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Luzes e sombras em Kollontai e a libertação das mulheres

31 de março de 2022

A partir das Conferências de 1921 na Universidade Sverdlov, Jacqueline Heinen avalia forças e fraquezas do pensamento de Kollontai. Isto não implica subestimar a importância do seu combate porque de todos os dirigentes revolucionários do princípio do século foi quem nos legou a obra mais rica sobre a questão das mulheres.

Alexandra Kollontai: um nome que o movimento feminista tornou familiar. No início dos anos 1970, contudo, a maior parte dos seus escritos eram desconhecidos para o público francês e para o de outros numerosos países por não terem sido traduzidos. A obra daquela que os livros de história, no Ocidente, apenas mencionavam enquanto “primeira mulher embaixadora” e cujas teorias tinham sido cuidadosamente deformadas, truncadas (mais frequentemente ainda “esquecidas”) pelos historiadores estalinistas, começavam apenas então a surgir na sua riqueza e complexidade. Nas suas contradições também.

A publicação das Conferências sobre a libertação das mulheres – exposições das 14 lições dadas por Kollontai na universidade Sverdlov em 1921 e que eram dirigidas a trabalhadoras e camponesas, membros ou simpatizantes próximos do Partido bolchevique (1) – contribuiu para fazer compreender melhor o seu pensamento, em particular as posições que ela desenvolvia nessa época (2).

1921: é o ano do IIIº Congresso da Internacional Comunista, cujas teses marcam uma viragem decisiva na orientação dos partidos comunistas. Face ao falhanço das grandes greves em França, Grã-Bretanha e Itália e à derrota da revolução alemã em março desse mesmo ano (elementos aos quais se junta o fracasso do exército vermelho face a Varsóvia), começa a impor-se a convicção, entre os delegados ao Congresso da Internacional Comunista e nas fileiras dos bolcheviques, que as análises anteriores sobre um ascenso revolucionário rápido nos países capitalistas pecava por excesso de otimismo. Os partidos comunistas tomam então consciência da importância, para eles, de se aliar às outras correntes do movimento operário, avançando com uma “tática de frente única”.

1921: é igualmente um ano particularmente difícil para o Partido bolchevique, confrontado com uma crise económica e obrigado, com o recurso à “Nova Política Económica”, a rever as medidas de coletivização e socialização implementadas anteriormente. (3)

1921: é, por fim, o ano do levantamento de Kronstadt e do voto, no Xº Congresso do Partido bolchevique, da resolução que proibia a formação de qualquer tendência ou fração interna no partido. Esta medida visava antes de mais a Oposição Operária. Os dirigentes bolcheviques temiam que esta colocasse em questão a disciplina interna e enfraquecesse o partido, enquanto estava confrontado com a derrocada da economia e com o desenvolvimento de correntes políticas hostis à direção revolucionária.

Ora, Kollontai tinha dado o seu apoio total às teses da Oposição: ela tornou-se mesmo um dos seus principais porta-vozes redigindo uma brochura destinada a divulgar amplamente as ideias dos seus iniciadores. Em nome da democracia e do papel que os trabalhadores devem desempenhar no controlo da economia, Kollontai e o seu grupo colocavam em causa não apenas a ausência de poder de decisão dos sindicatos, o poder todo-poderoso do Partido e as tendências para a burocratização daí decorrentes, mas rejeitavam totalmente a orientação proposta no plano económico com a introdução da NEP.

É este contexto que é preciso ter em mente quando se aborda a leitura das conferências pronunciadas na universidade Sverdlov. Por um lado, alguns sublinhados surpreendentes na boca de Kollontai que evoca irresistivelmente uma tendência ao produtivismo não poderiam ser explicados sem fazer referência aos esforços da direção bolchevique para obter um aumento da produtividade. Por outro, alguns não-ditos, entre os quais o lugar de pouco destaque atribuído aos temas da sexualidade e da família, caros porém ao coração da autora da Nova Moral e a Classe Operária, estão aí para mostrar que, ainda que oposicionista, Kolontai pensava seu dever expor as posições maioritárias do partido.

