Voltar ao site

Liberalismo mutante: como a The Economist muda a história

Poucas publicações se destacam tanto na defesa do liberalismo contra todos os seus adversários como a anglo-saxã The Economist, porta-voz do capital financeiro

20 de setembro de 2020

Vicente Ferreira, Ladrões de Bicicletas, 16 de setembro de 2020

Poucas publicações se terão destacado tanto na defesa do liberalismo contra todos os seus adversários como o The Economist. Na sua edição original, prometia-se aos leitores “artigos originais, nos quais os princípios do livre comércio serão rigidamente aplicados a todas as questões da ordem do dia”. O Economist funcionou desde o início como porta-voz da versão dominante do liberalismo, sendo que o anonimato dos artigos e a posição política assumida o tornam mais uma revista do que um jornal, o que se expressa no tom confiante e incisivo dos artigos – não por acaso, um editor aconselhava os recém-chegados à redação a escrever “como se fossem Deus”. No entanto, isso não implica que esta versão do liberalismo não tenha sofrido mudanças ao longo dos anos. É essa história de contradições e mudanças de rumo, acompanhadas pela mudança de editores, jornalistas e proprietários, que o historiador Alexander Zevin conta no seu livro “Liberalism at Large”, publicado no ano passado.

O Economist foi fundado em setembro de 1843 por James Wilson, nascido numa família abastada de industriais escoceses. Wilson, que inicialmente estudara para ser professor, mudou para Economia e se instalou como empresário em Londres, lançou-se no mundo do jornalismo com um panfleto sobre o impacto nocivo das Leis dos Cereais, as taxas impostas pelo Reino Unido para proteger os cereais britânicos da concorrência estrangeira. O debate marcou os primeiros anos da Revolução Industrial: de um lado, os conservadores que apoiavam a manutenção das tarifas para proteger os interesses dos senhores feudais; do outro, os liberais, partidários do livre comércio e, por isso, da abolição das barreiras existentes, o que favorecia industriais e empresários. Wilson entrou neste debate com um argumento inovador: o de que, contrariamente ao que fora defendido até então, a abolição das Leis dos Cereais seria benéfica para todas as classes, incluindo os proprietários das terras, já que o livre comércio geraria riqueza suficiente para os compensar (os conflitos entre classes sobre a distribuição dos recursos foram cuidadosamente omitidos no panfleto). A ideia deu-lhe fama e valeu-lhe os contactos certos no Partido Liberal – alguns, como Richard Cobden ou John Bright, viriam a financiar a primeira edição do Economist. Desde então, o público leitor quase não parou de crescer, sobretudo na Europa e nos EUA.

Wilson aproveitou a revista como rampa de lançamento para a política – chegou ao parlamento poucos anos depois, seguindo-se os cargos governamentais no Conselho da Índia, Tesouro e Conselho do Comércio. Outros editores seguiriam os seus passos. A consistência ideológica e o alinhamento da revista com o liberalismo dominante em cada contexto explicam, aliás, boa parte do seu sucesso. Se é verdade que os artigos adquiriram contornos “triunfalistas” após a queda da União Soviética em 1989, como escreve David Runciman no Financial Times, não é menos verdade que o jornal nunca manifestou grandes dúvidas sobre o lado da história em que se quis colocar – só nos primeiros anos, destacou-se pela defesa da não-intervenção do Estado durante a crise da batata na Irlanda (que matou mais de um milhão de irlandeses à fome) e pelas críticas severas às primeiras leis que limitavam a jornada de trabalho das mulheres e crianças nas fábricas a 12 horas diárias, o que a revista classificou como “confuso, ilógico e contraproducente”, já que prejudicaria a competitividade britânica e poria em causa os postos de trabalho. Wilson via o livre comércio como solução milagrosa para a “ignorância, depravação, imoralidade, irreligião, […] carência, pobreza e fome”, algo que “faria mais do que qualquer outro agente visível para expandir a civilização”. Confiança inabalável nos mercados, foi essa a matriz do Economist desde a origem.

