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Lições dos vizinhos 2: construir o poder popular na sociedade

15 de junho de 2021

José Correa Leite, 15 de junho de 2021

As décadas posteriores ao colapso da União Soviética repetem, por todo o mundo, um movimento pendular entre o espontaneísmo de fortes movimentos de massa horizontais, de um lado, e a integração vertical às estruturas estatais, de outro. O resultado tem sido, de um lado, a incapacidade de acumular organização e projeto para o agenciamento da luta revolucionária; de outro, a atuação de partidos reformistas, hierárquicos e caudilhistas, e seus governos, que têm reduzido sua atuação ao possibilismo e à micro-reformas, logo recuperadas pelo sistema. Mas, na América Latina, a oscilação de experiencias entre a doença infantil e a doença senil, parece caminhar para saltos de qualidade e apontar para uma nova síntese estratégica. 

Zapatismo e altermundialismo

O primeiro movimento revolucionário de impacto global da nova era foi o levante zapatista de 1994. Era um contraponto direto à grande referência para os socialistas nos anos 1980, a revolução centro-americana que, depois da vitória sandinista na Nicaragua, convulsionou El Salvador e Guatemala (onde produziu o genocídio do povo maia ixil). Derrotada, está hoje esquecida, embora naquela conjuntura aparecesse como uma reatualização da revolução cubana e influenciasse mesmo a formação do PT brasileiro. As lições deste novo fracasso trágico do castrismo levaram a que o protagonismo fosse deslocado das vanguardas marxistas armadas para os povos indígenas auto-organizados em Chiapas, com os escritos do subcomandante Marcos circulando o mundo pela recém-aberta internet.

Esta foi uma inspiração forte - junto com os protestos do “Reclaim the Streets” - para o movimento contra a globalização neoliberal que emergiu espetacularmente em 1999, bloqueando a reunião da OMC em Seattle. A curva de aprendizagem do movimento altermundialista foi muito rápida, com protestos sendo organizados em todas as grandes atividades das instituições da “classe de Davos” - culminando nos protestos de julho de 2001, durante o G8 de Gênova e as mobilizações contra a invasão do Iraque em 2003. A ambição inovadora do altermundialismo deve muito de seu vigor ao movimento dos piqueteros argentinos, que na época parecia explodir com a hegemonia do peronismo na crise de 1999-2002, com sua palavra de ordem “que se vayan todos” (que repicariam, quatro anos depois, na “revolução dos pinguins”, a mobilização dos estudantes secundaristas chileno). 

TINA: o progressismo como forma regional do neoliberalismo

Simultaneamente, iniciativas de natureza distinta emergiam com as vitórias eleitorais e a chegada ao governo de Hugo Chávez na Venezuela em 1999 e de Ricardo Lagos no Chile em 2000, logo se propagando por todo o continente na “onda progressista”. Entre o moderado socialista chileno e os piqueteros argentinos havia um abismo que a formação do espaço altermundialista do Fórum Social Mundial procurou superar em janeiro de 2001. Os comícios em Porto Alegre, no FSM de 2003, de Lula (recém eleito e já em viagem para Davos) e Chávez pareciam apontar uma disjuntiva entre uma maré rosa e uma maré vermelha na América do Sul, que logo se revelou falsa. O boom das commodities enquadrou todos nos tons moderados do progressismo - uma continuidade da Terceira Via de Bill Clinton e Tony Blair, que aceitava a máxima de Thatcher de que “não existe alternativa” (There is no Alternativa - TINA) à globalização. 

Por todas as partes o vigor do neoliberalismo levou ao consumismo e ao individualismo exacerbados. Mas também a uma perda de legitimidade das instituições liberais, capturadas pelo dinheiro e esgarçadas pela adesão das esquerdas ao mercado como marco estrutural da vida humana. O social-liberalismo petista tinha um projeto para a América do Sul - a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA) - que enquadrou decisivamente todos os matizes do progressismo e mostrou-se mais um mecanismo de saque dos bens comuns dos povos originários do continente. E reforçou as bases sociais do conservadorismo e da sociabilidade neoliberal, do "progressismo canibal", como já discuti longamente em outro texto.

De 2009 a 2013: a volta do pêndulo

Uma resposta alternativa continental a esquerda começou a ser construída no FSM de Belém, em janeiro de 2009 - mesmo ano da fracassada COP 15 de Copenhague, em dezembro - e da Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra, em Cochabamba, em abril de 2010. Esse foi o ponto em que se consolidou, na fórmula de Maristella Svampa, o “giro ecossocial dos movimentos sociais latino-americanos” e o protagonismo indígena na luta contra o neoliberalismo, com consignas como “Bem Viver”, interculturalidade, autogoverno territorial e “Estado Plurinacional” se popularizando nas vanguardas pelo mundo afora. Foi um processo que dialogou com a experiência de povos sem estado de outros continentes, como curdos e catalões.

Ela se fortaleceu quando o boom das commodities se esgotou depois de 2008 e as alianças conservadoras corroeram a margem de manobra dos progressismos. O pêndulo se movia novamente na direção dos movimentos autônomos - e agora globalmente. Uma nova vaga de radicalização dos movimentos sociais se desenvolvia: os protestos anti-austeridade na Islândia e na Grécia foram seguidos da Primavera Árabe, dos Indignados (o 15-M espanhol, com sua consigna de “democracia real ya”) e do Occupy Wall Street, que mobilizaram milhões de pessoas entre o final de 2010 e 2012, ecoando também no Canadá, México, Colômbia e, em junho de 2013, Brasil. Foram movimentos que se articularam cada vez mais pelas redes sociais, em sociedades onde a governamentalidade neoliberal desenvolve processos de subjetivação cada vez mais individualistas e emotivos, moldados no eu como empreendedor, passíveis de apropriação pela extrema-direita. Zeynep Tufekci chamou a atenção tanto para a natureza irrecusável destes processos de redes como para a fragilidade do poder que deles emana. Apesar disso, toda vez que se tentou recuperar ou institucionalizar esses movimentos em experiências de governo de gestão da crise (Syriza, Podemos…), o resultado foi acachapante. Da doença infantil se recupera; a doença senil leva ao estado vegetativo ou à morte.

