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"Isto é Fascismo", alerta editor dos EUA sobre Trump

O fascismo de Trump é sangrento e bárbaro. Mas até agora não era claro se ele poderia mobilizar seus apoiadores armados para a violência.

10 de junho de 2020

Adam Weinstein, Esquerda.net, 6 de junho de 2020

"O Ur-Fascismo ainda está à nossa volta, por vezes à paisana", escreveu Umberto Eco em 1995. "Seria muito mais fácil, para nós, se aparecesse na cena mundial alguém a dizer: 'Quero reabrir Auschwitz, quero que os Camisas Pretas voltem a desfilar nas praças italianas'. A vida não é assim tão simples". Eco, o grande teórico e romancista, tinha sido um adolescente no norte de Itália sob o regime fascista de Mussolini, e meio século depois, quando a demagogia e a violência ultranacionalistas foram incendiadas pelas últimas brasas europeias da Guerra Fria, começou a perguntar-se como reconhecer e se mobilizar contra um regime fascista nascente. "Estamos aqui para recordar o que aconteceu e dizer solenemente que 'Eles' não podem voltar a fazê-lo", escreveu ele. "Mas quem são Eles?"

Para muitos americanos - sobretudo os americanos brancos - a questão de Eco há muito que se considera académica. É óbvio quem são "eles", não é? Hitler e os nazis, claro, e talvez terroristas islâmicos. "Eles" são cultos totalitários da morte, mas especificamente estranhos - a manterem-se afastados das nossas fronteiras superiores e, ocasionalmente, a serem derrotados pelos nossos incomparáveis militares.

Eco sabia melhor, e tinha o número da América, mesmo na infância da World Wide Web. "Há no nosso futuro um populismo televisivo ou da Internet, em que a resposta emocional de um grupo limitado de cidadãos pode ser apresentada e aceite como a Voz do Povo", escreveu ele. Pode estar a descrever a ascensão do trumpismo online, embalado e taylorizado pelo aparelho do Partido Republicano, mas fortalecido pela ecosfera mediática de direita e pelos seus financiadores, tudo ao serviço de um Estado autoritário gangster, que atingiu um importante estádio de maturidade fascista nas ruas de dezenas de cidades no fim-de-semana passado. O país entrou naquele momento em que o sapo nota que está a ser cozido.

Em Filadélfia, no domingo de manhã, a primeira coisa que as autoridades limparam foi uma estátua do antigo comissário de polícia e presidente da câmara Frank Rizzo, um demagogo que passou a sua vida a lançar os residentes brancos contra todos os outros. Num edifício em Cincinnati, os delegados do xerife substituíram a bandeira dos Estados Unidos (que, segundo eles, tinha sido hasteada por saqueadores) pelas cores do seu próprio gangue, uma bandeira da Linha Azul Fina; o presidente do conselho municipal criticou essa ação como insensível, dizendo que o xerife "só piorou as coisas. Outra vez". Mais a norte, em Columbus, Ohio, os polícias atingiram com gás-pimenta a Congressista Joyce Beatty, juntamente com outros eleitos. Em Cleveland, os funcionários tentaram proibir qualquer jornalista de viajar para o centro da cidade até ao coração dos protestos.

Não que as equipas de filmagem fossem muito dissuasoras da brutalidade policial. Em Atlanta, os polícias abriram à força um carro parado, partiram as janelas, cortaram pneus e usaram tasers contra os dois ocupantes aterrorizados, antes de os puxarem para fora e os amarrarem. Em Los Angeles, um polícia num SUV atropelou a perna de um manifestante, fez marcha atrás com o veículo e fugiu do local do atropelamento. Isto reproduziu as imagens omnipresentes dos SUV da polícia de Nova Iorque utilizados como armas ofensivas, avançando sobre multidões de manifestantes, uma repetição arrepiante das táticas utilizadas em Charlottesville, Virgínia, em 2017 pelo supremacista branco James Alex Fields, quando utilizou o seu carro para assassinar a manifestante Heather Heyer.

Em todo o país, a polícia vestiu uniformes de camuflagem e capacetes táticos normalmente reservados aos soldados; saltou para cima de veículos protegidos contra emboscadas resistentes às minas, transportou espingardas M4 e levou consigo o excedente de equipamento de combate descartado pelos militares norte-americanos à medida que diminuíam as guerras ultramarinas que obrigaram à sua produção. A polícia apreendeu sopradores de folhas que podiam dispersar o gás lacrimogéneo; eles recorreram a uma presença esmagadora para manter os manifestantes à distância enquanto destruíam os postos de socorro improvisados dos manifestantes, que distribuíam água potável e leite para tratar os manifestantes gaseados. Lançaram gás-pimenta contra crianças com as mãos no ar e empurraram mulheres e homens idosos e qualquer outra pessoa que pudessem, porque podiam. E depois havia as balas de plástico e de borracha, tantas das quais pareciam ser disparadas diretamente contra a cara não só dos manifestantes, mas também dos transeuntes e dos repórteres. (Pelo menos 100 jornalistas foram atacados pela polícia durante estes protestos).

