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Juventudes trans na encruzilhada do presente

Carta à Teresa, que ainda há de nascer

29 de janeiro de 2022

Céu Cavalcanti, Dôssie Anual da ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Janeiro de 2022.

Teresa,

Começo esses escritos te pedindo desculpas. Tomo emprestado teu nome como ele-mento que me ajuda a, por hora, compor forma ao imaginar destinatária a quem dirigir essas breves linhas que aqui se seguem. Nesse momento enquanto te escrevo você é ainda um pedacinho de matéria humana se desenvolvendo dentro da barriga do seu pai e, ainda assim, fazem poucos dias você foi protagonista de um momento que modifica perspectivas e prioridades, como bem falou sua mãe (minha irmã travesti). Essa semana te vimos pela primeira vez numa tela de ultrassom e isso, dimensiona ainda mais a tua chegada nesse mundo e tempo.

Não nos cabe ainda saber se você será uma pessoa trans, tampouco isso significa que nos cabe pressupor que você será uma pessoa cis, mas fato é que você chegará ao mundo em inícios de 2022 bem no cerne de uma comunidade de pessoas trans. Atravessamos os efeitos de uma pandemia de Coronavírus ao mesmo tempo em que as dinâmicas políticas de casas legislativas e executivas nos últimos cinco anos (potencializadas pelo golpe de 2016), viram cada vez mais à direita num misto confusamente hipócrita de liberalismo de mercado e conservadorismo de costumes. Como um breve registro temporal que nos per-mita colocar em análise os efeitos desses tempos em nossas comunidades trans - espe-cialmente as juventudes - cabe um breve passeio. 

Há uma ousada senhorinha poetisa chamada Wislawa Szymborska que escreve que livro dos acontecimentos está sempre aberto pela metade, de modo que é sempre pre-cário e provisório tentar delimitar os inícios das linhas que produzem o emaranhado do presente. Nessa dinâmica, parece sempre haver retornos. O já citado golpe de 2016 escan-cara aos poucos um Brasil ressentido pelos tímidos avanços que no decorrer da primeira quinzena dos anos 2000 produziram inegáveis crescimentos. Em 2014, como efeito direto de programas de redistribuição de renda básica e da criação e fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social, o nosso país finalmente sai do mapa da fome. Estima-se que nos primeiros 15 anos do século, reduzimos a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%. Junto a isso, como efeito direto de um conjunto de lutas sociais, pautas das diver-sidades começam a tomar espaço em mesas de composição e negociação direta com o governo.

O presente é sempre composto por muitas linhas, Tetê. E se conseguimos aos poucos ir disputando ano a ano acesso, visibilidade e dignidade nos mais diferentes espaços, há algo da ordem de uma política do ódio que foi tomando espaço nas vidas de todes e, nesse momento, nos chega como um atravessamento quase inescapável.

Em 2014 havia um filósofo brasileiro que já afirmava em tons premonitórios que toda a América latina entraria num momento de “expectativas decrescentes”. Ele apontava que com o avanço de políticas sociais dos últimos anos, a redução (ainda que pouca) das desi-gualdades sociais, produziria um contraefeito de acirramento de lógicas antidemocráticas (ARANTES, 2014). Infelizmente vivemos muito rapidamente essa mudança. Vimos nossas expectativas de futuro diminuírem um pouco a cada ano, a cada novo corte, a cada novo pronunciamento dos representantes do país. Depois do golpe de 2016, entramos em uma espiral decrescente de direitos sendo retirados dia a dia, até que, em 2018 uma campanha presidencial passa a fazer uso do discurso de ódio e do pânico moral como principais - e únicas - bandeiras de governo. Ser abertamente contrário à vidas de pessoas LGBTI volta a ser não só possível, como incentivado. Gênero passa a ser o discurso principal de toda a horda conservadora na medida em que, o uso conveniente do falso conceito de “ideo-logia de gênero”, inflamado categoricamente enquanto pânico moral, se compõe como fer-ramenta ideal para a manipulação de massas de manobra. Sim, eles foram maioria e essa constatação tornou um pouco mais difícil as vidas trans no Brasil de 2018 em diante.

O projeto de governo começou a ser sistematicamente cumprido. Já nos primeiros meses de mandato um vídeo circula abertamente quando a então ministra do ministério dos direitos humanos, dança comemorando que no Brasil estaria extinta a “ideologia de gênero” e que a partir dali “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”. A fala imedia-tamente virou piada, mas, enquanto pessoas trans, sentimos na carne o tom de ameaça implícita que em definitivo nunca foi sobre a cor de roupas, mas sobre o enrijecimento da cisgeneridade como única opção de vida. Pouco tempo após, o Decreto nº 9.759 de 11 de abril de 2019 extingue quase todos os conselhos de diretos e de participação social, inclu-sive o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT. Houve à época mobilizações na tentativa de revogar esse decreto, mas sem sucesso. A imagem que metaforiza esse tempo é de descida de ladeira. A cada semana havia novos comentários, ações, revogações que nos levam à exaustão.