O balanço de 2013 no Brasil é exemplar da força deste movimento pendular, em que a ação autônoma das massas passa apresentada pelo progressismo como uma conspiração da direita e do imperialismo. O que temos, de fato, é a incapacidade das esquerdas institucionalizadas e parasitadas no Estado de desenvolverem políticas mais radicais de democratização e distribuição de renda e poder, de ruptura com o sistema, perdendo legitimidade perante movimentos de massa autônomo e abrindo espaço para forças de direita que agora disputam a luta de massas. A mesma narrativa da conspiração imperialista passa a ser apresentada, desde então, toda vez que movimentos poderosos emergem à esquerda do progressismo - vide a candidatura correista de Arauz contra Yaku Perez, pelo Pachakutik à frente de uma ampla aliança indígena, feminista e ecologista no início de 2021.

Os limites do progressismo e a ofensiva da extrema-direita

As direitas continentais passaram a adotar, na disputa pelo Estado com o progressismo que se abriu depois de 2008, uma nova tática, com o uso do lawfare e de golpes institucionais: Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). Mas isso ganha um novo significado na medida em que o projeto da globalização neoliberal passa a ser globalmente contestado por um projeto político global, o nacionalismo conservador com traços neofascistas - que chega ao poder com Trump na Casa Branca em 2016, mas em dialogo com o Brexit e Johnson, com Erdogan na Turquia, com Modi na India, etc. Este é o marco onde Bolsonaro ganha a eleição presidencial de 2018 no Brasil - disputando com o PT percebido pela população como a encarnação do "sistema". 

Um quarto de século de fusão do PT com as instituições de um estado com fortes traços oligarquicos - iniciada no governo Olivio Dutra, no estado do Rio Grande do Sul em 1989 - cobram seu preço. O PT esteve por 16 anos à frente do governo central, em aliança com praticamente todos os setores aplicaram o golpe de 2016, e não foi capaz de avançar em nenhuma reforma estrutural da sociedade brasileira, desconstruindo as bases sociais que tinham feito do partido uma ferramenta política útil para as esquerdas.

Mas a América Latina não superou o movimento pendular. López Obrador (AMLO), no México; Alberto Fernandez, na Argentina; o esforço fracassado de Andrés Arauz (e Correa), no Equador - todo apontam para a repetição do círculo vicioso do caudilhismo e do progressismo na região. Persiste o impasse do bolivarianismo na Venezuela, fusionado com a boliburguesia do país. 

O amadurecimento estratégico

O fato novo é que, ao lado do progressismo, temos agora novas de experiências de auto-organização em processos de luta muito massivos pelo continente, em países como Argentina ("Ni una a menos"), Chile, Colômbia, Bolívia (ainda que a crueza das lutas tripartites pelo poder no interior do MAS boliviano não tenha entreguem sua última palavra) e mesmo Peru, disputando uma outra relação com com o Estado. Vimos no Equador uma aliança de indígenas, feministas e ecologistas desafiar o correismo e se tornar o principal partido do país. Observamos no processo chileno elementos de uma nova cultura política que remonta aos processos de 2006, mas que soube perseverar desde então, e conseguir expressar estas novas alianças sociais e políticas no processo constituinte. Elas parecem indicar - para além de suas especificidades -, um caminho para as forças anti-sistêmicas, se movendo entre o autonomismo radical e o reformismo eleitoreiro. O Perú será, caso Pedro Castillo consiga efetivamente ser empossado no governo, um novo laboratório privilegiado de disputa destas tensões opostas - que devemos acompanhar sem demasiadas ilusões, mas não de forma descompromissada, como mostram Maristella Svampa e Pablo Stefanoni.

O mergulho nas instituições estatais pelo continente vem se tornando, em geral, bem menos ingênuo do que no Brasil, país que tem uma forte tradição de conciliação entre as elites. As eleições e a participação institucional vem sendo consideradas, cada vez mais, não como um fim em si mesmo ou a solução dos problemas, mas como parte da solução, em uma equação que, se não for adequadamente respondida, sabe-se, coopta, neutraliza e destrói os movimentos sociais e as esquerdas antissistêmicas. O centro de gravidade está na ação direta das massas, cada vez mais concebidas como coalizões interseccionais e ecossociais de movimentos autônomos frente aos partidos políticos e sua dinâmica de eleições periódicas e disputas do poder pelo poder por lideranças caudilhistas. 

Nos anos 1980 e inicio dos 1990 discutiu-se muito no Brasil, nos marcos dos debates estratégicos que o PT fez sobre o fracasso do governo de Unidade Popular chileno, a ideia de que a tarefa do partido seria tomar o poder, mas auxiliar a construção de poder popular autônomo a partir das organizações sociais. No processo de integração estatal e burocratização que se seguiu não se fez nenhuma coisa nem outra. Mas o tema da construção do poder popular segue ativo no continente, ganhando uma nova atualidade.

Trata-se de um aprendizado histórico que nos ajuda a últrapassar os limites do “paradigma de Outubro” e trabalhar pela invenção das formas contemporâneas de superação do sistema. Os movimentos sociais e a ação autônoma das massas, se querem perdurar, devem suspeitar da ação governamental do Estado capitalista, recusar a cooptação pelo jogo eleitoral e pensar-se com, mas principalmente também contra e para além do Estado, devem constituir-se como poder.