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Husson: Biden, milagre ou miragem?

2 de agosto de 2021

A diferença entre os anúncios e a implementação dos planos de recuperação, o privilégio monetário norte-americano em que se apoiam, o seu “keyenianismo imperialista” e os entraves republicanos e patronais são abordados por Michel Husson no último artigo que publicou antes da sua morte.

Michel Husson, Esquerda.net, 31 de julho de 2021

A “retoma keynesiana fenomenal” [1] dos Estados Unidos impressiona. Há de facto três planos Biden que representam uma soma total de seis biliões de dólares, ou seja mais de um quarto do PIB atual. Mas esta apresentação pode ser enganadora e tem de ser analisada com mais detalhe. O primeiro plano (American Rescue Plan) é um plano de emergência, dito de outra forma uma resposta imediata à crise pandémica. O seu montante é de 1,9 biliões de dólares e já está a ser aplicado. A sua medida mais significativa é a distribuição de cheques de 1.400 dólares, uma espécie de “dinheiro lançado de helicóptero”. É garantidamente muito. Mais do que os planos análogos na Europa.

Para além da amplitude da crise, dois fatores explicam a viragem para um plano tão massivo. Há, em primeiro lugar, a lembrança da crise anterior. Como explica Chuck Schumer, o chefe da maioria democrata no Senado: “Em 2009 e 2010, tentámos trabalhar com os Republicanos, o programa final acabou por ficar sub-dimensionado e a recessão durou cinco anos: as pessoas ficaram ressentidas e perdemos as eleições” [2]. De seguida, Donald Trump, com as suas descidas de impostos, desafiou o dogma orçamental, ainda que o plano de apoio seja exatamente o oposto da política de Trump.as despesas são, com efeito, claramente dirigidas para os menos favorecidos. O dinheiro, distribuído sob a forma de cheque, de subsídios de desemprego e de prestações para as famílias, deverá aumentar os rendimentos dos 60% norte-americanos menos ricos em média em 11% e em 33% para os mais pobres [3]. O objetivo é evidentemente voltar a ganhar uma parte do eleitorado de Trump.

A questão é saber se esta viragem será prolongada. A resposta é aparentemente positiva, uma vez que Biden apresentou dois planos ambiciosos de médio prazo no seu primeiro discurso no Congresso [4]. Há em primeiro lugar um “plano de emprego” (American Jobs Plan) dedicado essencialmente às infraestruturas: representa 2,3 biliões de dólares. Depois há o “plano das famílias” (American Families Plan) que visa melhorar o destino dos mais desfavorecidos, nomeadamente em matéria de educação, com uma soma total de 1,9 biliões de dólares. O exame mais detalhado destes planos [5] permite compreender a sua lógica ainda que, como veremos, esta esteja longe de ser definitiva.

American Jobs Plan

O “plano de emprego” [6] visa antes de mais renovar infraestruturas: estradas, pontes, transportes públicos, água, eletricidade; inclui ainda uma componente social com mais de 300 mil milhões de dólares para alojamento social (affordable housing) e para escolas públicas. O objetivo implícito é de reestabelecer ou consolidar a supremacia tecnológica dos Estados Unidos (nomeadamente face à China) através de um apoio à economia doméstica e à investigação. Isto é muito claro no discurso de Biden: trata-se de criar “milhões de bons empregos”, de “reconstruir a infraestrutura do nosso país” mas também de “permitir aos Estados Unidos serem mais competitivos que a China” (out-compete) [7].

O nome do plano (Jobs plan) é um pouco usurpado: não contém quase nenhuma medida destinada a criar diretamente empregos numa lógica do Estado empregador como propõe a esquerda do Partido Democrata. As criações de emprego que estão previstas são apenas o sub-produto do relançamento da atividade económica.

