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Governo chinês quer frear as big techs

24 de setembro de 2021

Rui Maciel, Canaltech, 16 de setembro de 2021

Você pode acusar o governo chinês de um monte de coisas. Menos de falta de coerência. Isso porque tudo que ameace minimamente sua autoridade é colocado sob escrutínio, incluindo empresas gigantescas locais que ele mesma ajudou a crescer. Por anos, o poder público do país asiático — comandado pelo Partido Comunista (PC) — despejou centenas de bilhões de dólares em incentivos para startups e outras companhias de tecnologia, com o objetivo de fomentar um gigantesco ecossistema de inovação local, bem como criar gigantes do setor para disputar mercado, principalmente, com os EUA.

E a estratégia deu certo. Além de uma infinidade de startups, a China conta com algumas das maiores big techs do mundo, como Tencent, Alibaba, Baidu e a DiDi Chuxing (controladora da 99 aqui no Brasil). O problema é que muitas dessas companhias ficaram muito maior do que o desejado — pelo menos visão do governo chinês. Isso poderia pôr em risco o rígido controle que o "Partidão" tem sobre o país. Logo, a hora é de puxar o freio dessas empresas, e de forma nada sutil.

Alibaba puxou a "ala da regulação"

Uma das primeiras big techs a ter o freio de mão puxado foi a Alibaba. Tudo devido a um "sincericídio" de seu fundador e CEO, Jack Ma. Em outubro do ano passado, durante um fórum realizado em Xangai, ele atacou o sistema regulatório da China, em um discurso que o colocou em rota de colisão com autoridades do país. Na época, Ma afirmou "que o sistema regulatório chinês estava sufocando a inovação e devia ser reformado para fomentar o crescimento". Ma disse ainda que os bancos chineses operavam com uma mentalidade de “casa de penhores”. O detalhe: essas palavras foram ditas diante do establishment financeiro, regulatório e político do país asiático. Grande erro.

Por quê? Porque quem conhece o mínimo do modus operandi do governo chinês sabe que eles são bem generosos na hora de investir, mas não são exatamente receptivos com críticas. E isso vale até mesmo para magnatas do porte de Jack Ma.

A partir do episódio, o império digital de Ma sofreu uma ofensiva regulatória tão pesada que fez com que o executivo sumisse da vista do público por meses. O governo chinês se concentrou nos negócios de Ma, incluindo o lançamento de uma investigação antitruste no Alibaba. Além disso, ordenaram que a Ant Group — a gigantesca fintech do grupo — tornasse seus empréstimos e outros negócios de financiamento ao consumidor mais transparentes e exigiram a criação de uma holding à parte para atender às exigências de abertura capital. Para completar, foram compilados relatórios, incluindo um sobre como a fintech havia usado produtos financeiros digitais como o Huabei, um serviço de cartão de crédito virtual, para incentivar os pobres e os jovens a acumularem dívidas.

Resultado: o Ant Group precisou suspender seu IPO, avaliado em US$ 37 bilhões e considerado o maior da história, dois dias antes da ansiosamente aguardada estreia nos mercados de Xangai e Hong Kong e Jack Ma deixou de adicionar, pelo menos, US$ 27 bilhões ao seu patrimônio líquido.

Para acalmar o governo chinês, bem como os acionistas, a Alibaba criou um plano de reestruturação que coloca todos os negócios da Ant Group em uma mesma holding, incluindo o setor de processamento de pagamentos e ofertas de tecnologia em áreas como blockchain e entrega de alimentos.

Leis que atingem em cheio as big techs chinesas

No dia 1º de setembro, o governo apertou ainda mais o cerco em cima das big techs do país. Foi nessa data que entrou em vigor a chamada Lei sobre a Segurança de Dados. Em teoria, ela cria uma série de regras rígidas para que os dados sigilosos do país mantenham-se protegidos. Mas, na prática, ela atinge em cheio empresas como a Tencent, a Didi e, de novo, o Alibaba.

A nova regulamentação cria medidas rígidas, quase draconianas, no que tange ao armazenamento e a utilização do fluxo de dados que criados a partir da China. Isso inclui, por exemplo, a saída dessas informações do país, que ficam totalmente restritas a território chinês. Além disso, ela define quais informações dizem respeito à segurança nacional — e isso vale também para o exterior, quando o governo considera haver risco para o país ou seus cidadãos.

Outro ponto é que tanto cidadãos, quanto organizações da China também estão impedidos de fornecer dados para autoridades estrangeiras, incluindo de segurança pública, sem o aval do governo.

A nova legislação prevê multas de até 10 milhões de yuans (cerca de R$ 8,2 milhões) às empresas que incorrem em crimes como vazamento de dados ou se falhar na identificação de compradores e vendedores.

Criada em 2017, as leis de cibersegurança chinesas também passaram por uma revisão. Agora, as empresas do país devem se adaptar a uma lista com dezenas de novas exigências e que abrangem não apenas a proteção de dados, mas também práticas antitruste e publicidade. Além disso, a supervisão dessa lei passa a ser supervisionada pela Autoridade da Segurança Pública de Pequim.

Leis acertam as big techs onde mais dói: no bolso

As novas leis que regulam o ambiente digital na China não apenas mostra como o governo do país quer frear o crescimento de poder descontrolado (bem como o risco de monopólios) das big techs locais, como também acerta onde mais dói nessas empresas: o bolso.

A restrição à saída de dados das empresas chinesas do país, por exemplo, trava a listagem dessas companhias em bolsas de valores no exterior. Em agosto último, a Autoridade de Segurança Cibernética da China apresentou (CAC) impôs diretrizes sobre o tratamento de dados sensíveis incluídos nos prospectos de IPOs das empresas chinesas. De forma prática, é essa entidade que decidirá quais informações entrarão nesses prospectos e quais ficarão de fora. Ela também criou regras sobre quais dados financeiros poderão ser divulgados aos investidores

Entre outras medidas, o governo chinês passou também a impor sanções às empresas paralelas criadas pelas big techs locais para conseguir entrar nas bolsas de outros países. Essa era uma prática usada para driblar as restrições que impediam a entrada de investidores estrangeiras em empresas consideradas sensíveis à segurança nacional. Agora, o escrutínio sobre esse método será bem maior.

Por fim, no início de novembro deste ano, a Lei de Segurança de Dados Pessoais também entra em vigor na China e vai apertar de forma feroz o modo como as big techs do país manuseiam os dados de seus usuários e clientes. Isso inclui até mesmo informações financeiras e transferências de dados entre China continental e Hong Kong.

Com essa série de leis mais restritivas, as ações das gigantes na Bolsa passaram a sofrer, principalmente no exterior. Tencent e Alibaba viram seus papeis desvalorizarem mais de 30% na Nasdaq (bolsa das empresas de TI nos EUA) nos últimos seis meses. O mesmo aconteceu com a Didi (35%) e o Baidu (45%). A NetEase, cuja principal fonte de receita está no mercado de games também sofreu perdas recordes. Isso porque o governo chinês agora está regulando os dias e horários que os menores de 18 anos podem jogar videogames. Os jovens e crianças gamers só podem aproveitar os jogos entre 20h e 21h, às sextas-feiras, fins de semana e feriados.

Em resumo: o capitalismo da China funciona. Mas não pode "funcionar demais". O governo do país está aí para provar.

Com informações de South China Morning Post, The Wall Street Journal, Exame Invest