Voltar ao site

José Correa: As esquerdas terraplanistas e a guerra

29 de março de 2022

Impérios benevolentes e China socialista são alguns dos mitos decisivos para uma certa esquerda que paira fora do tempo, impossibilitando-as de enfrentar as ameaças de guerras que se colocam com cada vez mais intensidade.

José Correa Leite, 19 de março de 2022

A invasão militar da Ucrânia pela Rússia é um acontecimento maior, produzindo um salto de qualidade em um quadro mundial de crise sistêmica - confluência entre a crise sócio-econômica do capitalismo neoliberal, emergência climática, pandemia, fome, regimes neofascistas e, agora, guerra (com sombrias tonalidades nucleares ao fundo). São todos fenômenos que não podem ser equacionados no terreno nacional; são globais, definindo os projetos políticos contemporâneos e projetando um desesperançador horizonte histórico de expectativas decrescentes.

Esta é a guerra mais importante em décadas devido aos países e forças militares envolvidas, sendo a Rússia aquele hoje com maior número de armas nucleares ativas no mundo. É uma tragédia para o povo ucraniano, que se torna protagonista daquela que tende a ser a maior crise humanitária na Europa desde 1945. Provavelmente será um atoleiro militar para o regime autocrático de Putin e já propiciou na Europa uma onda de relegitimação da OTAN, o braço militar da fragilizada hegemonia norte-americana, em uma série de países que se sentem agora ameaçados pela Rússia. Putin não esperava a reação militar e política que está encontrando, mas - mesmo existindo uma pressão geopolítica da OTAN - foi ele mesmo que construiu este cenário com sua arrogância imperial grã-russa. A guerra é uma catástrofe e está levando a um massacre da população ucraniana.

I - A esquerda terraplanista

A guerra na Ucrânia evidencia, também, os descaminhos de certa esquerda que manifesta graves formas de regressão ideológica. Somos confrontados, na América Latina, uma esquerda terraplanista, que, como Trump, acredita em “fatos alternativos”. Não compreende e não aceita os fatos básicos da vida, a começar pela constatação elementar que o mundo desta terceira década do século XXI não guarda nenhuma semelhança com os tempos da Guerra Fria. Não aceita que a sociedade mudou profundamente com o advento do neoliberalismo - para pior - e que, do ponto de vista geopolítico, já não existe bipolaridade nem “campo amigo da esquerda” para reivindicar. O que dirá, então, de compreender quais são os projetos em disputa no mundo? Porque, para além das clivagens geopolíticas, há, de um lado, uma deriva para projetos nacionalistas conservadores, xenófobos, patriarcais e fundamentalistas compartilhados por Trump, Putin, Orban, Bolsonaro, Netanyahu, Erdogan, Modi; de outro, temos a luta pela continuidade da globalização neoliberal (na qual esta mesma esquerda se move tranquila, procurando torná-la inclusiva).

Parcelas importantes da esquerda não estudam e não compreendem, nesse contexto, o contraditório enfraquecimento da velha e antes toda-poderosa hegemonia norte-americana; quer se auto-iludir de que a China é socialista e que a Rússia de Putin, é anti-imperialista (!), tendo invadido a Ucrânia como legítima defesa contra a OTAN… Essa esquerda, em geral reformista e institucionalizada, está vivendo literalmente na Terra Plana. Mas esta expressão pode ser utilizada também para designar, além daqueles que acreditam em “fatos alternativos”, todos que se movem na Terra Plana no sentido apontado pelo ideólogo neoliberal Thomas Friedman em 2005, no seu livro The world is flat (O mundo é plano), isto é, aceitam, ainda que tacitamente, que “não há alternativa” ao capitalismo. 

De Mitterrand e Tony Blair a Lula e López Obrador, socialdemocratas, ex-comunistas e progressistas de vários matizes tentam produzir na Terra Plana - concebida como um grande mercado mundial que abrange, incorpora e limita todos os países - um neoliberalismo mais inclusivo, “menos injusto", ao mesmo tempo que seus partidos políticos prosperam nas estruturas de poder estatais. Essa esquerda oscila entre o falecido paradigma keynesiano e uma nostalgia soviética; não consegue se libertar do século XX e não tem como ser, sem isso, protagonista de saídas para os impasses do século XXI.