Onde está o seu governo federal? Donald Trump, o fanático septuagenário magnata do country club e artista da treta, que assumiu a presidência com uma minoria de votos, com promessas de que só ele poderia resolver a "carnificina americana", começou o fim-de-semana com uma viagem à Florida para assistir ao lançamento de um foguetão, com a música "Macho Man" em fundo. Sentindo-se suficientemente fálico, continuou durante o fim-de-semana com uma defesa inflamada de balear manifestantes, retweetou as teorias da conspiração de Qanon sobre uma insurreição virtuosa, alegou sem qualquer fundamento que 80% dos manifestantes eram agitadores vindos de fora do Estado e anunciou que iria procurar uma desculpa legal para tratar os ativistas anti-fascistas nos Estados Unidos como terroristas.

"É preciso dominar, se não se domina está-se a perder tempo", vociferou Trump numa chamada telefónica com os governadores na segunda-feira. "Vão passar-vos por cima, vocês vão parecer um bando de idiotas. Vocês têm de dominar". Ele disse que "atirar uma pedra" é "como disparar uma arma". "Têm de fazer uma retaliação, a meu ver", disse ele. "Têm de prender pessoas, têm de localizar pessoas, têm de as pôr na prisão durante 10 anos, e nunca mais voltam a ver estas coisas". Ele foi apoiado na chamada por nada mais nada menos que Mark Esper, o secretário da defesa, que disse: "Acho que quanto mais depressa se reunirem e dominarem o espaço de batalha, mais depressa isto se dissipa e podemos voltar ao normal".

O Procurador-Geral Bill Barr, que sofre de um tique vitalício que o faz pronunciar "ditador supremo" como "executivo unitário", mais uma vez apressou-se a converter o flato de Trump numa cruzada pela ordem pública. "Grupos de radicais e agitadores de fora estão a explorar a situação para prosseguirem a sua própria agenda violenta e extremista", disse Barr numa declaração em que anunciava que o FBI mobilizaria as suas 56 "Forças de Intervenção Comuns contra o Terrorismo" a nível nacional para combater o flagelo do protesto. "A violência instigada e levada a cabo pelo Antifa e outros grupos semelhantes em ligação com os tumultos é terrorismo interno e será tratada em conformidade". Em nenhuma parte do memorando se mencionava o tumulto nacional das forças da ordem.

Isso é porque, para a junta de Trump, ela não existe. "Não, não creio que haja racismo sistémico" nas forças de segurança americanas, disse o conselheiro de segurança nacional Robert O'Brien, cujas principais proezas são o facto de ter tirado A$AP Rocky de uma prisão sueca e de não ser Mike Flynn. "Penso que 99,9% dos nossos agentes da lei são grandes americanos... 99,9% destes tipos são heróis", acrescentou O'Brien na sua entrevista de domingo com Jake Tapper. "Mas estes militantes radicais antifa que usam táticas militares para matar, ferir e mutilar os nossos polícias precisam de ser travados, e penso que é daí que vem a paixão do presidente".

O'Brien não apresentou provas para estas alegações de agitadores terroristas externos - muito menos provas suficientes para se comparar com o universo de abusos documentados contra a imprensa, contra as concentrações, contra as minorias e contra a paz cometidos pelas forças da autoridade no fim-de-semana passado, aos quais só me referi ao de leve.

A mensagem deste governo federal é inequívoca. Foi transmitida em parte pela agência de Alfândega e Proteção das Fronteiras, a maior agência de segurança pública dos Estados Unidos - uma agência atravessada pelo racismo e pela tirania, agora encarregada de levar a cabo os impulsos nativistas mais irrefletidos de Trump - que anunciou no domingo a mobilização de agentes para reforçar as forças policiais "que fazem frente às ações sem lei dos desordeiros". Tem sido transmitida pelas autoridades locais em bastiões pró-Trump, que defendem estrangulamentos policiais do tipo dos que mataram George Floyd em Minneapolis. "Se dizes que não consegues respirar, estás a respirar", disse um presidente da câmara do Mississippi, num tweet grosseiro. "Muito provavelmente aquele homem morreu de overdose ou ataque cardíaco."

