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Fredric Jameson: Benjamin, pensar como um marxista

12 de outubro de 2021

O livro “The Benjamin Files”, de Frederic Jameson, editado pela Verso Books em 2020, oferece um dos exemplos mais convincentes, abrangentes e rigorosos do que significa pensar como um marxista.

Joe Stapleton, Esquerda.net, 2 de outubro de 2021

Nos domínios académicos dos estudos culturais e da teoria crítica, Walter Benjamin (1892-1940) é normalmente lido de uma forma especial: costuma ser mobilizado para criticar as chamadas "grandes narrativas", para nos alertar quanto ao modo como as narrativas do progresso histórico ocultam o lado mais bárbaro da história, lançando o seu olhar severo para os cortes e as quebras que corroem as pretensões de melhoria contínua da sociedade moderna.

A atenção dominante dada a estes temas por Benjamin pode reificar o seu pensamento enquanto crítica intemporal dos projetos políticos e do pensamento histórico enquanto tal. Como resultado, Walter Benjamin é por vezes categorizado como uma espécie de pensador apolítico do início da pós-modernidade, desconfiado face a qualquer projeto totalizador, mesmo o projeto socialista da transformação total da sociedade humana, com o qual esteve na realidade comprometido desde a revolução bolchevique até ao fim da sua vida.

No seu mais recente livro “The Benjamin Files”, o crítico cultural marxista Fredric Jameson tenta trazer Benjamin de volta à consciência política, mostrando a unilateralidade da interpretação anteriormente descrita.

Jameson não é certamente o primeiro escritor a re-politizar Benjamin: a luta pelo legado teórico de Benjamin não é nada de novo. Mas é óbvio que os leitores não esperam encontrar neste livro uma introdução a Walter Benjamin. Quando um teórico da estatura de Fredric Jameson trabalha sobre alguém como Benjamin, será certamente para nos oferecer um novo olhar.

Através de uma série de estudos sobre a obra de Benjamin, desde a “Origem do drama trágico alemão” até aos seus escritos finais sobre história, Fredric Jameson oferece ao leitor um Walter Benjamin para quem responder ao momento político e histórico foi o objetivo principal da sua escrita. Esta perspetiva que coloca a dimensão política em primeiro plano dá uma nova energia à bem conhecida diversidade dos registos teóricos de Benjamin (Jameson chamar-lhes-á "campos linguísticos") - entre eles a teologia, o marxismo, a filosofia e a historiografia.

Essa perspetiva também faz, talvez inevitavelmente, com que Benjamin "fale" na língua de Jameson e aborde as preocupações deste. Mesmo que os estudiosos de Benjamin venham de certeza a questionar alguns aspetos da interpretação de Jameson, os leitores terão facilidade em perdoar-lhe, dadas as revelações produzidas pela leitura de Jameson sobre Benjamin.

Ensaios temáticos relacionados entre si

O livro “The Benjamin Files” está estruturado como uma série de ensaios relativamente autónomos. Alguns são sobre obras específicas de Benjamin, como "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica" e "Rua de Sentido Único". Outros analisam toda uma área da obra de Benjamin através da atenção a uma obra específica – por exemplo, Jameson aborda a crítica literária de Benjamin analisando o seu ensaio sobre Eduard Fuchs.

Mas os ensaios são apenas relativamente autónomos, pois estão relacionados por temas que surgem na obra de Benjamin e que captam o olhar de Jameson. Por exemplo, ao conceito de "similitude", que Benjamin utiliza para elaborar a sua teoria da linguagem, é dado peso político e histórico quando Jameson o vê como substituindo a causalidade histórica na escrita mais tardia de Benjamin.

Do mesmo modo, a ideia de Benjamin de "regressão" cultural e a sua reconciliação com a conceção não progressiva de história de Benjamin é um tema ao longo de todo o livro, com Jameson a lê-lo como "estetização", ou o retirar a dimensão política da arte que Benjamin associa com o fascismo.

A questão do nosso "acesso" a outros momentos e períodos históricos é uma preocupação sempre presente, desde a análise das "mónades" históricas de Benjamin no capítulo quatro, até ao fim do livro, quando as relações de descontinuidade entre o passado e o presente se tornam o fulcro da conceção de história de Benjamin.