Que a sua abordagem deste período esteja marcada por um otimismo sem limites sobre as perspetivas da revolução mundial não deveria surpreender: as suas conferências têm lugar entre abril e junho de 1921, nas vésperas do IIIº Congresso da IC e muitos eram aqueles que, entre os dirigentes bolcheviques, não tinha ainda ideia da dimensão do refluxo que marcava a luta da classe operária a nível internacional.

O conteúdos destes cursos surge como muito significativo na medida em que abordam a maior parte dos problemas relativos à opressão e à exploração específica das mulheres tal como tinham sido debatidos no partido bolchevique e em que dão conta da riqueza do pensamento de Alexandra Kollontai, tal como dos seus conhecimentos históricos e antropológicos sem igual no início do século (sejam quais forem, porém, os erros factuais no plano histórico, as imprecisões ou interpretações duvidosas que aí possam ser encontradas).

Apesar dos seus limites e das críticas que lhe possamos dirigir à luz das investigações que se desenvolveram na esteira do movimento feminista, a abordagem de Kollontai nestas apresentações difere da maioria dos textos da época na sua vontade de fazer uma análise global da opressão das mulheres no sistema capitalista, antes de chegar às tarefas que ela apresenta aos revolucionários. Aderindo aos fundamentos da teoria marxista, desenvolve um ponto de vista crítico sobre certos pontos, nomeadamente a propósito das teses de Engels para quem a origem da opressão é concomitante à da família e da divisão da sociedade em classes. Qualquer que seja o tipo de sociedade estudado, afirma, o estatuto social das mulheres é determinado antes de mais pelo papel que desempenham na produção (na agricultura em primeiro lugar).

“Muitos são da opinião de que o estado de servidão e inferioridade da mulher é paralelo à introdução da propriedade privada. É falso! É verdade que a propriedade privada implicou a colocação da mulher sob tutela mas unicamente onde, devido à divisão do trabalho, ela tenha perdido o seu papel na produção. […] Formalmente, isto representou uma viragem num processo no decurso do qual a mulher pouco a pouco foi cortada do trabalho produtivo. Mas esta evolução tinha começado a partir do comunismo primitivo”.

Ao contrário de Engels, que descreveu o matriarcado como uma “idade de ouro” para as mulheres, deixando entender que se tratava de uma etapa mais ou menos universal no desenvolvimento das sociedades, Kollontai acentua a desigualdade do processo que conduz à dominação do grupo dos homens sobre o grupo das mulheres (quer se tratem de tribos nómadas ou sedentárias, caçadoras ou agrícolas, de acordo com o ambiente ecológico, etc.).

“Alguns investigadores enganam-se quando veem a origem da perda definitiva dos direitos das mulheres nas formas do casamento: não é a forma do casamento mas antes de mais o papel económico das mulheres que as conduz à situação de dependência nas tribos nómadas e de pastorícia”.

Enquanto que no Egito as mulheres tinham um certo número de direitos e privilégios, devido aos papel determinante que desempenhavam na agricultura numa época em que a sociedade está já dividida em castas e classes, ela observa que, em algumas sociedades pré-classistas, “a captura da mulher por uma tribo estrangeira significava evidentemente uma perda dos seus direitos igualitários”.

Quem não vê aqui as premissas do debate que, nos anos 1970, irá ocupar muitos antropólogos marxistas sobre a origem da opressão das mulheres e o período de transição entre as sociedades de subsistência e a sociedade de classe? As contribuições de A. Kolllontai não ficam por aí. Sobre a Idade Média, ela tenta, através de exemplos precisos, destacar a combinação de fatores que determinam o estatuto das mulheres de acordo à classe à qual pertencem e de acordo com o seu papel na produção.

Evocando a situação bastante excecional das mulheres artesãs que dominavam profissionalmente um dado número de guildas do século XII ao século XIV, ela mostra, no entanto, como a sua relativa independência económica nunca foi acompanhada por uma real igualdade de direitos em relação ao homem dentro da família (mesmo que o seu destino pudesse parecer invejável para as mulheres da nobreza ou da burguesia mercantil que eram totalmente dependentes dos seus maridos).