O altermundialismo como único horizonte de esperança; o internacionalismo como única política coerente

Um coletivo de geógrafos, professores, cientistas, estudantes e pesquisadores publicou uma carta aberta a Putin contra a guerra, em que lembram os enormes desafios hoje colocados para a Rússia e para a Ucrânia, que devem ser resolvidos politicamente. Eles terminam dizendo: “Nós queremos viver sob um céu pacífico, em um país aberto ao mundo e em um mundo aberto ao nosso país, continuar a pesquisar em nome do mundo, para o bem-estar de nosso país e do conjunto da humanidade”. É essa sensibilidade cosmopolita e não nacionalismos excludentes que deve ser reivindicada por qualquer projeto de esquerda como ponto de partida para a construção de alternativas ao mundo em que vivemos.

Esse sentimento de onde estamos hoje não deve ser confundido com a adesão à ideologia liberal ou neoliberal da globalização, do mundo como um grande mercado auto-regulado em que todos seriam consumidores. Frente a suas fantasias sobre um suposto homo economicus, a esquerda opôs, nesse século XXI, um altermundialismo, o movimento por uma outra globalização, não a das corporações capitalistas e dos governos que as apoiam, mas dos povos, a luta por outra mundialização política, sanitária e ambiental, por formas de internacionalismo, solidariedade, cooperação e governança global  de comuns que incorpore e respeite a diversidade de modos de ser e existir no mundo e os processos críticos da biosfera do planeta. Toda forma de opressão e injustiça, todo nacionalismo opressor e chauvinista, toda forma de imperialismo, deve ser combatida pela esquerda.

Todavia, não era apenas o altermundialismo que se contrapunha à ideologia neoliberal. Em 1995, contra os delírios de Francis Fukuyama que falava, antes de Friedman, de uma vitória definitiva do liberalismo (o “fim da história”), outro liberal mais perspicaz, Benjamin Barber, publicou “Jihad contra o MacWorld”. Os derrotados pela globalização não ficavam passivos, mas reagiam recuperando ideologias e formas de sociabilidade regressivas e opressoras, até mesmo totalitárias. 11 de setembro de 2001 abriu um ciclo de vinte anos de “guerra ao Terror”, frequentemente fachada para o enquadramento militar pelo imperialismo estadunidense das fontes de combustíveis fósseis no Oriente Médio, que levou a uma super-extensão e crise da dominação imperial norte-americana, cuja conclusão cabal vimos no ano passado no Afeganistão.

Com a decadência do imperialismo norte-americano, estamos transitando para algo mais perigoso do que terrorismos ancorados em fundamentalismos religiosos, vamos para um mundo onde potências nucleares rivais voltam a cantar hinos de guerras em defesa dos "interesses nacionais". A erosão da hegemonia estadunidense abre espaço para os nacionalismos chauvinistas de outros imperialismos. Parecemos voltar ao início do século XX, agora com impérios dotados de armas nucleares capazes de exterminar os seres humanos. Sem a retomada de um projeto antissistêmico de esquerda, as perspectivas para as próximas décadas serão de expansão de identitarismos nacionalistas cada vez mais agressivos, associados a fundamentalismos religiosos. Um horizonte de esperança, como aquele dos geógrafos russos anti-Putin, tem que se materializar em um projeto político altermundialista, de cuidado da humanidade e do planeta, ecossocialista e internacionalista, que supere a esquerda terraplanista em sua prática (neo)reformista do (neo)liberalismo e em seus mitos nostálgicos da Guerra Fria!