A mensagem foi novamente transmitida na segunda-feira pelo senador do Arkansas Tom Cotton, um veterano de guerra e viciado em violência folclórica que se tornou o instrumento preferido do Partido Republicano para lançar um novo produto xenófobo ou militarista. Nos últimos anos, tentou sozinho fazer a guerra com o Irã e a China, mas esta semana quer saltar de pára-quedas para uma zona escaldante numa cidade perto de si. "A anarquia, os tumultos e as pilhagens têm de acabar esta noite", tweetou ele, agarrando a América pelo seu posse comitatus. "Se a polícia local está sobrecarregada e precisa de apoio, vamos ver como estes terroristas Antifa são duros quando enfrentarem a 101ª Divisão Aerotransportada. Temos de ter tolerância zero para esta destruição".

Quando questionado sobre a estupidez abjeta da sua sede de sangue inconstitucional, o senador esclareceu a sua declaração para a tornar mais violenta e ameaçadora. Ele usaria não apenas a 101ª, mas "se necessário, a 10ª Montanha, 82ª Aerotransportada, 1ª Cavalaria, 3ª Infantaria - o que for preciso para restaurar a ordem". Não há lugar para os insurrecionistas, anarquistas, desordeiros e saqueadores". Cotton, o ex-oficial do Exército, podia nomear algumas das suas divisões armazenadas, e o seu ódio ao "insurrecionista" deve ter excitado as pulsações de muitos homens cujo exército preferido se vestia de cinzento, mas ele parecia esquecer que aquele "não há lugar" era uma violação do seu antigo código de conduta militar: Este conselho aos agentes federais era um apelo explícito à prática de crimes de guerra.

Ou talvez tenha sido intencional, tal como o seu uso de "insurrecional" foi evidentemente intencional. Horas depois do tweet militarista de Cotton, quatro fontes disseram à NBC News que Trump estava a ponderar conselhos de alguns dos seus ajudantes para invocar a Lei da Insurreição, assinada por Thomas Jefferson em 1807, que prevê que "sempre que houver uma insurreição em qualquer Estado contra o seu governo", o presidente pode destacar "tanto das forças armadas, como considerar necessário para reprimir a insurreição".

Tudo isto culminou na declaração de guerra de Trump contra a população dos Estados Unidos, anunciada pouco antes do pôr-do-sol de segunda-feira, num discurso no Jardim das Rosas. "Nos últimos dias, a nossa nação tem sido dominada por anarquistas profissionais, multidões violentas, incendiários, saqueadores, criminosos, desordeiros, antifa, e outros", leu Trump com atenção no seu teleponto. "É por isso que estou a tomar medidas presidenciais imediatas para acabar com a violência e restaurar a segurança e a proteção na América". E faria isto, disse ele, "para pôr termo aos tumultos e pilhagens" e "para proteger os direitos dos americanos cumpridores da lei, incluindo os seus direitos da Segunda Emenda".

Para além dos homens da Segunda Emenda, a América teria mais tropas no terreno. "Recomendei com veemência a todos os governadores que mobilizassem a Guarda Nacional em número suficiente para nós dominarmos as ruas", disse Trump:

"Os presidentes de câmara e os governadores devem ter uma presença avassaladora das forças da ordem até que a violência tenha sido eliminada. Se uma cidade ou um Estado se recusar a tomar as medidas necessárias para defender a vida e os bens dos seus residentes, então enviarei os militares dos Estados Unidos e resolverei rapidamente o problema por eles”.

Pouco antes do seu discurso, a polícia gaseou e disparou balas de borracha contra os manifestantes do outro lado da rua perto da Praça Lafayette, apesar de a multidão ter sido pacífica e de faltarem 20 minutos para o recolher obrigatório em toda a cidade. Uma vez terminado o seu discurso, Trump caminhou pela área desobstruída até à Igreja Episcopal de St. Johns e permitiu que os meios de comunicação social tirassem fotografias dele, sozinho, em pé, à entrada da igreja, com uma Bíblia.

Tudo isto transmitiu a mesma mensagem. Essa mensagem foi recebida por homens de todo o país, alguns uniformizados, outros não, que parecem acreditar que Trump, Barr, Cotton e a patrulha de fronteira falam directamente com eles. A mensagem é: Junte-se ao partido fascista. Estamos a ganhar.