Nas aulas em que aborda os efeitos do desenvolvimento capitalista quanto ao papel e ao estatuto das mulheres, Kollontai insiste antes de mais nas condições de trabalho atrozes da maior parte das operárias quer trabalhassem em casa ou na fábrica. Evocando as resistências das organizações do movimento operário em tomar conta da defesa desta parte sobre-explorada do proletariado, assim como das próprias mulheres em sair do lar para a manufatura, visivelmente sobre-estima as consequências da entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho. Quer se trate das suas expetativas sobre a tomada a seu cargo das funções tradicionais da família por instituições externas, a igualdade da situação profissional entre homens e mulheres que deveria resultar da atividade remunerada destas, ou da forma como, pensa, as resistências mencionadas serão vencidas, Kollontai faz prova do mais belo otimismo.

“Já não é possível uma volta atrás […] O que é que a mulher pode procurar na família quando uma grande parte das suas funções tradicionais são desde há muito assumidas por instituições exteriores a ela? […] As forças de trabalho são redistribuídas. Os homens penetram nos setores tradicionalmente femininos e as mulheres entram nas profissões masculinas. Esta redistribuição só tem uma causa: a mecanização da produção. […] Esta conduz a uma igualdade de situação entre homens e mulheres o que leva ao reconhecimento da igualdade social da mulher e do homem.”

Se ela mostra aqui certas tendências inerentes ao desenvolvimento capitalista, retoma sobretudo a previsão de Marx e Engels de uma rápida dissolução da família como consequência do crescimento das forças produtivas. Em meados do século XIX, as jornadas de trabalho de quinze horas e mais para mulheres e crianças, muitas vezes acompanhadas pelo desemprego dos homens que ficavam em casa, as condições de habitação com oito ou dez no mesmo quarto e a ausência de vínculos afetivos estruturados pela unidade familiar apareciam como sinais das transformações sofridas pela instituição familiar dentro do proletariado. Podemos, assim, compreender que Marx e Engels, impressionados com as condições de vida do proletariado dos anos 1840-1870, tenham especulado sobre o desaparecimento iminente da família.

Isso era, no entanto, não ver que a burguesia e o patronato tinham todas as vantagens em manter a família para assegurar, ao menor custo, a reprodução da força de trabalho. Não foi ver a importância desse corpo como um lugar privado para a socialização dos indivíduos e sua inculcação dos valores dominantes garantindo aos capitalistas uma força de trabalho dócil (espírito de propriedade, competição, individualismo etc.). Era não ver a importância desta instância como lugar privado de socialização dos indivíduos e de inculcamento dos valores dominantes assegurando aos capitalistas uma mão de obra dócil (espírito de propriedade, de competição, individualismo, etc.). Era não ver que a transformação da célula familiar de unidade de produção em unidade de consumo, com a separação que daqui decorrer entre trabalho por um lado e “vida privada” por outro, tendia a reforçar a dominação dos homens sobre as mulheres. Era, por fim, não ver que a família nuclear assume um caráter de último refúgio contra a hostilidade social aos olhos de um proletariado explorado e atomizado, sendo porém o local principal de transmissão do espírito de classe e das tradições da classe trabalhadora, o que não podia deixar de obscurecer os constrangimentos que existiam no seu interior.

A maneira como A. Kollontai aborda a questão em 1921 é ainda mais surpreendente e as suas afirmações aparecem como uma atitude voluntarista, uma forma de querer impor a teoria em detrimento da realidade. Em vez de adotar um ponto de vista crítico a respeito da teoria marxista, como ela tinha feito a propósito da origem da opressão, fica presa ao esquema dos seus predecessores, oferecendo uma descrição dos factos fortemente afastada da realidade. Sem qualquer dúvida, o idealismo que mostra a propósito da evolução do estatuto social das mulheres inscreve-se, de maneira mais geral, na visão otimista desenvolvida pela maior parte dos revolucionários durante o período que se segue à tomada do poder pelos bolcheviques na URSS. As ilusões que prevalecem então quanto à vitória da luta dos trabalhadores à escala mundial explicam em muito os atalhos que pontuam as suas exposições.