A esquerda que não entende a crise da globalização

Os regimes burocráticos do chamado “socialismo real” foram assimilados pelo mercado mundial e pelo capitalismo há décadas: a China começou sua restauração capitalista nos anos 80, enquanto a ex-URSS se desintegrou com a queda do regime soviético em 1991 e a Federação Russa se converteu a um capitalismo ganguesterista. Desde então, a esquerda referenciada nesses países, perdeu sua bússola estratégica. Ela passou a se organizar em torno de dois critérios tacanhos, um interno, a busca do "poder de estado" (qualquer que fosse esse estado, perdendo qualquer parâmetro de classe), e outro externo, ser contra o “Império”, o imperialismo estadunidense, apoiando qualquer coisa que se confronta com ele. Enquanto o pragmatismo levava a que essa esquerda se adaptasse à globalização neoliberal para formar governos progressistas, social-liberais, de fato subordinados ao “Império”, o desamparo senil gerava um reflexo condicionado “campista”, empurrando-as a apoiar qualquer regime, até mesmo ditaduras sanguinárias (de Sadam Hussein a Bashar al-Assad, de Daniel Ortega a Kim Jong-un), se elas se apresentam como contrárias os interesses norte-americanos. 

A força hegemônica norte-americana, que impulsionou a transição do capitalismo fordista para o capitalismo de plataformas, reorganizou a economia mundial sem fissuras até 2008. Mesmo Putin e as lideranças do Partido Comunista Chinês, neoliberais em suas políticas econômicas, se moviam sob a tutela inconteste estadunidense - ainda que procurassem ampliar sua margem de manobra regional (com Putin mantendo sempre uma coerência - bombardeando tudo que o questionava no que considerava seu quintal, da Chechênia ao Donbas ucraniano, passando pela Geórgia e pela intervenção na Síria). 

A crítica de esquerda à globalização neoliberal, o movimento altermundialista, não conseguiu prevalecer sobre a esquerda terraplanista no quadro de regressão ideológica generalizada do mundo na última década, embora a efervescência social não tenha parado de crescer. Frente à incoerencia do terraplanismo de esquerda (de fato, a "ala esquerda" do neoliberalismo), uma alternativa à globalização e sua falsa utopia do mercado inclusivo foi crescendo nos setores mais reacionários e demagógicos das classes dominantes. Uma extrema-direita nacionalista conservadora, autoritária, racista, xenófoba, neofascista emergiu do crescimento orgânico das políticas neoliberais mais cosmopolitas (Obama, Blair, Lula…), gerando os Trumps, Johnsons e Bolsonaros. Sem a força de gravidade de uma esquerda antissistêmica, esta direita foi capaz de galvanizar o ressentimento de legiões de derrotados pelo avanço do sistema. O Brexit e a eleição de Trump forneceram, em 2016, um eixo para que Modi, Erdogan, Duterte, Orban e muitos outros se referenciarem e legitimassem nas relações internacionais; viabilizou a eleição de Bolsonaro no Brasil. Putin ganhou em Trump o interlocutor que almejava. A globalização cosmopolita perdeu, entre 2017 e 2020, seu centro organizador.

Para Trump, Xi Jinping era o inimigo econômico a ser derrotado e Putin o aliado ideológico. Os paradoxos se ampliaram, porque os chineses e os europeus se tornaram os grandes defensores da ordem liberal contra Trump - ao mesmo tempo que Xi o imperialismo chinês contra os iugures, tibetanos e a cosmopolita Hong Kong e endurecia no enfrentamento econômico com os EUA. A pandemia golpeou ainda mais a globalização, desarticulando as cadeias globais de produção e reforçando políticas nacionalistas e isolacionistas. Porém, contraditoriamente, ela enfraqueceu Trump e ofereceu uma oportunidade para que os democratas de Biden e seu projeto globalista retomassem a Casa Branca. 

A quase totalidade da esquerda, inclusive aquela campista, que morria de amores por Putin e Xi Jinping, torceu, fora e dentro dos EUA, pela eleição do falcão imperialista neoliberal Biden contra o nacionalista neofascista Trump (o aliado de Putin!). Para grande parte da esquerda, como todo o movimento lliderado por Bernie Sanders nos EUA, Biden não era somente uma forma de tirar Trump do poder, mas uma alternativa progressista! Estes “leitores simbólicos” de Biden existem pelo mundo todo e querem, agora, justificar ou substimar o que representa o ataque de Putin contra a Ucrânia argumentando as pressões da OTAN. Achavam que Biden faria o que? Desmontaria o imperialismo estadunidense? Haja confusão!