Em meio a tudo isso, chegamos em 2020 em uma grande pandemia de Coronavirus que modificou drasticamente nossos modos possíveis de habitar as coletividades. No início, sem saber ainda muito bem o que viria, esperamos passar rapidamente por uma quarentena que de semana em semana segue se estendendo por quase dois anos. Como esperado, as formas de gestão do risco e as proposições sanitárias por parte do governo foram as piores possíveis. Negacionismo somado com perseguição explícita à ciência foram ingredientes para tornar o Brasil o epicentro da contaminação. “Bem vindo ao Estado Suicidário’’ é um texto escrito por Vladimir Safatle que pensa sobre como a gestão da Pandemia radicaliza no Brasil de Bolsonaro a gestão da morte (de algumas pessoas) como produto central da política. Vimos e vivemos Teresa, no decorrer de 2020 e 2021, um contínuo de absurdos que produziram até agora enquanto escrevo o número de 620 mil pessoas brasileiras mortas por COVID-19.

Enquanto isso, populações indígenas são cada vez mais atacadas em seu próprio terri-tório pelo acirramento da violência armada, como também nas vias legais pela proposição de projetos que retiram direitos e garantias dos povos indígenas. Em paralelo, vimos o acir-ramento da lógica militarizada de guerra contra alguns territórios, o que gera nesses últimos anos um aumento de 11% no assassinato de juventudes negras, segundo o IPEA. Inevitável pensar que no fluxo esse cenário os números de assassinatos de pessoas trans também aumentaram em meio a um contexto de complexidades interseccionais que modulam raça, classe e território na dança das precarizações.

Há um paradoxo, Tetê, por um lado temos muito mais visibilidade que em 2016, nossas pautas tem um pouco mais de eco, mas por outro é mais difícil a subsistência imediata. Ali-mentos básicos, moradia, transporte e vestimenta vão, dia a dia, se tornando cada vez mais difíceis e pessoas trans, já sendo um grupo marginalizado pelos impedimentos de acessos, temos em geral, ainda mais dificuldade de garantir nossas subsistências nesses tempos de “crise” e de ódio. As tais expectativas decrescentes desceram mais do que poderíamos imaginar e talvez em décadas nunca foi tão difícil ser jovem como hoje. Uma matéria da folha publicada em junho de 2021 aponta que, pela falta de perspectivas, 47% dos jovens têm produzido o desejo de migrar do país. Esse número generalizado a partir da perspectiva de uma população entendida como cisgênera nos convoca a pensar sobre as juventudes trans. Essa ausência de perspectivas não é fruto “natural” ou ordem divina. É efeito da pro-dução ativa da destruição de garantias institucionais como política de gestão pública. Em nome de uma suposta guerra contra alguns, revogam-se direitos para todes, se destroem as políticas de participação social, implodem-se os espaços democráticos de deliberação e não à toa, Tetê, jogam com os afetos das massas a partir da manipulação do medo e da livre produção de mentiras absurdas. Há uma geometria relativamente linear: o medo é produzido e manipulado, o que a sua vez produz ódio irracional direcionado a “bodes expiató-rios”, o que por sua vez, produz desejo de aniquilamento, de guerra, de destruição e punição desses grupos entendidos como risco. (isso quem me falou foi Pedro Paulo Bicalho ainda no início de 2018). 

Inevitáveis efeitos - acumulamos algumas imagens que sempre nos assombram. Uma delas me acompanha por todo o ano de 2021 e sei que seguirá comigo por muito tempo. Na primeira semana de janeiro, uma fotografia circula nas minhas redes. Nela, uma criança com cabelo preto, amarrado com um coque no alto da cabeça segura uma flor vermelha de hibisco. Keron Ravach tinha apenas 13 anos quando foi brutalmente assassinada com socos, chutes e pauladas na cidade de Camocim, interior do Ceará. A morte de Keron nivela ainda mais para baixo as estatísticas de idade mínima para assassinato de pessoas trans no Brasil. É inevitável às vezes, enquanto sigo distraída a vida cotidiana, me pegar de repente voltando para essa imagem: uma criança tímida numa calçada segurando uma flor de hibisco. O absurdo da hipocrisia posta é que o discurso que definiu as últimas eleições foi em grande medida a ideia de “defesa às infâncias”. Quem defendeu Keron? Ela não con-tava no perfil de infância a ser protegida? Quem se importou com o fato de que sua morte se deu numa via pública, em contextos de precariedade? Quem se importa que ela tenha morrido sozinha, sem suporte, sem socorro, sem defesa? Ah Teresa, eu não queria te falar essas coisas e rezo para que você demore muito tempo a entender o que aqui escrevo.