Fraquezas da análise sobre a divisão sexual do trabalho

Contudo, e mais fundamentalmente, o que emerge da segunda parte das suas apresentações, é uma incompreensão no que toca à forma como a divisão do trabalho se combina com uma divisão das tarefas entre um reforço, uma institucionalização da separação entre esfera de produção (a fábrica) e a esfera da reprodução (a família), entre “vida pública” e “vida privada”. Ela ignora igualmente o facto de que, longe de desaparecerem no trabalho assalariado, as divisões entre homens e mulheres tendem pelo contrário a reforçar-se, remetendo as mulheres para tarefas não qualificadas, enquanto que os homens têm acesso aos lugares de responsabilidade ou aos trabalhos melhores pagos.

Desde logo, esta fraqueza na sua análise leva-a não apenas a subestimar uma série de fatores que se opõem ao investimento das mulheres na luta para ultrapassar estas desigualdades, mas também a ficar num impasse na questão do tempo que seria necessário para alcançar isso. Isso mostra-se particularmente nas cinco últimas lições do seu cursos em que ela aborda a questão das tarefas das revolucionárias e nas quais sublinha a importância da proteção da maternidade e da socialização das tarefas domésticas.

Se não podemos deixar de estar de acordo com a importância que ela atribui às medidas concretas que permitem lançar as bases da emancipação das mulheres, também não podemos deixar de nos espantar, pelo contrário, com a forma como ela dá conta da realidade na URSS nesse ano de 1921. Obviamente que as leis decididas no início da revolução pelos bolcheviques para assegurar a igualdade dos homens e das mulheres no plano legal são um facto sem precedentes que instaura uma situação sem comparação com os países ocidentais (4). Mas confiar na legislação escrita como o elemento principal e quase suficiente para quebrar na prática a resistência à mudança expressa pelos trabalhadores e camponeses é fazer com que o peso da ideologia tradicional, dos hábitos e privilégios de facto concedidos aos homens seja aligeirado.

Ela dirige-se a mulheres que o partido pretende tornar quadros, que se tornarão por sua vez propagandistas, agitadoras ao serviço da revolução socialista. Compreende-se então Kollontai insista em todos os elementos positivos suscetíveis de ajudar as mulheres a quebrar as cadeias domésticas sublinhando como este aspeto é decisivo para a construção de um outro tipo de sociedade. Daí a sua insistência nas medidas que visavam proteger as mulheres grávidas, na criação de casas de repouso que assegurassem à mãe o tempo necessário para a recuperação física após o parto, a multiplicação de creches que permitam às mulheres a participação em atividades produtivas, na necessária melhoria das habitações e na coletivização da vida quotidiana através da organização de comunas.

Não obstante, diversos elementos suscitam um certo mal-estar, a começar pela sua interpretação idealista dos factos e dos números. Ela sublinha, por exemplo, o aumento da percentagem das trabalhadoras na indústria (que passam de 32% a 40% entre 1914 e 1918) e das mulheres em geral na mão-de-obra ativa (perto de 30% em 1921) para ilustrar a melhoria do lugar das mulheres na sociedade soviética. Mas ao mesmo tempo que afirma, por outro lado, que “a situação das camponesas não mudou no essencial já que a economia doméstica continua a dominar na população agrícola”, omite que 90% das mulheres ativas de que falava são precisamente camponesas.

Do mesmo modo, quando afirma que o salário médio na indústria é quase igual entre homens e mulheres na região de Moscovo, ela não esclarece que estes números dizem respeito apenas a setores tipicamente femininos e não dão conta das desigualdades relativas à fraca presença de mulheres nos setores mais bem pagos.

Quando afirma, por fim, que o fenómeno da prostituição está num recuo que se tem vindo a acentuar fecha visivelmente os olhos aos fatores económicos (desemprego, ausência de qualificações, crise habitacional) que fazem com que, para milhares de mulheres, a venda do seu corpo continuasse a ser o único meio de subsistência que disponham quando não tinham família capaz de as ajudar.

Este quadro voluntariamente rosa da situação relaciona-se com o otimismo que anima ainda numerosos quadros bolcheviques nas vésperas do IIIº Congresso da IC e com a recusa específica da Oposição Operária de enfrentar a realidade das dificuldades materiais em que o país se encontra (não é por acaso que A. Kollontai aborda este mesmo tema da prostituição de forma muito mais realista no fim do ano de 1921, quando de uma reunião nacional de delegados dos departamento femininos, num contexto em que já ninguém pode ignorar a dimensão da crise económica).