Não há imperialismos benevolentes! Não podemos aceitar guerras preventivas, nem dos EUA, nem da Rússia!

Uma enorme quantidade de artigos, posts e memes circulam nas redes sociais procurando justificar a guerra de Putin, falando sobre como a OTAN vinha apertando o cerco sobre a Rússia, como existem outras guerras no mundo que não tem a mesma visibilidade, etc. Tudo isso é verdade. Somos inequivocamente e em todos os momentos contra a OTAN, mas agora tratam-se, nesse contexto, de discursos construídos para desviar do assunto; aqui o agressor não é a OTAN, é a Federação Russa e isso não pode ser relativizado. Não vou reproduzir aqui a excelente argumentação de Santiago Alba Rico, à qual remeto o leitor. Em 2003, quando os EUA e a Inglaterra invadiram o Iraque sob a justificativa da existência de armas de destruição em massa, organizamos um enorme movimento mundial de massas contra a guerra. Guerras preventivas são, sob qualquer aspecto, excrescências. 

Além disso, a justificativa final para a invasão da Ucrânia, dada por Putin em seu discurso justificando a guerra, é que a Ucrânia não é uma nação - um precedente igualmente inaceitável nas relações internacionais. Há mais de trinta anos, a própria Rússia reconheceu a existência de um estado ucraniano. Se reconhecemos o direito das nações de disporem de seu próprio destino - e quem decide são os próprios cidadãos dessas nações -, nossa primeira exigência é a retirada das tropas agressoras do país invadido.

Para certas correntes progressistas, tudo que acontece no mundo se dá pela ação ou reação ao imperialismo estadunidense. Toda decisão deveria ser tomada pelo que seria a favor ou contra esse imperialismo, pelo que supõem ser um fantasioso “campo” anti-imperialista e não pela defesa dos interesses dos povos. Ele leva essa esquerda a fazer frente comum com a extrema-direita nacionalista e antiglobalista. A concepção "campista'', errada, torna-se, assim, suicida para a esquerda. Putin está promovendo o expansionismo territorial russo e integra um campo político mundial antiglobalista, conservador e autoritário - além de xenófobo, racista, misógeno, homofóbico… - cada vez mais agressivo. Putin vem mobilizando seus recursos em favor daqueles que compartilham de sua visão de mundo. Entre Trump e Biden, entre Bolsonaro e Lula, ele atuará em benefício de quem? Alguém acha que Bolsonaro e seu filho Carlos Bolsonaro, o chefe do gabinete do ódio, foram a Moscou para negociar fertilizantes? A uma esquerda que acreditar nisso estará jogando “roleta russa”!

II - O básico do mundo para terraplanistas

É preciso destacar algumas definições que são alicerces do mundo e do internacionalismo contemporâneos. As concepções que não veem esses processos básicos distorcem profundamente a percepção da realidade global, sendo terraplanistas em um dos dois sentidos que trabalhamos no início desse texto. 

1. A Rússia de Putin é prisioneira do nacionalismo saudosista do imperialismo grã-russo

Como quer que se caracterize a antiga União Soviética (socialismo real, comunismo, capitalismo de estado, estado operário burocratizado, coletivismo burocrático…), o fato é que ela colapsou em 1991. Essa formação social deixou de existir ao longo da década seguinte, dando origem a um capitalismo gangueterizado de oligarcas que se apropriaram das antigas empresas estatais, transformando-as em corporações privadas. O estado em desagregação foi gradativamente reconstituído para a defesa dos interesses dessa classe por Putin, depois de 1999. O grupo aí encastelado, que investe mais da metade da riqueza que aufere fora do país, estrutura um regime político autocrático. 

A ideologia dominante sob Putin é um nacionalismo conservador nostálgico do passado imperial russo; seu discurso justificando a invasão da Ucrânia é um documento histórico de ressentimento contra o que seriam os erros bolcheviques. Neste sentido, Putin se situa no mesmo campo ideológico de nostalgia de um passado de glória de Erdogan na Turquia face ao império otomano ou, de forma um pouco distinta, Modi na Índia, com a diferença da Rússia ter herdado o arsenal nuclear e a indústria armamentista da antiga URSS. Essas são todas sociedades neoliberais, cujas classes dominantes se movem no capitalismo globalizado - no caso da Rússia, dependente da exportação de combustíveis fósseis. 