Preciado (2021), filósofo homem trans, no livro “Um apartamento em Urano” escreveu uma carta dirigida a todo um conjunto de pessoas que ele chamou de crianças da bala, crianças que desde cedo percebem sozinhas que elas próprias são o alvo dos discursos de ódio de suas famílias. Keron foi uma criança cuja bala se literalizou no espancamento fatal. Muitas de nós fomos crianças da bala que, crescemos com o risco de morte incrustado em nós e apesar disso, seguimos nossas vidas desenvolvendo estratégias de esticar um pouco mais a vida em seu limite - sobrevida, sobreviver.

O que dizer às atuais crianças da bala? O que dizer para a atual juventude trans que começa a habitar territórios e produzir a si nesse nosso complexo tempo insalubre? Teresa, se falo em diagonal com juventudes trans mirando em ti é porque talvez a condição de ima-ginação política que por hora ando necessitada, entenda que ao te alcançar como imagem-diálogo, lanço uma flecha em direção a um tempo ainda por vir, um tempo que estamos disputando coletivamente no hoje, um tempo que preciso imaginar como melhor, apesar de ainda tanta lama misturada com sangue. Apesar de Keron, de Roberta e de tantas outras, outros, outres.

Se o futuro é um pouco mais difícil e imprevisível hoje do que foi alguns anos atrás, é urgente pensarmos o efeito desse tempo em nossas comunidades trans, em especial entre aquelas de nós mais vulnerabilizadas pela intersecção de opressões capacitistas, de raça, classe, geração e território. Enquanto nação, esperança em futuros ainda que mínimos é uma dívida nossa com as juventudes trans que vivem no país, que segue sendo o que mais nos mata no mundo todo. Perdão, Tetê, mas mesmo antes de você, eu já andava me sen-tindo tia de toda jovem pessoa trans que conheço. Travestis quando passamos dos 30, talvez, chegamos nessa inevitável percepção. Esse sentimento de tia me responsabiliza de alguns modos e me faz resgatar um trecho de uma música que Ivan Lins escreveu para a geração seguinte. Ele diz: “Perdoem por tantos perigos/ Perdoem a falta de abrigo/ Perdoem a falta de amigos/ Os dias eram assim/ Perdoem a falta de folhas/ Perdoem a falta de ar/ Per-doem a falta de escolhas/ Os dias eram assim.”

Perdoem, jovens pessoas trans. Vocês não deveriam ter que iniciar a vida social tendo que lidar com tanto ódio, com tantos perigos, com a ignorância escolhida como projeto de nação. Deveríamos ter entendido o quanto balas entranhadas produzem sufocamentos. Deveríamos ter entendido que democracia necessariamente implica o reconhecimento e o fortalecimento das diferenças e que tudo isso só se faz com reparação histórica, redistri-buição e com justiça social. Deveríamos ao menos ter entendido que políticas feministas são incompatíveis com a transfobia. Mas nem isso.

Sabe Teresa, lembro agora de uma cena que vivi no encontro nacional do FONATRANS em 2019 na cidade do Rio de Janeiro. Em uma determinada mesa, falávamos sobre con-juntura e muitas pessoas apontavam medo do que viria. Nesse momento, Jovanna Baby levanta e pede a fala. Ela traz com altivez de que se nós, jovens travestis estávamos rece-osas do tempo de hoje, precisávamos imaginar o que foi ter sido travesti nos anos 80. Cer-teira, ela aponta que o Brasil sempre foi um território muito duro para vidas trans, mas que juntas sempre conseguimos desenhar estratégias minimamente possíveis, seja a partir do estado, seja contando unicamente com nossas redes de afeto. Ela lembrava que hoje ao menos já conseguimos colher pequenos frutos de lutas coletivas das gerações anteriores, nos possibilitando inclusive dispor de ferramentas outras na disputa por vidas melhores para nós e às nossas. A memória viva de Jovanna Baby, agora eternizada no livro de sua autoria Bajubá Odara é importante ferramenta para as gerações seguintes de pessoas trans.