Uma outra coisa que surpreende nos argumentos avançados por A. Kollontai para convencer a sua audiência é a insistência colocada na questão da produtividade e quase só sobre ela para justificar as medidas a tomar em favor da libertação das mulheres. Para ela, trata-se de aliviar as mulheres dos seus encargos como donas de casa e educadoras, para que possam "participar melhor na batalha para aumentar a produção". Da mesma forma, trata-se de lutar contra a prostituição antes de mais porque as prostitutas devem ser consideradas como “desertoras da produção” (tal como as mulheres casadas inativas que nada mais são aos seus olhos do que prostitutas de um tipo diferente). As comunas, por seu turno, são encaradas em primeiro lugar como um meio para os indivíduos viverem melhor e mais economicamente (muitos lares privados não tinham água quente nem eletricidade).

Não podemos deixar de nos espantar ao ver A. Kollontai atribuir tão pouca importância, nas suas exposições, à questão das relações afetivas e sexuais, à luta quotidiana para impor um outro tipo de relações entre indivíduos. É um discurso claramente redutor na boca daquela que, noutros tempos, tinha consagrado uma parte tão grande da sua energia a tentar convencer as direções do movimento operário da importância de tais mudanças para que as mulheres quebrassem seus grilhões, para que pudessem sair do seu isolamento e se envolver-se plenamente na luta pela emancipação dos oprimidos.

Por fim, a sua forma de abordar o problema da divisão do trabalho e da divisão dos papeis e as soluções que propõe não deixam de surpreender. Enquanto que, nas suas primeiras lições, insistia que a divisão social do trabalho estava na origem das desigualdades e da opressão das mulheres (até nas sociedades pré-classistas) deixa passar a forma como esta divisão se consolidou ao longo do desenvolvimento do sistema capitalista, exprimindo-se em todos os níveis da organização social e sobre os problemas que isso coloca no pós-revolução .

Ela parece pensar que medidas de tipo puramente económico podem pôr em causa a divisão de papéis entre homens e mulheres em relação às mil e uma tarefas quotidianas que nunca podem ser completamente socializadas (desde as tarefas domésticas que cada indivíduo deve realizar por si mesmo até ao cuidado ou à atenção dispensada às crianças quando estão com os seus pais).

A associação que A. Kollontai faz entre o “instinto maternal inato das mulheres” e o seu papel “de mãe e educadora” parece pressupor que não se interroga seriamente sobre a divisão das tarefas tal como existe então, assim como quando evoca, a propósito da sociedade futura, os trabalhos de limpeza das comunas que “serão efetuados por mulheres de limpeza assalariadas” ou reivindica a exclusividade do controlo das instituições que se ocupam das crianças “pelas próprias mães porque estas devem participar regularmente nas atividades dos jardins de infância”.

Não se trata de formulações imprecisas devido ao caráter oral da exposição já que deriva das conclusões do seu curso que ela aceita um certo tipo de divisão das tarefas não apenas a curto termo por razões económicas imperativas mas também a longo prazo na medida em que fala de uma “divisão natural do trabalho”. Segundo ela, o facto das mulheres tenham tido tendência a investir até então em tarefas próximas das suas preocupações quotidianas enquanto mães e cuidadoras do lar (no domínio social, na educação, na organização das cantinas, no setor da saúde, etc.) não tem nada de negativo. “Isto não fraciona o proletariado em dois de acordo com os sexos mas conduz pelo contrário a um reforço das iniciativas nos diversos domínios sociais que é de todo normal e aceitável”. Esta apreciação é tão pouco limitada ao imediato que ela acrescenta: “uma planificação séria na Rússia soviética deve pelo contrário ter em conta as capacidades morais e físicas das mulheres e distribuir as diferente tarefas entre os sexos de maneira a que este plano seja o melhor para servir o interesse coletivo”.

Para evitar qualquer leitura anacrónica desta ideia, importa lembrar que na época a mecanização do trabalho estava ainda pouco desenvolvida (já para não falar da automatização) e que a maior parte das tarefas manuais consideradas como “masculinas” eram trabalhos com uso de força exercidos durante longas jornadas de trabalho o que tornava delicado reivindicar o seu acesso às mulheres. Sublinhemos contudo que nessas exposições quase não há menção a medidas suscetíveis de pôr em causa uma certa “ordem das coisas” baseada na divisão sexual do trabalho e na atribuição de papéis diferenciados a homens e mulheres.