O traço distintivo russo é que projeta um imperialismo regional militarista que vem buscando recuperar sua área de domínio externo desde que um estado russo viável se recompôs na passagem para o século XXI. A oligarquia russa e seus associados controlam hoje 10 das 15 antigas repúblicas soviéticas -  com exceção dos três países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), da Geórgia e da Ucrânia. Pudemos ver como isso opera nas recentes crises, do Cazaquistão à Bielorrussia. A Rússia de Putin é apenas outro imperialismo anacrônico e perigoso, com armas nucleares na mão e sem nenhum mecanismo coletivo interno de segurança frente ao novo czar no poder!

2. A China de Xi Jinping: núcleo do mercado mundial globalizado

A incorporação da Rússia e da China foi decisiva para a vaga de globalização iniciada em 1980, abrindo enormes espaços novos de valorização. Enquanto a burocracia soviética estagnava na década de 1970, a China era abalada por enormes lutas internas. Sua elite dominante iniciou uma coabitação com os EUA - a viagem de Nixon a Pequim se deu há exatamente cinquenta anos, em fevereiro de 1972 - e conduziu uma abertura econômica sob Deng Xiaoping depois de 1979. As reformas de mercado na China geraram uma vaga de descontentamento social e um movimento democrático na década seguinte, revoltas que foram esmagadas em 4 de junho de 1989, no Massacre da Praça da Paz Celestial. Desde então, uma classe capitalista chinesa se expandia identificada com o regime do Partido Comunista, transitando da antiga economia de comando para algo que pode ser descrito como um neoliberalismo keynesianiano-autocrático. 

Esta burguesia constrói grandes corporações globais, disputa a vanguarda da inovação tecnológica com os EUA e se projeta na dianteira da economia neoliberal globalizada, enquanto a nova classe dominante russa parasita em um neoextrativismo. Em ambos os casos falar de socialismo, transição ou comunismo é absurdo, a menos que se redefina radicalmente o que isso significa fora da tradição da esquerda marxista (que é o que faz, no Brasil, Elias Jabour com a ideia de “socialismo de mercado”, recolocando a China como modelo para o PCdoB). 

Depois de 2012, com a chegada de Xi Jinping ao poder, a China gradativamente se tornou mais autônoma face aos EUA, que perde as condições de gestão solitária do capitalismo global que mantivera até então. Beijing questiona a unipolaridade, impõe seu governo autocrático sobre as heterogêneas populações do Estado chinês (Tibet, Sinking, Hong Kong…), projeta poder imperial na gigantesca “Nova Rota da Seda”, abre bases militares no exterior (Djibuti), apoia todo tipo de regime autoritário que lhe garante liberdade de negócios (como a sanguinária junta militar de Myanmar) e vem se colocando como defensora maior da globalização que permitiu sua recente prosperidade. É um imperialismo de mão pesada, embora até o momento menos militarizado que o estadunidense ou o russo, mas que amanhã pode colocar a humanidade à beira do abismo se imitar Putin e tentar retomar militarmente Taiwan.

3. As três grandes potências são capitalistas em um mercado mundial integrado

Muitos projetam na Rússia ou na China sobrevivências de um “socialismo” ou até construção de uma nova forma de “socialismo”. Mas as economias de tipo soviético eram economias de comando burocrático, compatíveis com a alavancagem da primeira e da segunda revoluções industriais, mas não com as tecnologias digitais deste século. 

O caracteriza uma sociedade como capitalista é a ação da lei do valor, alocando os seus recursos através da comparação do valor das mercadorias e dos serviços realizados no mercado - não apenas das empresas privadas, mas eventualmente das públicas, das estatais e mesmo de cooperativas. 

