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Governo de coalizão sob fogo da extrema direita

 

11 de novembro de 2022

Eduardo D'Albergaria, membro da Coordenação Nacional da Insurgência. 11 de novembro de 2022.

No auge da pandemia, quando o apoio de Bolsonaro oscilava em torno de 25%, todos se perguntavam qual seria o tamanho do núcleo duro bolsonarista e quantos seriam cidadãos desavisados.

Muitos apostavam que os mais radicalizados não passariam dos 10%, 15%. Mas a realidade dava algumas pistas. Afinal, esse eleitorado mantinha apoio ao Governo mesmo com a gestão desastrosa da pandemia - que produziu a segunda maior proporção de mortos em todas as Américas. Mantinha apoio mesmo com a ruptura e as denúncias de Moro - até então uma figura com apelo popular maior que Bolsonaro. 

O resultado de 2022 já não deixa mais dúvida: a hegemonia da extrema direita é tão ampla que foi capaz de fagocitar os espaços da direita liberal. O PSDB reduziu ainda mais sua bancada, perdendo São Paulo - seu centro político por décadas; o partido Novo não foi capaz de superar a cláusula de barreira; os parlamentares que romperam com Bolsonaro não se reelegeram e Simone Tebet - depois de várias candidaturas desistentes nesse campo - teve apenas 4% dos votos 

A extrema direita demonstrou capacidade de mobilização social - em especial no 7 de setembro e após o 2o turno - e que seu ecossistema de desinformação segue atuante nas redes, mesmo com todas as tentativas do STF de frear essa máquina.

Era de se esperar que num contexto econômico adverso, depois dos desgastes da gestão, a extrema direita retrocederia. Mas não só manteve seus resultados de 2018 na Câmara, como também ampliou sua representação no Senado. 

A aposta do PT, animada pela mídia empresarial, era de que com apoios da direita liberal, a esquerda conseguiria suplantar o bolsonarismo. E assim se operou uma ampla convergência com Alckmin, a ala histórica do PSDB, os criadores do Plano Real e Simone Tebet.

É provável que esses apoios tenham feito a diferença. Talvez até expliquem os “apertados” 2,1 milhão de votos da dianteira de Lula no 2o turno. Mas não foi essa a base de sustentação que reconduziu Lula à presidência da república 

Todos os institutos de pesquisas indicaram que Lula perdeu nas classes médias (de 2 a 10 SM) e entre os mais ricos (acima de 10SM), onde se esperava viriam os votos de opinião a favor da democracia.
 

Já a elite econômica se dividiu, uma parte apoiou Bolsonaro (em especial o agronegócio) e outra apoiou Lula (mídia empresarial e setores do mercado, em especial no 2o turno).

Ao longo dos 4 anos de governo, não foram poucas as demonstrações do bolsonarismo de que eles têm um projeto autoritário de poder. O mesmo se repetiu durante a campanha, com o aparelhamento da PRF e Ministério da Defesa para obstruir o processo democrático; os tiros de Roberto Jefferson e Zambelli; o uso eleitoral da religião sob bases fundamentalistas; os assédios nos locais de trabalho; o uso desavergonhado da máquina pública; as notícias falsas que foram dissecadas pela mídia em praça pública, como o atentado fake de Paraisópolis e a falsa supressão de programas de rádio.

Ainda assim, a maioria dos eleitores de Tebet e Ciro optaram no segundo turno por Bolsonaro (3 milhões foram para Lula e 7 milhões para Bolsonaro) 

Quem deu sustentação para a eleição de Lula foram os eleitores de até 2 SM (em especial as mulheres, negras/os e nordestinas/os). Mesmo assediados no local de trabalho e nas igrejas, mesmo com a ampla distribuição de benefícios, esse eleitorado, embalado por memórias de um passado petista e pressionado pela carestia, manteve seu voto no ex-presidente Lula.
 