O Trumpismo-Republicanismo há muito que possui a maior parte das 14 características comuns do Ur-Fascismo de Umberto Eco, que ele delineou no seu ensaio na New York Review of Books em 1995: o "culto à tradição", o machismo, o "culto ao heroísmo", a convicção de que "pensar é uma forma de emasculação" e "a discordância é traição". Para "a obsessão com uma trama" e "o apelo à xenofobia", Eco citou na realidade o televangelista e fundador da Coligação Cristã Pat Robertson, que é agora um adepto de Trump. Mas o que sempre faltou foi um passo crítico no avanço das forças totalitárias na Itália e na Alemanha fascistas: A administração da arqui-direita dos EUA não tinha ainda estabelecido suficiente controlo político directo sobre a força policial e os grupos paramilitares a nível nacional para dar à "Voz do Povo" Trumpiana a justiça vigilante que exige.

Nos anos que antecederam os protestos de George Floyd, a administração Trump tem sido extremamente cruel na sua desumanização, encarceramento e assassinato de imigrantes. Olhou para o lado enquanto a violência de extrema-direita surgiu como a principal ameaça à segurança nacional nos Estados Unidos. Procurou suprimir os eleitores, especialmente os eleitores minoritários e jovens, em todos os locais onde o seu partido se candidata às eleições. Não há dúvida de que o fascismo de Trump já foi sangrento e bárbaro para muitos seres humanos. Mas até aos últimos dias, não era claro se a Casa Branca poderia mobilizar em massa os seus apoiantes armados para a violência.

Era aqui que os nazis e os fascistas estavam bem à frente da administração de Trump: Antes de tomarem o poder, as Sturmabteilungen e as Camisas Negras já espancavam sistematicamente os socialistas, interrompiam as assembleias, enchiam as prisões e intimidavam os eleitores nas urnas. Uma vez no poder, afirmavam que estes inimigos só estavam a ganhar mais terreno e usavam a resistência à violência por parte da polícia e das milícias como desculpa para corroer ainda mais as protecções democráticas. Em Itália, para conseguir um apoio inexistente a Mussolini, foi aprovada a lei Acerbo, que previa que o partido com mais votos nas eleições parlamentares, mesmo que isso fosse apenas 25% dos votos, deveria obter dois terços dos assentos. Na Alemanha, o partido de Hitler - que nunca obteve a maioria dos votos numa eleição nacional justa - fez aprovar a Lei de Autorização para se dar a si próprio o poder sem controlo após o incêndio do Reichstag. Ambos os decretos substituíram os últimos vestígios da democracia representativa das suas nações por uma vontade inabalável do povo, personificada num Homem que Fica na Emergência e protegida por uma guarda de ferro de heróis patriotas e uniformizados.

É tempo de aceitar os paralelismos, de não ter medo de dizer uma verdade clara: seja por conceção ou por falta dela, Donald Trump e o Partido Republicano dirigem um Estado americano que organizaram cada vez mais segundo princípios fascistas. É também tempo de considerar o que os fascistas podem ainda fazer, durante uma pandemia sem precedentes, no meio de um desemprego sem precedentes, confrontados com uma resistência sem precedentes antes de uma eleição sem precedentes. O Partido Republicano quer fazer do "antifascista" uma categoria de terrorista; quer utilize ou não soldados no ativo para prender esta nova classe de indesejáveis na "emergência nacional", tem à sua disposição todos os polícias que hasteiam uma bandeira de O Justiceiro ou do Blue Lives Matter acima da bandeira dos Estados Unidos, todo o vigilante armado, Oathkeeper ou Proud Boy [NT: milícias violentas de extrema-direita] que anseia pela próxima guerra civil.

Com o envolvimento da patrulha federal de fronteira e agentes do FBI, pode haver patrulhas de bairro, vigilância e rusgas sem mandado, prisões em massa, torturas e execuções extrajudiciais. É claro que os EUA já fizeram a maior parte destas coisas nos últimos anos e os agentes federais mentiram sobre praticamente tudo isso. Mas estas têm sido apenas uma amostra em comparação com o que se pode seguir, no período que antecede as eleições de Novembro e no seu rescaldo. No Ur-Fascismo, afirma Eco, "o pacifismo é negociar com o inimigo", e "uma vez que os inimigos têm de ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento terá o controlo do mundo". Quanto mais nos aproximarmos de uma potencial rejeição do Trump nas urnas, mais intensa e final lhe vai parecer essa batalha a ele e aos seus apoiantes.

Artigo publicado no site da New Republic. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

Adam Weinstein é o editor de segurança nacional da New Republic. Foi editor da Task & Purpose, Mother Jones, and The Wall Street Journal.