Um Green New Deal em saldo

A luta contra o aquecimento global está presente, sem ser central. A prioridade é dada aos veículos elétrico (174 mil milhões) mas apenas 46 mil milhões são consagrados a energias limpas: está-se muito longe do Green New Deal defendido pela ala esquerda do Partido Democrata. Muitos dos críticos denunciam o plano Biden como “terrivelmente insuficiente” em matéria de luta contra o aquecimento climático. Os gastos que são consagrados a isto são notoriamente inferiores aos 10.000 mil milhões de dólares previstos para projetos do Green New Deal. Para Brett Hartl, do Center for Biological Diversity, o plano de infraestrutura favorece a indústria e “desperdiça uma das nossas últimas possibilidades de fazer face à emergência climática. (…) Em vez de uma abordagem do tipo Plano Marshall para uma transição verde para as energias renováveis, limita-se a subsídios para a captura de carbono e não toma qualquer medida significativa para eliminar progressivamente as energias fósseis”. [8] “Está longe de ser suficiente” declara Alexandria Ocasio-Cortez [9] que lembra que os 2,3 biliões do plano de infraestruturas vão ser gastos ao longo de quase dez anos.

American Families Plan

O segundo plano que visa as famílias é de alguma maneira um substituto do Estado Social pouco desenvolvido nos Estados Unidos. Do 1,9 biliões, 800 mil milhões corresponde a reduções de impostos ou a distribuição de cheques destinados aos lares com rendimentos mais modestos ou com dificuldades. 500 mil milhões são consagrados à educação sob a forma de bolsas e de financiamento de estabelecimentos escolares. Mas, aí também, as despesas estão divididas por dez anos, de 2022 a 2031, como mostra o gráfico do Oxford Economics.

Este plano prolonga as medidas de urgência tomadas durante a pandemia. Trata-se de uma recuperação em matéria de proteção social que parte de um ponto “desesperadamente baixo face às normas da OCDE” como sublinha Susan Watkins: “em proporção do PIB, os gastos sociais da França e da Itália são cerca de 50% mais elevados que os dos EUA. Os gastos públicos nas famílias americanas representam apenas um quarto dos níveis alemães, franceses e britânicos”. [10] Mas a medida não visa implementar um verdadeiro Estados Social: “mais do que alargar o Medicare ou implementar uma opção de seguro de saúde público, vai-se distribuir centenas de milhões de dólares às empresas de seguros de saúde, reforçando desta forma um sistema de cuidados de saúde com finalidade lucrativa que continua a causar tanta dor e sofrimento”.[11]

O clamor dos ricos

Estes três planos enfrentaram imediatamente uma tripla oposição: dos republicanos, evidentemente, (nomeadamente no Senado em que a maioria democrata apenas tem a voz preponderante da vice-presidente Kamala Harris); dos economistas ortodoxos; dos bilionários. Resumindo, os planos de Biden resumir-se-iam a lançar dinheiro pela janela, conduziriam diretamente à inflação e teriam o ónus de ser financiados em parte por aumentos de impostos, ao mesmo tempo sobre os mais ricos e sobre o lucro das empresas.

Os senadores republicanos estão a levar a cabo uma guerra de trincheiras cheia de voltas e reviravoltas descritas em detalhe por Romaric Godin [12]. Mas não são os únicos: os democratas da ala direita do partido procuram adocicar o que veem como uma viragem demasiado radical e, no Senado, querem entrar em acordos com os Republicanos.

Quanto à classe dominante (a que em parte financiou a campanha de Biden), vê com muito maus olhos a sua política fiscal. Esqueceu as declarações tranquilizadoras que Biden dirigia aos seus doadores durante a campanha: “não queremos diabolizar quem ganhou dinheiro (…) Ninguém verá o seu nível de vida mudar. Nada mudará fundamentalmente”.[13]

O programa inicial de Biden visava claramente os 1,5% mais ricos com rendimento superior a 400.000 dólares, cujo rendimento baixaria 17,7 %, segundo um estudo da Universidade da Pensilvânia [14]. Perto de 80% das receitas fiscais suplementares seriam provenientes dos 1% mais ricos.