Ainda que Bolsonaro tenha perdido, a extrema direita conseguiu algumas vitórias ideológicas:

  • Sua campanha foi capaz de convencer os setores médios e os mais ricos de que a economia estaria se recuperando. A campanha de Lula não conseguiu desmontar essa ilusão - mesmo que a maquiagem eleitoral tenha começado a mostrar furos, como a queda do PIB e o aumento da gasolina e inflação. O campo progressista segue com dificuldade de dialogar com novas formas de trabalho nas classes médias precarizadas, como os trabalhadores de aplicativos, MEI e temporários.
  • O populismo penal continua sendo o principal motor da extrema direita. Bolsonaro buscou no segundo turno ampliar sua votação a partir da defesa da redução da maioridade penal. Fez até mesmo o campo progressista recuar de sua defesa de mudanças na política de drogas. Mesmo posições em que os conservadores são minoria, como o uso medicinal da Cannabis, foram escanteadas para não arriscar apoio eleitoral.
  • Sob Bolsonaro, se consolidou o imaginário popular de que o que agro seria o “motor” da economia brasileira. A campanha de Lula não foi capaz de demonstrar as diferenças entre a agricultura familiar e o latifúndio - palavra que até desapareceu da gramática política - no que diz respeito ao impacto ambiental, à finalidade da produção ou mesmo aos investimentos do poder público.
  • Os conservadores ganharam novamente o debate sobre o aborto, acuando a candidatura progressista a responder sobre o tema. A campanha de Lula poderia ter questionado as tentativas de impedir que mulheres violentadas façam aborto - direito majoritariamente apoiado pelos brasileiros, mas atacado pela extrema direita.
  • O bolsonarismo conseguiu mais uma vez pautar a forma como se faz o embate nas redes. Não só na agenda mas também nos códigos e linguagens.

Por outro lado, os progressistas conseguiram vitórias importantes:

  • A campanha de Lula demonstrou aos mais pobres que Bolsonaro representa os interesses dos mais ricos (em especial no debate sobre inflação, salário mínimo e aposentadorias).
  • Os anos de Bolsonaro na presidência sacramentaram as políticas de transferência de renda. Até mesmo o campo político que era mais crítico a essas transferências passou a distribuir benefícios amplamente durante a pandemia e agora no período eleitoral.
  • O negacionismo - ainda que tenha elegido parlamentares - foi derrotado nas disputas majoritárias, incluindo o Rio Grande do Sul de Onyx Lorenzoni.
  • A defesa de maior diversidade na representação política segue ganhando espaço. A esquerda elegeu uma bancada de 16 mulheres jovens - 7 delas negras, 2 indígenas e 2 mulheres trans. Candidatos majoritários abertamente LGBTs foram eleitos. Até mesmo entre os bolsonaristas há iniciativas de eleger parlamentares que não sejam homens brancos, para dar resposta à essa pressão por diversidade na representação.
  • A campanha conseguiu desgastar o orçamento secreto, obrigando Bolsonaro a mentir num primeiro momento - buscando se isentar - e depois defender o fim do mecanismo.
  • A esquerda tem uma posição histórica em favor do financiamento público de campanha. Esse mecanismo vai se estabilizando, com todos os campos políticos fazendo seu uso - o NOVO, quem mais defendia que campanhas não tivessem recursos públicos, corre risco de desaparecer.
  • Com os desatinos de Roberto Jefferson e Carla Zambelli, abriu-se um cenário mais favorável para o debate sobre as armas no Brasil.
  • Ainda que as Fakenews tenham retornado ao centro da disputa, dessa vez se avançou na consciência dos seus danos e da necessidade de ação do poder público.
  • Também avançou o consenso em torno da urgência climática: a extrema direita se eximiu de questionar os riscos do aquecimento global.
  • O teto de gastos ao ser furado tantas vezes pela própria extrema direita, abriu espaços para um questionamento mais profundo das políticas de austeridade, ainda que a capacidade do mercado financeiro em impactar a economia real ainda seja ampla.

Essas disputas ideológicas, entrecortadas pelo uso do orçamento secreto e o fundo eleitoral bilionário, produziram uma configuração do Congresso que é, em linhas gerais, de ¼ de progressistas, ¼ de bolsonaristas e ½ do Centrão

Uma correlação que permite uma reedição do presidencialismo de coalizão experienciado nos 2 governos Lula anteriores.

Há espaço inclusive para pressionar a extrema direita a votar com o Governo, quando envolverem pautas com apelo popular (como o próprio Bolsonaro fez com a esquerda ao aprovar a redução dos combustíveis, por exemplo) 

A mídia empresarial já retomou sua pregação de que o caminho do sucesso para o governo Lula é rumar ao centro ideológico - em que as demandas sociais estão subalternas ao rigor fiscal, onde não há qualquer transformação estrutural rumo a uma sociedade mais igualitária. Ou seja, adotar as posições daqueles que foram mais derrotados nas urnas.

