constitucional é justa e legítima nos três países. Mas quando recordamos que Venezuela, Bolívia e Equador também reescreveram constituições no começo do século, é inevitável o sabor amargo da reprise. Nesses países, o quadro institucional foi reordenado para estabelecer as balizas de um novo padrão de dominação ― uma hegemonia progressista, poderíamos dizer.

5. Ou nem isso. No Chile, os “novembristas” que acordaram com Piñera, apostaram que o protesto das ruas ganharia forma eleitoral. Foi uma aposta arriscada, que em um primeiro momento pareceu exitosa. O povo endossou a constituinte, então dominada por candidatos independentes e de esquerda. A direita ficou sem poder de veto e uma mulher mapuche assumiu a presidência. O berço do neoliberalismo prometia a tumba do neoliberalismo.

Nesse contexto, o ex-líder estudantil Gabriel Boric emergiu como uma versão renovada e radical do progressismo. Mas, ao mesmo tempo, ganhou força um desejo de ordem e o pinochetista Jose Antonio Kast venceu o primeiro turno presidencial.

6. O drama chileno merece reflexões profundas, que não cabem aqui: de onde vem a força de uma retórica anticomunista, em um mundo em que o comunismo não existe? Parece que sua eficácia está na produção do conformismo.

Mas que mundo é esse, em que as pessoas preferem o sofrimento conhecido a investir no novo? De onde vem a força do medo e o desejo de ordem? A despeito do seu desenlace, a eleição presidencial chilena nos lembra que as pessoas podem odiar o existente, em nome de algo pior.

7. Boric dificilmente abrirá as alamedas por onde passará o homem livre, como desejou Allende. Mas tampouco se carimbou o fim da história: o futuro chileno não está mais sequestrado pelo passado.

Se o golpe de 73 congelou a revolução na América do Sul, a vitória de Kast congelaria a rebelião.

8. A mudança no continente, se mudança virá, vem de ruas que não foram pavimentadas pelo progressismo, e não mais dos países sob sua gestão ou na expectativa dela, como era o caso há vinte anos. A rebeldia no Chile, na Colômbia e no Peru não cabe em urnas progressistas.

No entanto, esta potência rebelde está em busca de novas linguagens políticas para instituir um mundo diferente. Premida entre o descrédito do socialismo do século 20 e a colonização da subjetividade pelo mundo da mercadoria, a potência criadora das ruas arrisca a se tornar cativa da gramática da ordem, que produz essa rebeldia.

9. As disputas eleitorais no Equador e no Peru em 2021 indicam que o tempo do progressismo está passando, enquanto forma da expectativa de mudança. No Equador, a fissura no progressismo abriu espaço para uma candidatura em defesa da natureza, enquanto no Peru os sentires populares foram cativados por um outsider, deslocando o lugar da esquerda convencional. Esses sinais dos tempos não significam nenhum determinismo, pois há países em que a forma progressista ainda condensa esperanças ― seja porque nunca chegou, como na Colômbia, seja porque nunca termina de partir, como no Brasil.

10.  A candidatura indígena foi denunciada pelo progressismo como um cavalo de Troia da direita e dos Estados Unidos. Nada surpreendente, já que Rafael Correa denunciou o “esquerdismo”, o “ecologismo” e o “indigenismo” como seus piores inimigos. E não foi retórica: Yaku Pérez foi preso seis vezes e na última delas foi chicoteado por um látego com pregos nas pontas. Não é preciso maquinações do imperialismo para entender porque Yaku pregou o voto em branco no segundo turno, quando o correísmo foi derrotado.

11. A violência correísta é sintoma de um fenômeno mais amplo: tendências repressivas na região não se restringem aos países comandados pela direita, mas emergem também no seio do progressismo. O regime mais próximo a uma ditadura dos tempos da Guerra Fria não é a Colômbia de Ivan Duque nem o Brasil de Bolsonaro, mas a Nicarágua de Ortega.

12. Na Venezuela, passados mais de vinte anos de bolivarianismo, constata-se um tecido social esgarçado, em que a corrosão das instituições e a informalização da economia produzem um cotidiano atravessado por corrupção e violência. A militarização do Estado se intensificou, enquanto proliferam poderes paraestatais à moda colombiana, costurando uma economia política da delinquência.

Bolsonaro se elegeu denunciando o risco de que o país virasse uma Venezuela. Parece que acertou o diagnóstico, mas não o caminho.