Sendo o projeto reduzir as enormes desigualdades face aos impostos, o plano Biden previa também 80 mil miljões para reforçar a Autoridade Tributária (IRS, Internal Revenue Service) [15]. Esta tem sido progressivamente privada de meios para agir contra a evasão fiscal. De acordo com um relatório oficial [16], a agência tinha perdido 20% do seu orçamento e pessoal. Os controlos de declarações fiscais baixaram 46% para as pessoas individuais 37% para as empresas. O resultado é uma considerável perda de recursos: segundo Gabriel Zucman e os seus co-autores [17], a sub-declaração dos 1% mais ricos ultrapassa 20% dos seus rendimentos. Outro estudo [18] avaliava em 630 mil milhões de dólares as perdas ligadas à evasão fiscal, ou seja 15 % do total. Se a legislação não mudar, a perda será de 7,5 biliões entre 2020 e 2029. Um dos autores deste estudo é nada mais nada menos que Lawrence Summers, antigo presidente do Conselho Económico Nacional de Obama. Ainda que este seja crítico da dimensão do plano de retoma, subscreve pelo menos este aspeto do plano Biden que poderia, segundo ele, contribuir com 1 bilião suplementar de dólares no curso da próxima década.

Obviamente, o imposto sobre os lucros deveria ser aumentado de 21% para 28% mas ficaria ainda assim abaixo dos 35% em vigor antes de Trump. Isso não impede que esta medida bastasse para financiar mais de metade do plano (1,4 biliões dos 2,3). Biden previa também fazer passar de 10,5% a 21% a taxa mínima de imposto sobre as multinacionais o que teria rendido 800 mil milhões de dólares.[19]

Veremos que estas medidas já estão a ser postas em causa. Mas a sua dimensão era de qualquer forma muito limitada, o que permite por sua vez ilustrar a amplitude das desigualdades fiscais. O que mostra o New York Times[20] quando utiliza os dados de Gabriel Zucman para avaliar o que daria a aplicação das medidas fiscais de Biden. O resultado é que o nível global de impostos dos mais ricos atingiria apenas o patamar dos anos 1990 e ficaria num nível largamente inferior aos anos pré-Reagan (ver gráfico em baixo). Isto não impede diversos representantes do patronato de denunciar esta reforma como “escandalosa”, “arcaica” ou “injusta”. Mas, ao fazê-lo, “apenas exprimem o seu gosto por impostos baixos”, conclui o artigo do New York Times.

O recuo sobre o salário mínimo

Biden tinha-se comprometido com o aumento do salário mínimo federal de 7,25 dólares por hora para 15 mas já renunciou a esta medida que adiou para 2025 no melhor dos casos. Contudo, o aumento do salário mínimo para 15 dólares beneficiaria um terço dos trabalhadores, uma vez que esta é a proporção dos que ganham um salário inferior a este nível, ou seja 48 milhões das 144 milhões pessoas empregadas nos EUA. Estes trabalhadores sobrepõem-se em grande medida à categoria dos trabalhadores ditos “essenciais” para a qual dois investigadores propuseram uma tipologia [21]. Estes descobriram que daqueles 144 milhões de empregos, 90 milhões são exercidos em setores definidos como essenciais e, entre estes, 50 milhões podem ser classificados como trabalhadores da primeira linha (frontline workers). Um outro estudo complementar [22] estabelecia que quase metade entre eles estão empregados em setores em que o salário médio é inferior a 15 dólares à hora. Os autores concluem que ele “mereciam passar aos 15 dólares” mas têm de esperar por dias melhores.

A ameaça da inflação é agitada pelos defensores da ortodoxia. Servem-se de um fenómeno de curto prazo que é a subida de certos preços (matérias primas, bens intermediários, custos do frete marítimo, etc.) que reflete sobretudos as penúrias transitórias ligadas a uma retoma desordenada. É o que explica muito claramente Joseph Stiglitz: “a atual pressão inflacionistas resulta essencialmente dos estrangulamentos do lado da oferta a curto prazo que são inevitáveis quando uma economia parada temporariamente retoma. Não falta capacidade mundial na fabricação de automóveis ou de semi-condutores; apenas quando todos os novos automóveis recorrem a semi-condutores e a procura está mergulhada na incerteza (como esteve durante a pandemia), a produção de semi-condutores fica necessariamente limitada.” [23]. Na realidade, pode-se considerar que “as empresas utilizam as penúrias de aprovisionamento como pretexto para aumentar os preços e para testar os mercados com vista a compensar as perdas de 2020 e as baixas de preços durante a pandemia.” [24]

Salários e lucro

De qualquer forma, a ofensa é mais ampla. Quando os economistas ortodoxos anunciam que Biden “sobre-aquecendo” a economia vai desencadear um processo inflacionista duradouro é preciso traduzir o argumento: é a inflação salarial que representa o verdadeiro perigo.