A passagem do capitalismo fordista para o neoliberal é marcada pela globalização da ação da lei do valor, que antes operava essencialmente no terreno nacional; os países centrais forçaram a abertura das economias dos demais nos anos 1980-90 e o desmonte das economias de comando relativamente autárquicas entre 1989-91. A competição pela redução dos “custos” nacionais e atração de investimentos, a colocação da força de trabalho dos diferentes países em concorrência entre si, a deslocalização das atividades, as cadeias globais de geração de valor, as corporações de “big tech”, as empresas que descentralizam a produção mantendo centralizado o comando materializam a dinâmica global de valorização. Nela, o capitalismo estadunidense vem perdendo espaço, depois de 2008, para o capitalismo chinês.

A globalização foi lançada pelas políticas econômicas chamadas de neoliberais, iniciadas meio século atrás e consolidadas por Thatcher e Reagan. Contudo elas ganharam outra qualidade neste século, quando a nova onda de inovações tecnológicas ligadas ao digital ganhou capilaridade em todos os planos do tecido social, ampliando a possibilidade de conectividade e cooperação social, sendo apropriadas pelas corporações de plataformas. A dinâmica globalista do mercado mundial torna-se cada vez mais blindada da interferência das políticas nacionais: o individualismo amplificado pelas redes sociais fragmenta o mundo do trabalho e a “nova razão do mundo” estende a lógica da competição da economia para todas as esferas da sociedade. Populações fragilizadas e sem horizonte emancipatório se tornam vulneráveis não apenas aos fundamentalismos religiosos, mas também aos nacionalismos exclusivistas.

Em uma economia globalizada que conduz a humanidade ao colapso ambiental, as potências imperiais voltam a mostrar suas presas. Podem estar caminhando, como sonâmbulas, para um conflito nuclear. Esta economia entrou em uma etapa de estagnação, agravada pela crise pandêmica. Com a China se autonomizando da liderança estadunidense, ocorreu a cisão da classe dominantes dos EUA sobre como lidar com a “ameaça chinesa”. A resposta de Obama foi a Parceria Transpacífico, a de Trump uma guerra comercial. Mas as diferenças eram muito mais profundas; para os nacionalismos conservadores e neofascistas aqueles que detêm o poder buscam utilizá-lo para defender estritamente os seus contra os outros. Abandona-se a busca da hegemonia. O nacionalismo conservador e neofascista é uma constelação de projetos qualitativamente diferente do neoliberalismo globalista, da mesma forma que nos anos 1930 o fascismo era qualitativamente diferente do liberalismo. Confundi-los é mortal!

4. Ocorreu uma cisão nas classes dominantes e o nacionalismo antiglobalista é o vetor de empoderamento da extrema-direita

2008 (o esgotamento da expansão neoliberal), 2012 (o fim da aliança China-EUA), 2016 (a eleição de Trump e o Brexit) e 2020 (a crise pandêmica) redesenharam um mundo novo, para nada admirável, a passagem do capitalismo fordista para o capitalismo de plataformas. 

É uma mutação geopolítica: os EUA, o antigo hegemon, tem que recuar de maneira humilhante (Iraque, Afeganistão…) e está internamente cindido, mas quer preservar seus interesses mesmo com a disputa entre políticas contraditórias desde seu estado; a Rússia nacionalista e autocrática é outra potência em declínio ainda mais acentuado, incapaz de reverter sua decadência econômico-social e buscando, manu militari, preservar um papel na cena internacional; e a China é a potência emergente, que caminha com certa prudência (ao menos até agora!) para se tornar economicamente dominante, a campeã da globalização e do livre-mercado! Toda grande potência capitalista é imperialista - ascendente ou declinante - e, enquanto tal, produz somente sofrimento para povos que agride. 

É uma mutação política: o globalismo (neo)liberal com sua falsa utopia cosmopolita de um mercado inclusivo, depois de questionado à esquerda por um altermundialismo na virada do século, passou a ser desafiado, depois de 2016, por um projeto de extrema-direita, topologicamente análogo ao fascismo nos anos 1920 e 1930. Trump, Bolsonaro e Putin são parte do mesmo vetor político nacionalista conservador e anti-globalista. 