A sua história não está livre de contradições. Um dos aspetos mais controversos é a relação da revista com o autoritarismo: desde a defesa das incursões imperiais britânicas na Ásia, passando pelos elogios ao governo de Mussolini em Itália, pelo apoio a golpes de estado orquestrados pela CIA na América Latina e ainda pela defesa das guerras do Vietname, Afeganistão e Iraque, o Economist raramente hesitou na escolha dos lados. A opção valeu-lhe críticas internas – Hugh Brogan, então membro da redação, caracterizou a cobertura feita pelo jornal à guerra do Vietname como “pura propaganda da CIA” – mas serviu também para garantir a sua proximidade ao poder. Houve uma exceção relevante: a entrada do Reino Unido na 1ª Guerra Mundial em 1914, consistentemente criticada pelo editor Francis Hirst como um “crime contra a razão económica, fatal para o fluxo de comércio e de crédito”. A divergência de Hirst em relação ao establishment custar-lhe-ia o cargo na revista.

Se a estrutura do império britânico e, mais tarde, da hegemonia norte-americana é indissociável do processo de acumulação de riqueza, também o é da versão dominante do liberalismo, simultaneamente adotada e promovida pelo Economist. Foi isso que levou Johnny Grimond, editor de assuntos externos durante quatro décadas, a despedir-se da redação em 2012 com a certeza de que o Economist “nunca viu uma guerra de que não gostasse”. Esta posição conservadora estendeu-se às revoluções a partir dos anos 60: sobre a revolução portuguesa de 1974, o máximo que o jornal conseguiu foi pedir que não se fizesse “de Portugal uma nova Cuba”, apoiando Spínola e o movimento reacionário contra o “golpe controlado pelos marxistas”. Toda uma visão do mundo.

A ascensão do sistema financeiro também é decisiva para a evolução do liberalismo do Economist. A revista, cujos jornalistas estavam habituados a frequentar os corredores da City (Londres) e de Wall Street (EUA), defendeu entusiasticamente a expansão da finança, o desmantelamento da regulação implementada no pós-guerra e a “independência” dos bancos centrais, que deveriam abster-se de interferir frequentemente no funcionamento do mercado. Apesar disso, durante o profundo choque provocado pela crise do subprime (2007-08), quando o colapso dos mercados financeiros deu origem à maior recessão dos últimos cem anos, o Economist não teve dúvidas: “quando o sistema financeiro global pára, só os governos podem recolocá-lo em funcionamento”.

Zevin vê a atuação da revista durante a crise como uma espécie de “estabilizador automático” do pensamento liberal, capaz de acomodar e justificar medidas intervencionistas na resposta à crise sem colocar em causa os fundamentos da ideologia. A defesa da desregulação financeira rapidamente voltou a ser tema dominante. E nem o aumento dramático da desigualdade de rendimento e riqueza nas últimas décadas leva o Economist a abandonar a fé em soluções liberais, como o reforço das medidas de defesa da concorrência e a remoção de “barreiras” no mercado de trabalho. Reforçar a função redistributiva dos Estados e taxar as fortunas dos mais ricos não parecem entrar neste lote de medidas.

Numa entrevista recente, Zevin definiu o liberalismo britânico no século XIX como um “desenvolvimento único” que casou os “princípios políticos do estado de direito e das liberdades civis” com as “máximas económicas de livre comércio e livres mercados”. Como se vê, o pensamento liberal evoluiu e moldou-se de forma a acomodar o ímpeto imperialista europeu, a racionalizar a ascensão do sistema financeiro e a abraçar a globalização como motor do progresso, sempre acompanhado (e muitas vezes impulsionado) pelo Economist, que cedo percebeu que contar a história também é influenciá-la. Não há, por isso, grandes dúvidas de que o triunfo do liberalismo deve muito a quem percebeu como tornar a sua difusão eficaz: escrever “como Deus” e raramente olhar para trás.