De momento, o tema só é levantado pelo bando com um argumento clássico segundo o qual os subsídios de desemprego beneficiariam incitariam os beneficiários a não voltar ao mercado de trabalho. Que alguns desempregados, no clima de incerteza escolhessem esperar para ver é, apesar de tudo, possível. Mas as queixas clássicas dos empregadores que têm dificuldades em contratar devem ser contextualizadas. O Washington Post encontrou um meio hábil de contornar a penúria de trabalhadores: aumentar os salários para 15 dólares por hora ou mais [25]. Vários empregadores, confrontados com uma dificuldade de contratar tentaram esta “experiência natural” (como dizem os economistas) e, milagre, os candidatos começara a aparecer. Gina Schaefer que dirige uma rede de lojas de ferragem indigna-se: “Ninguém diz que a economia se vai afundar quando os advogados ganham 300.000 dólares. É apenas a propósito dos baixos salários que se escuta isto. E penso que, do ponto de vista da sociedade, isto é verdadeiramente injurioso”.

Indo um pouco mais fundo, vemos até que a pandemia teve um efeito paradoxal, o de modificar o equilíbrio de poder entre capital e trabalho. Assim, o New York Times pode anunciar que “os trabalhadores estão a ganhar terreno ao empregadores” [26]. Apoiava-se em dados de inquéritos que procuravam medir a remuneração mínima que os trabalhadores exigem para aceitar um emprego. O gráfico em baixo [27] mostra a evolução daquilo a que os economistas chamam o “salário de reserva”. Constata-se que, a seguir a uma pequena descida em março de 2020, a curva se orienta para uma subida. Para os trabalhadores sem estudos superiores a progressão é de 19 % entre novembro de 2019 e março de 2021. Um outro inquérito [28] mostra, por outro lado, que os empregadores têm dificuldades em manter os seus assalariados: este é o caso em abril de 2021 para 49% das empresas que empregam principalmente operários e empregados de escritório contra 30% antes da pandemia.

Obviamente, pode-se tratar de desajustes transitórios que desaparecerão à medida que a economia volte ao normal. Mas, do ponto de vista dos capitalistas, a medida da normalidade, é a rentabilização dos seus capitais. Ora, as coisas não vão muito bem. Se se olhar para a evolução da parte do lucro no valor acrescentado (ver gráfico em baixo) constata-se que ela se tinha restabelecido depois da crise de 2008 e depois estabilizado. Mas, a partir de 2014, recua significativamente, até afundar em 2020. As medidas de resgates e despedimentos conduziram ao ziguezague do fim do período. Mas é claro que qualquer revalorização dos salários, a começar pela do salário mínimo, coloca em perigo a evolução posterior da rentabilidade das empresas.

A retoma da atividade nos Estados Unidos vai beneficiar o resto do mundo abrindo-lhes oportunidades. Mas, ao mesmo tempo, o crescimento das importações vai aumentar do deficit comercial dos Estados Unidos. Este já tinha aumentado como ilustra o gráfico em baixo: no primeiro trimestre de 2021, a balança corrente registou um deficit e 844 milhares de dólares (3,8% do PIB) enquanto que a média da década anterior à pandemia era da ordem dos 400 mil milhões (2,2% do PIB).