13. Enquanto isso, Cuba descobre que tem mais em comum com os países da região do que se gostaria. Desde o colapso soviético, a revolução está na defensiva. O «socialismo primitivo»  enfrenta uma equação econômica insolúvel, em um mundo nada socialista e muito primitivo. Como em toda a região, os impasses se agravam e as insatisfações também. Premido entre o instinto do controle e o anseio da mudança, o Estado se revela desconectado da população, para quem o passado é revolucionário, mas é passado.

14. Emilia Viotti dizia que a América Central é a caricatura da América Latina. Ou seja: onde os traços característicos do continente aparecem mais exagerados. Se a dessocialização neoliberal intensifica a violência econômica e política em toda parte, nesta região descobrimos diferentes vias do autoritarismo.

Na Nicarágua, encontramos o progressismo como tirania, apoiando-se cada vez  mais na força bruta e na fraude. Podemos dizer que é um autoritarismo à moda antiga.

Em El Salvador, o «millennial» Nayib Bukele invadiu o congresso escoltado por militares e destituiu a Corte Suprema, enquanto reina nas redes sociais. O «ditador mais cool do mundo mundial» como se autodescreveu, comanda o congresso, instituiu o bitcoin como moeda nacional, goza de altos níveis de aprovação e é emulado na região. O futuro do autoritarismo lhe pertence.

15. Mas talvez a situação mais eloquente para os brasileiros seja Honduras. Este país testemunhou o primeiro golpe jurídico-parlamentar-midiático da região em 2009, contra o liberal Manuel Zelaya. Desde então, o país foi comandado pelo Partido Nacional e, mais especificamente, por Juan Orlando Hernández (JOH). Vínculos crescentes entre narcotráfico, paramilitarismo e diferentes braços do poder estatal deram contornos a um narcoestado. Em 2017, JOH impôs de modo fraudulento a reeleição - que ironicamente tinha servido o pretexto para depor Zelaya. O país que foi o protótipo da «república bananeira» no século 20 derivou para uma narcoditadura.

16. Neste quadro, a pergunta é: como foi possível a eleição de Xiomara Castro, esposa de Zelaya?  Para o campo opositor, só um triunfo incontestável à maneira de AMLO no México impediria uma nova fraude.

Foi a degradação hondurenha que viabilizou alianças com a direita. E o beneplácito dos Estados Unidos, que se vincula ao país pela questão migratória e pelas drogas. Enquanto as caravanas migratórias crescem, o irmão de JOH foi condenado pelos tribunais e numerosos fios soltos vinculam o presidente ao narcotráfico. Estes apoios à direita criaram uma situação na qual o candidato de JOH só poderia se impor pela força, o que as forças armadas não toparam.

17.  À primeira vista, o triunfo da esposa de Zelaya parece uma vingança da história. De fato, a derrota de um regime narcoditatorial merece celebração. No entanto, o país que Castro encontrará é diferente daquele que Zelaya encarou. O narcotráfico, as maras (gangues de rua ligadas ao crime organizado), os militares e os paramilitares já existiam, assim como a corrupção e a violência. Entretanto, estas e outras dimensões da degradação nacional foram aceleradas nestes treze anos, conformando uma simbiose visível no narcoestado.

Em um momento de desprestígio de um regime repressor, que acelerou a produção de migrantes e delinquentes em escala massiva, Xiomara Castro emerge como o oposto da aceleração encarnada por JOH: é a alternativa da contenção, que já estava colocada no governo Zelaya. Mas neste meio tempo a crise se agudizou no país e ao redor: o alcance e os limites da contenção, são outros.

18. Traduzida para o brasileiro: os treze anos de contenção petista não impediu a dessocialização neoliberal, que é o caldo de cultura do bolsonarismo. Por outro lado, a aceleração bolsonarista pode se tornar disfuncional do ponto de vista dos de cima. A aceleração pode demandar contenção.

19. No entanto, não se trata de um movimento pendular. Assim como em Honduras, a degradação é cumulativa: a tendência é formar frentes cada vez mais amplas, para defender cada vez menos direitos.

Enquanto a mera reprodução social produzir medo, ódio e indiferença em escala massiva, os bolsonarismos deste mundo prosperarão. O futuro deste presente não pertence aos médicos da contenção, mas aos monstros da aceleração.

Fabio Luis Barbosa dos Santos é professor da Unifesp e autor com Daniel Feldmann de “O médico e o monstro”. Uma leitura do progressismo e dos seus opostos (Elefante: 2021).