Não constitui surpresa que Jameson privilegie esta questão, dada a sua própria preocupação com ela, embora fosse mais correto ver isto como uma questão que Jameson herdou do próprio Benjamin e não como uma transposição das suas próprias preocupações para a obra de Benjamin.

Temas como estes são sustentados por constantes referências a futuras análises ("voltaremos a isto mais tarde ..." etc.) e, de facto, muitos deles encontram uma espécie de "ponto de chegada" no capítulo final sobre história. No entanto, isto não deve sugerir que o livro tem algum tipo de narrativa linear.

Re-politização de Benjamin

Embora seja difícil categorizar Walter Benjamin, isso não impediu que várias pessoas o tentassem. Desde a luta inicial pelo seu legado - era Benjamin um místico judeu ou um marxista heterodoxo? - aos esforços mais recentes para fazer dele um dos primeiros "anti-totalitários" (o que quer que isso signifique) teóricos do pós-modernismo, os estudiosos de Benjamin tendem a ver os seus próprios interesses e compromissos refletidos nele.

Para Jameson, como para qualquer outro marxista, "história" é uma outra palavra para dizer luta de classes e a luta de classes forma literalmente as produções da superestrutura, ao ponto de, através destas produções, podermos apanhar o movimento da própria história.

Isto também se verifica com o livro de Jameson. Mas categorizar Benjamin é falhar o objetivo e Jameson reconhece-o. A coexistência dos diferentes campos linguísticos de Benjamin (por exemplo, a teologia messiânica e o materialismo histórico) permite-lhe "mudar" de um para outro, dependendo da situação política.

O facto de o trabalho de Benjamin ser uma resposta aos movimentos políticos concretos da sua época deveria sintonizar-nos com as exigências da nossa própria situação histórica concreta. Como diz Jameson, aprender a reconhecer no nosso próprio tempo "as forças do comunismo e do fascismo em ação sob a superfície da política mundial" é de facto a chave para encontrar "nova energia nas profecias (de Benjamin)".

Manter o pensamento de Benjamin em movimento, ou manter abertas as linhas de comunicação entre os campos linguísticos, torna-se assim um dos objetivos do livro “The Benjamin Files”, o que faz sentido dado o impulso do projeto historicizante de Jameson.  A "historicização" para Jameson não é uma mera "colocação de uma obra no seu contexto", o que pressupõe uma separação acentuada entre a obra e o seu contexto.

Para Jameson, como para qualquer outro marxista, "história" é uma outra palavra para dizer luta de classes e a luta de classes forma literalmente as produções da superestrutura, ao ponto de, através destas produções, podermos apanhar o movimento da própria história.

Este movimento é sistematicamente obscurecido pela tendência do capitalismo para reificar não apenas as suas relações sociais como um modo de produção mas também as suas formas culturais (e até mesmo os métodos pelos quais estas formas são analisadas). Por outras palavras, as formas culturais são feitas para parecerem "naturais" ou para além da possibilidade de mudança histórica.

Este problema - a forma como as produções culturais sistematicamente revelam e escondem a sua própria natureza como histórica - anima a perspetiva dialética de Jameson. Na obra de Jameson, elementos reificados ou naturalizados da sociedade capitalista podem mais uma vez ser postos em movimento e vistos claramente: não como objetos estáticos a serem interpretados, mas como elementos históricos de um mundo vivo que podem ser alterados.

Para Jameson a história trabalha sobre a produção cultural num duplo sentido, tanto na sua forma como no seu conteúdo, e poucos críticos têm um olhar melhor do que o dele para a interação entre forma e conteúdo numa obra.

Tomemos como exemplo um elemento formal da obra de Benjamin: a sua obsessão em retirar citações de uma obra e colocá-las ao lado de outras de obras diferentes ("Deveria ser desenvolvida uma crítica constituída inteiramente por citações", diz Benjamin).

As citações de Benjamin têm sido frequentemente lidas como uma forma de quebrar um determinado texto enquanto crítica à sua pretensão de totalidade. Esta é, à sua maneira, uma declaração sobre a relação entre forma e conteúdo no trabalho de Benjamin: toma a forma da citação e interpreta-a como o seu próprio conteúdo (um comentário sobre a totalidade enquanto tal).

Fredric Jameson, contudo, tem uma leitura diferente e mais completa da questão formal da citação. Ao trazer à luz os escritos de Benjamin sobre Baudelaire e o materialismo histórico, Jameson mostra como é igualmente importante que a citação forme uma "coisa nova" que "tem uma vida por si própria". Isto, por sua vez, esclarece a ambiguidade ética do ato destrutivo para Benjamin.