Encontra-se aqui uma característica duradoura da economia dos Estados Unidos, a saber, um deficit comercial estrutural. O financiamento deste deficit é assegurado pelas entradas de capitais provenientes do resto do mundo, principalmente da zona euro e dos países emergentes além da China. Patrick Artus tem assim razão em falar de uma “estratégia egoísta” [29]» e em apontar para uma questão raramente levantada. O seu esquema é o seguinte: “um apoio, contra-cíclico e estrutural, da economia americana financiado por entradas de capitais facilitados pela subida (modesta) das taxas de juro a longo prazo”. É assim a poupança do resto do mundo que vai financiar o apoio crescente dos Estados Unidos e o processo já começou como ilustra o gráfico abaixo que mostra que as compras de ações aumentaram, até atingirem 4 % do PIB. A advertência de Artus é clara: “é preciso então compreender bem que a recuperação, a curto prazo e a longo prazo, do crescimento dos Estados Unidos, se faz em detrimento do crescimento do resto do mundo”.

Poder-se-ia falar, como faz Ashley Smith, de um “keynesianismo imperialista” [30] que comporta uma outra dimensão, a das cadeias de valor mundiais. A pandemia revelou a dependência dos Estados Unidos de fontes de abastecimento exteriores, fazendo perigar a sua segurança em sentido amplo. O governo encomendou um relatório sobre esta questão que acaba de ser tornado público. O seu título é, em si próprio, um programa: “criar cadeia de abastecimento resilientes, revitalizar a indústria manufatureira americana e favorecer um crescimento generalizado”. [31]

Basta percorrer o roteiro [32] tirado deste relatório para constatar que o alvo principal é a China que “recorrendo a intervenções fora do mercado [e portanto ilegítimas] capturou largos segmentos das cadeias de valor de vários minerais críticos e materiais necessários à segurança nacional e económica”. Ou ainda: “os Estados Unidos devem trabalhar com os seus aliados e parceiros para diversificar as cadeias de abastecimento fora das nações hostis (adversarial) e das fontes cujas normas ambientais e laborais sejam inaceitáveis. Resumindo, trata-se de desenvolver ou consolidar ligações com os parceiros aceitáveis como a Coreia e o Japão.

O relatório propõe também a formação de um grupo de trabalho encarregue de “identificar os locais nos quais os minerais críticos poderiam ser produzidos e tratados nos Estados Unidos” mas evidentemente “respeitando as normas mais elevadas em matéria de ambiente, de trabalho e de durabilidade”. Colaborar-se-á com as “nações tribais” e consultar-se-á as “comunidades impactadas” mas estas clausulas tranquilizadoras não nos fazem deixar de temer a perspetiva de desastres ecológicos e sociais futuros.

Miragem e milagre

O exame da lógica dos planos Biden que acabámos de empreender era sem dúvida o exercício tem, sem dúvida, algo de enganador. Jack Rasmus tinha razão em indicar que os montantes anunciados “só terão efeitos na economia em 2022 ou depois, ou até nem terão nenhum”. Estas reservas são completamente confirmadas pela proposta que Biden fez recentemente aos Republicanos [33]. Ele abandonaria o projeto de aumentar os impostos das empresas até 28% para fixar em vez disso uma taxa de imposto mínimo de 15% que visaria garantir que todas as empresas pagariam impostos. Esta mesma taxa de 15% com que Biden avançou na cimeira do G7, uma “coincidência” que não foi suficientemente sublinhada. Em troca, os Republicanos deveriam aceitar consagrar pelo menos um bilião de dólares para despesas em infraestrutura, ou talvez 1,7, enquanto que, recordemos, o Jobs Plan estava cifrado em 2,3.

David Sirota e os seus co-autores, já citados, tinham então razão ao ironizar sobre os ricos que estão prontos a aceitar que se distribua dinheiro aos pobres sob a condição de “não pagarem mais impostos, não terem de remunerar os seus trabalhadores de forma mais equitativa e de não pagar pelas entregas da DoorDash” [a maior plataforma online de alimentação dos EUA]. O fosso entre os anúncios dramáticos de Biden e a sua implementação já começou a aumentar. Mas é ainda demasiado cedo para concluir que eram exclusivamente anúncios. Houve uma bifurcação ideológica cuja marca no contexto social e político não será apagada da noite para o dia.