Uma esquerda obsoleta vê apenas os conflitos entre os estados, que projeta equivocadamente como se fossem os conflitos sociais, e recua de qualquer perspectiva internacionalista, distanciando-se do altermundialismo e da reconstrução de uma alternativa sistêmica para a emancipação humana. É, assim, impotente para oferecer um contraponto ao avanço da extrema-direita; surpresos, sem projeto e sem força, progressistas de diferentes matizes pragmaticamente cerram fileiras com os liberais que denunciam, mas dos quais não são tão diferentes na prática. Afinal, é preciso a unidade de todos contra Trump e Bolsonaro!

A confusão é estratégica: como conceber políticas emancipatórias sem partir do princípio que as três grandes potências imperialistas - EUA, China e Rússia - e outras menores estão oprimindo os povos, destruindo a biosfera do planeta, que duas delas são ditaduras autocráticas e que na terceira isso está em disputa (Trump pode voltar em 2024) e que o choque entre elas está levando a humanidade para um impasse civilizatório? Como não compreender que tudo isso não é apenas neoliberalismo, mas que há uma crítica ao globalismo neoliberal pela extrema direita neofascista que o radicaliza em darwinismo social? Trump e Biden, Bolsonaro e Lula não são a mesma coisa, mas somos uma terceira posição estratégica!

III. O ponto de vista universal: a da defesa dos TODOS os povos

Os artigos de Gilbert Achcar e de diversos ativistas da Europa Oriental e a resolução “Não à invasão de Putin na Ucrânia! Apoio à resistência ucraniana! Solidariedade com a oposição russa à guerra!”, publicados neste site (na aba Especial: guerra na Ucrânia), oferecem uma orientação para a solidariedade internacional efetiva que terá que ser desenvolvida nas próximas semanas e meses. 

Hoje, não apenas a fome, a peste e o nacionalismo expansionista recrudesceram, mas o colapso ecológico e a ameaça da guerra nuclear estão construindo um cenário exterminista. Este é o mundo para o qual temos que oferecer uma alternativa sistêmica que, sem ilusões e falsas soluções nos retire da desesperança. As esquerdas que se movem na Terra Plana neoliberal não vêem horizontes alternativos, ainda que parte dela mantenha, esquizofrenicamente, referências ao falecido mundo bipolar e a regimes de tipo soviético. São “esquerdas tanquistas” (Stefanoni), que desejariam voltar a Berlin em 1945, à Hungria em 1956 ou à Tchecoslováquia em 1968. Elas precisam, para justificar sua existência, cegar-se à presença de propostas e projetos anti-sistêmicos, ao altermundialismo, e reduzir sua visão a uma série maniqueísta de pares de oposições. 

É evidente que imperialismos “benevolentes”, um campo antiimperialista e uma suposta China “socialista” não são os únicos mitos das “esquerdas tanquistas”. Sonham com retomar processos de desenvolvimento nacionais, referenciadas no idealizado “modelo chinês”. São produtivistas, hierárquicas e estatistas, associando desenvolvimento das “forças produtivas” (em sua maior parte destrutivas), “classe trabalhadora”, “questão social”, “partido dirigente” e “estado planificador” - problemas e mitos que não vamos discutir aqui. Não compreendem a centralidade nem da questão ambiental, nem da reprodução social e do feminismo, nem a irredutível diversidade do social, nem da internacionalização objetiva da sociedade atual, nem da democracia participativa e da auto-organização social. Não entendem que a única emancipação real é a auto-emancipação.

A radicalização da disputa entre o globalismo neoliberal e nacionalismos conservadores pode levar à desorganização da civilização e, talvez, ao suicídio da humanidade. Mas isso não será combatido com neutralidade ou chamados angelicais pela paz. Só poderá ter outro desfecho que estruturarmos um terceiro vetor internacionalista, ecossocialista e democrático, de solidariedade concreta.

Uma de suas bússolas decisivas é a defesa do direito dos povos disporem de si próprios em uma chave universalista. Contra tropas invasoras, isso se sustenta com a solidariedade material para com a luta do povo com armas na mãos. Isso vale para o Iraque contra as tropas norte-americanas em 2003, serve para o povo de Miyamar contra a junta militar apoiada pelo governo chinês, serve para os ucranianos contra as tropas russas em 2022. E precisa poder servir amanhã para os venezuelanos ou para a população de Taiwan.