Assim, embora seja verdade que "arrancar" uma citação de um texto vicia a presumível totalidade desse texto, isso é feito no decurso da criação de uma nova totalidade, da qual são possíveis novas interpretações. Observações como esta mostram como a atenção prestada à função dos conceitos nos múltiplos campos linguísticos de Benjamin pode produzir novos conhecimentos sobre esses conceitos.

A concepção de História

Um episódio particularmente significativo para o nosso momento atual surge durante uma discussão do ensaio de Walter Benjamin "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica".

Neste ensaio, Benjamin analisa como o que constitui a arte e como a nossa perceção da arte mudam radicalmente com o advento da cultura de massas após a Primeira Guerra Mundial. O que anteriormente tinha tornado a arte reconhecível como tal - a sua singularidade, a sua autenticidade, a sua ligação a algum ritual - dissolve-se com a sua reprodução técnica para um público de massas.

Um dos temas que Jameson escolhe do trabalho de Benjamin durante o período deste ensaio é o modo como os novos movimentos políticos de massas desenvolveram novas formas de ver e pensar adequadas à época.

Neste ponto, duas opções se abrem para a arte, cada uma com uma valência política distinta. Por um lado, a estetização, a "arte pela arte", é uma tentativa de voltar à autenticidade perdida da obra de arte - para Benjamin, isto está alinhado com o fascismo; por outro, a politização, a democratização da arte para a formação de novos hábitos revolucionários apropriados às massas - isto está alinhado com o comunismo.

Um dos temas que Jameson escolhe do trabalho de Benjamin durante o período deste ensaio é o modo como os novos movimentos políticos de massas desenvolveram novas formas de ver e pensar adequadas à época. Estas suscitam conceitos que, nas palavras de Benjamin, "neutralizam" as categorias tradicionais como "criatividade" e "génio", que são mais adequados ao indivíduo - e são mais facilmente manipulados pelo fascismo.

Jameson afirma que, na realidade, "regredimos" no nosso próprio tempo de "um mundo de luta de classes para um mundo de virtude e corrupção, um mundo do século XVIII". Isto é difícil de negar, pois no clima atual nos Estados Unidos nem mesmo o campo político escapou à estetização, tornando-se pouco mais do que marcas pessoais e gestos simbólicos de indivíduos.

Aqui podemos ver como a passagem de Benjamin entre os campos linguísticos da estética (a obra de arte), economia (produção em massa), e política (os dois caminhos para arte no fascismo e no comunismo) tem o efeito de corroer um deles. Como observa Jameson, a economia parece assinalar o fim da arte na política.

No fascinante capítulo final, Jameson aborda as Passagens sobejamente analisadas que compõem as teses de Benjamin "Sobre a conceção de história", escritas no início de 1940, perto do fim da sua vida por suicídio, depois de tentar fugir da ocupação nazi de França.

Para Jameson, as teses constituem um esforço "para separar a historiografia da história", ou as conceções da história do movimento da própria história.

Benjamin é contra qualquer tentativa de impor à totalidade da história uma narrativa progressiva artificial. De acordo com Benjamin, os sociais-democratas alemães impuseram precisamente uma tal narrativa à história. A sua fé inabalável na inevitabilidade do progresso da humanidade em direção ao socialismo fez com que a revolução se desvanecesse cada vez mais na distância ou se neutralizasse completamente como uma tarefa "infinita".

Mas não precisamos de Benjamin para nos convencer dos perigos das narrativas de progresso - nos Estados Unidos estamos mais do que familiarizados com os seus efeitos sedativos. O que é importante é que esta conceção de história como progresso humano - "história universal" - está indissoluvelmente associada a uma certa conceção de tempo como vazio e homogéneo, apenas à espera de ser preenchido cronologicamente com uma coisa atrás da outra.

Uma tal conceção de história universal não tem aquilo a que Benjamin chama um "princípio construtivo". O materialismo histórico, contudo, tem esse princípio, chamado revolução. Este princípio baseia-se num conceito muito diferente de tempo - em vez de tempo vazio e homogéneo, o tempo da história já está cheio com o que muitas vezes é traduzido em Benjamin como "tempo-do-agora" e que Jameson transmite como o "agora do reconhecível"[1].