Para uma governabilidade efetiva é necessário consolidar o apoio entre os eleitores mais pobres e virar as classes médias mais precarizadas. Para isso, o Governo precisará implementar políticas públicas que elevem a renda e a qualidade de vida desses setores sociais, o que pode, em muitos momentos, entrar em conflito com setores liberais ou empresariais que darão sustentação ao governo de coalizão.

O desafio é arrastar o “centro” para apoiar pautas populares, como a reforma tributária progressiva e a ampliação de direitos dos entregadores de aplicativo.

Nesse sentido, foi importante que a primeira medida do futuro governo seja uma PEC que amplie recursos para os programas sociais e enfrente a lógica do Teto de Gastos. E muito interessante que Alckmin tenha sido o porta voz dessa política.

Mas essa concessão que os liberais e o mercado financeiro estão dando agora é porque sabem que o país precisa ser estabilizado. Que o resultado mostrou um Brasil dividido e um novo governo eleito por uma base popular com imensas expectativas econômicas (sintetizadas no bordão “ter uma picanha no final de semana”). Se esses setores sociais se frustrarem, isso poderá abrir uma enorme convulsão social que impulsionará o retorno da extrema direita, dessa vez sob bases desavergonhadamente autoritárias.

As votações expressivas dos candidatos da extrema direita assustaram esses liberais, isso abre espaços para o Governo arrancar novas e mais profundas concessões, como a reforma tributária progressiva e a seguridade social para trabalhadores de aplicativo.

Do ponto de vista internacional a disputa geopolítica com o trumpismo e a extrema direita na Europa, também abre espaço para cooperações econômicas mais vantajosas - a começar pelos financiamentos para enfrentar os desafios climáticos.

Se o próximo governo conseguir reproduzir o feito dos primeiros governos Lula, e consolidar um apoio popular robusto, a estridência da extrema direita tende a arrefecer.

Mas o cenário internacional traz muitas incertezas para nossa economia. E com tanta instabilidade, com uma extrema direita beligerante, não haverá espaço para uma oposição de esquerda ao governo, como na origem do PSOL.

Então qual deve ser o papel da esquerda renovada frente a um governo de coalizão acossado pela extrema direita?

Embora o campo progressista não tenha alterado seu peso no parlamento, - comparado à 2018 - aproximadamente 125 deputados, houve uma importante mudança de composição interna. PSB e PDT perderam espaço. Já a ala do PT mais ligada à institucionalidade (em especial no nordeste) se reelegeu, e o partido viu ampliar a participação de parlamentares de opinião (em especial no Sul e Sudeste), numa perspectiva da diversidade, com a eleição de mulheres, jovens, negres, LGBTs.

Ainda que esses perfis tenham aparecido também em outros partidos do campo progressista, sem dúvida, quem se consolida como pólo mais dinâmico dessa esquerda renovada é o PSOL.

Isso torna ainda mais desafiador pensar a posição do partido frente a um governo de coalizão. Uma parte expressiva do eleitorado do PSOL não votou no partido por sua posição mais crítica em relação ao frente amplismo (muitos ficaram até bastante entusiasmados com os apoios de Tebet e Alckmin), mas porque o partido foi quem melhor encarnou a renovação da política.

Uma perspectiva adesista, poderia até fazer sentido nesse primeiro momento de governo, que precisa se estabilizar. Mas uma entrada no Executivo provocaria imensas pressões, já que a bancada no parlamento passará a ser constrangida a votar com o governo para resguardar os quadros partidários incorporados ao aparato governamental. E num governo de coalizão, sob intensa pressão da direita, muitas vezes o PSOL precisará se diferenciar de forma crítica.

E a participação no governo influenciaria também no perfil dos futuros parlamentares eleitos pelo partido. Pois aqueles com maior influência no aparato estatal teriam melhores condições de se eleger, em detrimento dos quadros mais ligados às causas difusas.

A esquerda revolucionária já teve a experiência de participar de um governo de composição nacional durante os primeiros governos Lula. O próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário foi entregue nas mãos da então seção da IV Internacional no Brasil, para que, no final, a reforma agrária não só tenha sido deixada para trás, como até mesmo tenha desaparecido da agenda nacional.