Deste rápido exame, talvez se deva reter a ideia de que o projeto de Biden é antes de mais reafirmar a supremacia dos Estados Unidos face à China. Isto passa por um rearmamento da indústria nacional e um controlo mais estreito dos abastecedores, sendo o todo financiado graças ao “privilégio exorbitante” do dólar. Isto equivale a dizer que o mesmo tipo de política não é possível numa União Europeia aliás profundamente dividida. Diga-se de passagem, aí se toca num ponto cego da famosa “teoria monetária moderna” que professa que não existe limite ao deficit uma vez que basta emitir moeda. Só que, ao que parece, também é preciso ser capaz de atrair capital.

De momento, “nada mudou fundamentalmente na dinâmica de poder entre os trabalhadores e os empregadores” como notam David Sirota e os seus co-autores. Deste ponto de vista, o critério é sem dúvida o destino do “Plano famílias” que poderia potencialmente modificar a repartição de rendimentos e estabelecer uma relação de forças diferente. Em qualquer caso, a implementação efetiva da política anunciada por Biden passará por um braço de ferro com as classes dominantes e a sua capacidade ou vontade de impor “compromissos” que lhes sejam demasiado desfavoráveis é duvidosa. Mas isto também despertou aspirações que serão talvez mais duráveis que as suas promessas

Artigo publicado no A L’Encontre(link is external). Traduzido por Carlos Carujo Para o Esquerda.net.

Notas

[1] Olivier Passet, La relance keynésienne phénoménale des Etats-Unis(link is external), Xerfi, 8 de fevereiro de 2021.

[2] Citado por Jeff Stein, Biden’s $1.9 trillion relief plan reflects seismic shifts in U.S. politics(link is external), The Washington Post, sete de março de 2021.

[3] Steve Wamhoff, Estimates of Cash Payment and Tax Credit Provisions in American Rescue Plan(link is external), Institute on Taxation and Economic Policy, sete de março de 2021.

[5] Ver: Biden’s $4 Trillion Economic Plan(link is external), The New York Times, 25 de maio de 2021.

[6] White House, The American Jobs Plan(link is external), Fact Sheet, 33 de março de 2021.

[10] Susan Watkins, Paradigm shifts. US and EU recovery programmes(link is external), New Left Review n° 128, março-abril de 2021.

[11] David Sirota, Julia Rock e Andrew Perez, The American Rescue Plan’s Money Cannon Is Great, But Not Enough(link is external), dailyposter, 11 de março de 2021.

[12] Romaric Godin, Que reste-t-il des ambitions économiques de Joe Biden(link is external)? Mediapart, cinco de junho de 2021.

[14] Penn Wharton Budget Model, Analysis of the Biden Platform(link is external) 28 de outubro de 2020.

[17] John Guyton, Patrick Langetieg, Daniel Reck, Max Risch, Gabriel Zucman, Tax evasion at the top of the income distribution: theory and evidence(link is external), NBER, março de 2021.

[18] Natasha Sarin & Lawrence H. Summers, Shrinking the Tax Gap: Approaches and Revenue Potential(link is external), taxnotes, 18 de novembro de 2019.

[20] David Leonhardt, Biden’s Modest Tax Plan(link is external), The New York Times, quatro de maio de 2021.

[23] Joseph E. Stiglitz, La fausse piste de l’inflation(link is external), Project Syndicate, sete de junho de 2021.

[26] Neil Irwin, Workers Are Gaining Leverage Over Employers Right Before Our Eyes(link is external), The New York Times, cinco de junho de 2021.

[27] Em milhares de dólares por ano. Fonte: Federal Reserve Bank of New York, Center for Microeconomic Data(link is external).

[28] The Conference Board, The Reimagined Workplace a Year Later(link is external), Maio de 2021.

[30] Ashley Smith, Imperialist Keynesianism(link is external), Tempest, 18 de maio de 2021.

[33] Jarrett Renshaw, David Shepardson, Biden proposes 15% corporate minimum tax to win Republican backing of infrastructure plan(link is external), Reuters, quatro de junho de 2021.