Este é um tempo passado tornado presente, desbloqueado por uma determinada situação política ou possibilidade revolucionária. Se já não podemos relacionar acontecimentos passados ou períodos históricos com o nosso presente através de uma narrativa ou série de acontecimentos fortuitos contínuos, estes estão agora relacionados através da descontinuidade - ou seja, estão relacionados politicamente.

É a situação política do presente que torna o passado acessível. Como diz Jameson, é da crise atual que o momento passado "retira energia suficiente para ganhar uma nova (e talvez apenas momentânea) vida". O momento presente da luta de classes dá-nos acesso ao passado ao imbuir o passado de uma nova vida.

Uma tarefa atual

Mas como é que este momento passado está relacionado com este momento presente? Agora que o primeiro "ganhou energia com o tempo-do-agora", qual é a sua relação com o segundo?

É aqui que o campo da linguagem teológica se torna necessário tanto para Benjamin como para Jameson. Benjamin utiliza a linguagem do messias e da redenção, enquanto Jameson utiliza a linguagem da alegoria e da realização. O primeiro recorre à tradição messiânica judaica, o segundo à exegese bíblica cristã medieval.

Como observa Jameson, a conceção de história de Benjamin apela à "ação e ativismo, à recriação e realização num plano superior". De facto, esta noção de história exige que sejamos nós próprios a realizá-la.

O resultado é que o passado deixa de ser algo morto, ou um artefacto, ou mesmo um armazém inerte de "lições" históricas. Em vez disso, torna-se uma atividade atual, um acontecimento que voltamos a viver mas de uma nova forma, um projeto incompleto que somos chamados a concluir. A revolução fracassada é meramente incompleta - torna-se uma prefiguração assim que a situação atual exige o seu cumprimento.

Não só o passado é feito presente, como o presente é feito passado. O nosso presente, através do contacto com este momento passado, toma o seu próprio lugar como história. Nós “historicizamo-nos” a nós próprios, tornando-nos conscientes da natureza histórica do presente como uma tarefa a ser completada no tempo.

Como observa Jameson, a conceção de história de Benjamin apela à "ação e ativismo, à recriação e realização num plano superior". De facto, esta noção de história exige que sejamos nós próprios a realizá-la.

Como podemos ver, parar de ler Benjamin na famosa tese IX - onde a história não passa de uma única catástrofe e a própria historiografia pouco mais do que a sua valorização - é perder a força revolucionária do pensamento de Benjamin. No espírito benjaminiano, poderíamos traduzi-lo em linguagem cristã e dizer que é terminar a história na Sexta-feira Santa, o dia da morte de Cristo, e não no Domingo de Páscoa, o dia da ressurreição.

Mas esta forma de ler Benjamim foi exatamente o que levou muitos a considerá-lo como um teórico melancólico do "fim da história" ou, pelo menos, do fim do pensamento histórico. O livro de Jameson é um dos mais poderosos e convincentes para reavivar a centralidade da dimensão política no pensamento de Benjamin o que, por seu turno, faz com que a história ganhe vida novamente.

Isto não é fazer de Benjamin uma espécie de "otimista" – as provocadoras considerações finais de Jameson sobre esperança e redenção tornam essa leitura impossível. É simplesmente compreender que, para Benjamin, a luta de classes continua: estamos nela, e ainda não acabou.

Este livro provavelmente não integrará as listas de leitura de muitos grupos de estudo fora do círculo universitário. Tal como Benjamin, Jameson usa a sua própria quota-parte de campos linguísticos - marxismo, psicanálise, filosofia continental, linguística, etc. - e o desconhecimento destes pode por vezes tornar o seu trabalho de difícil compreensão.

Fredric Jameson não apresenta muitas propostas políticas concretas - no final dos seus livros não encontramos qualquer apelo a uma organização independente e de massas da classe trabalhadora - mas também não é essa a sua função.

Continuo a acreditar que Jameson deveria ser lido não apenas pelos académicos mas também pelos militantes. Em termos simples, o trabalho de Jameson oferece um dos exemplos mais convincentes, abrangentes e rigorosos do que significa pensar como um marxista. O livro “The Benjamin Files” é exigente mas a sua leitura vale bem o esforço.

Publicado na revista Against the Current No. 214, setembro/outubro 2021. Traduzido por Paulo Ferreira para o esquerda.net