Alguns quadros do PSOL devem ser convidados a integrar o Governo. Nada impede que pessoas estratégicas para a implementação de políticas públicas específicas peçam afastamento do partido.

A decisão de não participar do Executivo resguarda a independência do PSOL, mas não significa abrir mão da disputa de rumos do governo. Pois o partido priorizará a disputa em outros espaços: no parlamento, nos movimentos, mas também nos conselhos que discutem as políticas públicas (inclusive o “conselhão” possivelmente reeditado). Cobrar a implementação do orçamento participativo e mobilizar nossa base social a fazer parte dos processos de definição.

Num primeiro momento, precisaremos compor a maioria no Congresso, buscando tensionar à esquerda as posições da Base, votando segundo a orientação governista, sempre que possível.

Mais do que uma posição de “independência”, nós precisamos nos apresentar como “base popular” do futuro governo. Aqueles que, a partir da organização dos de baixo e de um ecossistema nas redes, sejam capazes de pressionar a institucionalidade de fora, cobrando a implementação do programa eleito pelas urnas.

Uma releitura da “teoria da pinça”, em que o partido para manter sua capacidade de articular seus dois braços - da institucionalidade e das lutas populares - abre mão da participação dos cargos no executivo.

O PSOL só será capaz de incidir nos rumos do país se for capaz de se movimentar de forma unitária deslocando um campo social que vá até mesmo além da sua base social, incorporando os setores mais renovados do campo progressista.

Precisamos acumular massa crítica à estratégia de conciliação que retomou legitimidade com a ascensão da extrema direita. E enfrentar a crise de hegemonia da classe trabalhadora, que não tem encontrado instrumentos para vocalizar seus interesses.

O PSOL não pode ser apenas uma plataforma de lançamento de candidaturas progressistas, o partido tem a responsabilidade histórica de se apresentar como alternativa de poder.

Para isso, precisará se dedicar a algumas tarefas:

  • O PSOL já tem peso similar ao PT nos 3 principais pólos urbanos brasileiros e importantes bastiões eleitorais da extrema direita: Rio, Brasília e São Paulo. O partido passa a ter de condições de disputar territórios periféricos com as igrejas fundamentalistas, a partir de uma miríade de iniciativas na área da cultura, educação, direitos humanos, segurança alimentar, religiosidade, esportes. Mas para isso é necessário garantir a autonomia dos movimentos sociais e uma integração maior das iniciativas esparsas realizadas pelas correntes internas. Além de investir na nacionalização do partido.
  • Novamente o campo progressista foi derrotado pela extrema direita na disputa de visibilidade nas redes, ficando a cargo de apoiadores (como Felipe Neto, Janones e Choquei) a articulação do nosso campo. Hoje o PSOL dispõe de centenas de profissionalizados na área de comunicação atuando com foco na visibilidade dos nossos mandatos. É necessário orientar essa enorme estrutura para disputar as redes com a extrema direita - gestando uma comunicação não violenta que tenha capacidade de engajamento e politização.
  • Há ainda a necessidade de impulsionar a formação política, via Fundação, dessa nova geração de negras, indígenas e juventudes periféricas que se referenciam no partido.
  • O PSOL precisa realizar um balanço profundo do uso de vultuosos recursos públicos nas eleições. Em que medida essa estrutura impulsionou ou restringiu o caráter militante e pedagógico de nossas campanhas? E refletir também se a pulverização de recursos em candidaturas que disputam territórios entre si é a melhor forma de se chegar a novos setores sociais.
  • O enfrentamento da extrema direita se dará também na construção de candidaturas unitárias da esquerda para as prefeituras em 2024. Ou eventualmente até mais amplas, a partir de um debate, quando houver risco de vitória da extrema direita.
  • Lutar contra qualquer proposta de anistia da extrema direita. Os crimes praticados durante o processo eleitoral e a pandemia precisam ser investigados e punidos. E o clã presidencial precisará responder pelos desvios de recursos públicos nos mandatos. É essa desmoralização no campo da ética que poderá arrefecer a base radicalizada.
  • a superação da extrema direita demandará também uma luta incisiva em defesa do sistema público de saúde mental. O bolsonarismo é também expressão do nosso adoecimento coletivo.

Os primeiros dias pós-eleições, com bloqueio de estradas, já demonstram que a extrema direita não desaparecerá do cenário político. Sua superação demandará uma longa jornada de desradicalização de amplos setores sociais.