A pista de vida apontada por Jovanna ganha forma na afirmação de Viviane Vergueiro (2018) ao dizer “sou travestis”. O que aqui me chega é bem similar ao que Audre Lorde já assinalava, de que não há libertação fora da comunidade, só há no máximo uma trégua precária e temporária entre alguém e sua opressão. Se sufocamento é a grade metáfora do nosso tempo, a produção de respiros passa a ser tarefa política das mais fundamentais e isso, desconfio, só se faz mais possível em coletivo. Em comunidade podemos construir micromundos onde nossas vidas são viáveis, celebradas e amadas. Paradoxo das bolhas, Tetê. Se o mundo se faz as vezes impossível, a construção de redes subterrâneas entre nós é fundamento estratégico de fortalecimento e produção de vida. Jota Mombaça (2021) cansa de escrever para despertar a empatia de quem nos mata e passa a escrever àquelas de nós que vibram e vivem apesar de. Jota profetiza:

“Não vão nos matar agora porque ainda estamos aqui. Com nossas mortas amontoadas, clamando por justiça, em becos infinitos, por todos os lugares. Nós estamos aqui e elas estão conosco, ouvindo essa conversa e nutrindo o apoca-lipse do mundo que nos mata. (p 13-14)

Não vão nos matar agora, permaneceremos aqui, ainda que nossa existência física se esvazie, permaneceremos como memória sutil encarnada no corpo de todas as que vierem depois de nós. E elas, eles, elus, ainda que possa ocorrer de não herdar políticas públicas estruturadas que garantam plena dignidade e vida, herdarão não somente nossas lutas, mas também herdarão nossas alegrias, nossos amores, nossas esperanças e sonhos. Mas agora enquanto ainda é o nosso tempo, enquanto ainda estamos aqui, marcando que não vão nos matar agora, lembro de minha querida Jaqueline Gomes de Jesus que em 2017 escreveu que: “Seguimos sonhando, amando e realizando, oxalá sendo sonhadas, amadas e realizadas. Nossa luta e nossa vitória são todo dia!”

Há um estranho mito cisgênero que diz que homens produzem pensamento e mulheres sentimentos. Esse mesmo mito diz que travestis não teríamos capacidade para produzir nenhum dos dois. Em alguma medida, Tetê, percebo agora enquanto te escrevo que esse texto foi uma tentativa de operar as duas dimensões ao mesmo tempo. Não foi planejado e talvez me seja até inevitável. Nessa carta cifrada que escrevo às juventudes trans penso ser fundamental afirmar a radicalidade de nossa presença viva no hoje, apesar de tudo. Em nossa carne trans, todes estão aqui conosco a todo momento – todes que já se foram, todes que ainda virão. Se os tempos andam duros, que reaprendamos das nossas mais velhas as artes de habitar as brechas e escorrer pelos possíveis. Que possamos, tal como nos ensina o adinkra Sankofa a caminhar para frente olhando para trás, mas levando na boca o sagrado ovo que guarda o futuro.

Todos os dias tenho a convicção de que minha vida, com todo o afeto, reconhecimento e possibilidades em que ela se dá materializa o impossível de gerações anteriores. Teresa, tua existência como criança filha de um casal transcentrado e que chega cercada numa grande comunidade de afeto e acolhimento me é um mundo absolutamente novo. Você já encarna o meu próprio impossível... e essa travesti emotiva que tem a sorte de ser sua tia e madrinha já te ama e agradece muito por isso.

Que sejam, pois, nossos impossíveis que nos produzam o desejo de permanência  e articulação.

Com amor e esperança em dias melhores, Céu.

 

*Céu Cavalcanti é travesti, pernambucana, psicóloga. Atualmente reside no Rio de Janeiro e é doutoranda em psicologia pela UFRJ. Vice-presidenta do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Integra a Articulação Nacional de Psicólogues Trans (ANP Trans) e compõe a diretoria Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) na gestão 2022-2023.

 

Referências

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014

JESUS, Jaqueline Gomes de. O simples fato de Jesus ser uma travesti. Disponível em: https://azmina.com.br/colunas/o-simples-fato-de-jesus-ser-uma-travesti/. 2017. Acesso em 30/11/2021. 

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano : crónicas da travessia - 1ª ed. - Arcozelo : Bazarov, 2020

SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao estado suicidário. Disponível em: https://www.n-1edi-coes.org/textos/23. 2021. Acesso em 30/11/2021. 

SZYMBORSKA, Wisława. Poemas — São Paulo : Companhia das Letras, 2011.

SILVA. Jovanna Cardoso da. Bajubá Odara: resumo histórico do nascimento do movi-mento social de travestis e transexuais no Brasil – Picos, PI: Jovanna Cardoso da Silva, 2021.