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Francisco Louçã: A globalização acabou, qual é a próxima guerra?

23 de junho de 2022

Quarenta anos depois da sua fulgurante reencarnação moderna, esta globalização acabou. Se a invasão russa da Ucrânia alterou o tabuleiro mundial, a Casa Branca foi a primeira a aperceber-se das novas potencialidades estratégicas.

Francisco Louçã, Esquerda.net, 18 de junho de 2022

A globalização foi o capitalismo feliz desde os anos 1980. Tudo se conjugava perfeitamente: uma liderança empolgante (Reagan e Thatcher; em Portugal, como fez questão de nos lembrar o próprio, foi o tempo de Cavaco Silva), guerras fáceis (as Malvinas) após fracassos monstruosos (o Vietname, depois o Irão e a Nicarágua) e, sobretudo, a grande viragem que foi sinalizada pela queda do Muro de Berlim e pelo fim da URSS. Veio então a expansão do comércio mundial, apoiada em instituições “empoderadas” para promoverem os novos ventos (a OMC, a que a China, transformada num dos grandes parceiros da globalização, aderiria em 2001) e uma vaga de liberalização económica (que deu origem à oligarquia russa com as privatizações de Ieltsin). O mundo foi aplanado pelo sucesso da globalização, que continuou nas décadas seguintes, em particular com o auge da financeirização, vencidas as barreiras herdadas do projeto de Roosevelt para a regulação da banca (Clinton assinou em 1995 a lei que enterrou o New Deal). Ideologicamente não parecia haver contraposição a esta glória, Deng Xiao Ping era um dos seus arautos, triunfava sem contestação a TINA (there is no alternative, que, como noutros temas, Thatcher formulou melhor do que ninguém), a terceira via levou a social-democracia para o redil liberal, com Schroeder, Blair e, mais tarde, com Hollande. Tudo parecia conjugar-se para o que o mais entusiasta veio a chamar “o fim da história”. Não era pouco.

Quarenta anos depois da sua fulgurante reencarnação moderna, esta globalização acabou.

Atacar o menor para ameaçar o maior

Se a invasão russa da Ucrânia alterou o tabuleiro mundial, a Casa Branca foi a primeira a aperceber-se das novas potencialidades estratégicas. É de lembrar que, sob Trump, que alardeava a sua amizade com Putin, foi a tentativa do Presidente de envolver o filho de Biden num processo de corrupção na Ucrânia (ameaçando Zelensky se não obedecesse) que desencadeou um falhado processo de destituição e que, se alguém no Capitólio conhecia estes meandros, era precisamente Joe Biden. Por isso, a nova Administração terá logo compreendido a potencialidade política criada pela jogada de Putin: num ápice, podia repetir-se o desgaste económico que tinha vitimado o regime de Moscovo durante a Guerra Fria, agora escalando o custo da guerra e o isolamento político que ela produz, e ao mesmo tempo reagrupar a NATO, saída da sua humilhação da fuga de Cabul e relançada como o cavaleiro branco do mundo ocidental. Um sucesso espampanante, porventura insuficiente para convencer o eleitorado interno, mas que ficará nos anais como um ponto de inflexão.

A China tem 20 anos de crescimento, multiplicou as exportações para os EUA por 125. O consumo norte-americano depende hoje da indústria chinesa

Este caminho tem, no entanto, um preço, que é o fim da globalização e, em consequência, impõe a partição do mundo em duas esferas de influência, com relações económicas e políticas geridas em modo de crise. Se esta interpretação estratégica estiver certa, o que está em marcha tem como objetivo conduzir a sistemas financeiros separados, a comércio reduzido, a internets distintas e a ameaças militares em crescendo. Elas devem subir de tom, porque o tempo ainda favorece Washington, mas corre contra os seus interesses. Se assim for, o que se vai ouvir são ameaças contra Pequim.

Ameaçar o gigante chinês

A China tem já um PIB em paridades de poder de compra superior ao dos EUA. Mas não em valor absoluto e isso é que fará a diferença (e em PIB per capita, o que pode não ocorrer neste século). É um sinal, sobretudo pelo progresso rápido: a China tem 20 anos de crescimento a uma taxa anual média de 8% e, de 1985 a 2015, multiplicou as exportações para os EUA por 125. O consumo norte-americano depende hoje da indústria chinesa. E Jinping concluiu, como seria de esperar, que esta correnteza lhe permite passar de uma potência regional para uma força mundial. O que significa que sabe que será no braço de ferro com Washington que se disputará esse lugar.

O secretário-geral da NATO tem insistido neste ponto, mesmo que esta advertência se perca no contexto da guerra ucraniana. Assim, nas últimas duas semanas, afirmou duas vezes que a China é o adversário a ter em conta e que o seu apoio à Rússia define o conflito futuro. Na realidade, a China precisa da Rússia em algumas tecnologias e em energia, mas o peso desta relação é pequeno (só vale 2% das exportações chinesas) e, se reafirma a sua aliança, é somente porque a perda estratégica seria maior se concedesse a Biden a supremacia mundial.

Ora, a China, para ser bem sucedida nesta disputa, precisa de tempo. No plano militar, os EUA dominam em alta tecnologia e têm uma força global superior, se bem que mais dispersa (a Marinha chinesa dispõe de mais navios, mas somente de quatro porta-aviões e porta-helicópteros, contra 20 dos EUA), assim como controlam a finança global, o que a UE favoreceu ao entregar-lhes a gestão do sistema Swift. Na aviação, a China depende de russos e ocidentais; nos semicondutores, depende do seu adversário, Taiwan, onde se produzem 90% dos microchips mais avançados (os inferiores a dez nanómetros, ou seja, pelo menos oito mil vezes menores do que a espessura de um cabelo humano). Não pode viver sem essas compras.

Estamos portanto numa corrida contra o tempo, o que os seus adversários sabem melhor do que ninguém. E essa precipitação é o pior conselheiro para os assuntos do mundo.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 9 de junho de 2022