Estas conferência sublinham por outro lado os limites das análises que podiam ser feitas no início do século sobre uma série de pontos, tendo em conta o que era então o movimento operário, as suas experiências e o contexto social e político geral. A ausência de meio contracetivos, por exemplo, bem como o fraco número de mulheres qualificadas que tinham penetrados nos setores de trabalho “masculinos”, ou a ausência de organizações de envergadura ligadas à classe operário que defendessem um ponto de vista feminista, são elementos a tomar em consideração e que explicam em parte certas fraquezas na análise de A. Kollontae, como a que acabámos de invocar acerca da divisão do trabalho baseada no sexo (5).

É preciso ter em conta, por outro lado, a sua situação pessoal em 1921 e nomeadamente o isolamento que tinha experienciado na batalha que travava desde há 15 anos no sei da social-democracia primeiro, depois do partido bolchevique. São fatores que devem pesar na apreciação das ideias que defende nos cursos da universidade Sverdlov e dos silêncios que mantém sobre certos pontos – em primeiro sobre tudo o que diz respeito à sexualidade.

Ponto de vista precursor sobre o tema da sexualidade

Se olharmos para o conjunto da obra conhecida de Kollontai são porém estes textos sobre a sexualidade, sobre a família e sobre a “nova moral” que marcam pela sua originalidade, em comparação com a maior parte dos escritos do início do século. Claro, as suas preocupações fundamentais centram-se na questão da situação das mulheres trabalhadoras e nos problemas económicos com os quais estão confrontadas, como se evidencia claramente nos Fundamento sociais da questão das mulheres, publicado em 1909 (6), ou na História do movimento das mulheres trabalhadoras na Rússia, publicado em 1920 (7). O ponto nodal destes escritos é mostrar de que forma os problemas da emancipação da libertação das mulheres se colocam em termos muito diferenciados se estas forem originárias da classe trabalhadora ou da burguesia. Uma abordagem que se encontra em muitos outros textos, artigos ou brochuras de que A. Kollontai é autora.

Estas ideias são desenvolvidas na época pela maior parte das mulheres que são ilustradas no seio do movimento operário na luta contra a exploração e a opressão das mulheres. Clara Zetkin na Alemanha, Louise Colliard na France, Kuliscioff na Itália, Sylvia Pankhurst na Grã-Bretanha, Margarita Nelken em Espanha: nomes que nos lembram que, ainda que isoladas, nenhuma delas estava sozinha na defesa do ponto de vista feminista (ainda que a maior parte delas rejeitassem então este termo com horror) e na luta para que os seus partidos levassem a sério os problemas que elas colocavam. Contudo, no tema da sexualidade e da moral, A. Kollontai é uma das poucas a abrir caminho a reflexões de um novo tipo.

Quando se relê hoje a Nova Moral da Classe operária datada de 1918 (8), na qual aborda estes problemas do ponto de vista teórico, ou o ciclo das novelas romanescas que são o Amor das três gerações, as Irmãs ou o Amor livre datado de 1923 (9), por vezes incomodam-nos o vocabulário utilizado e o tom algo ingénuo de certas cenas. Mas também é certo que os leitores atuais que somos também se sentem envolvidos pelos problemas de fundo que A. Kollontai coloca sobre o amor e a vida em casal. As relações afetivas viciadas pela dependência económica, a dificuldade de respeitar a liberdade do outro em todos os domínios, a possessividade e o ciúme, o desprezo da maior parte dos homens em relação às mulheres, a sua recusa de ver nelas um indivíduo autónomo são atitudes que A. Kollontai exprime muito justamente na sua análise ou que captura ao vivo em certas cenas dos seus romances. Sente-se que ela investe aí uma experiência pessoal ao mesmo tempo rica e dolorosa.

A memória da sua experiência com o seu primeiro marido, casada por amor aos vinte anos contra o conselhos da família, e que ela deixará anos mais tarde para se consagrar aos seus estudos, transparece em mais do que uma página, tal como a reminiscência das diversas relações afetivas, muitas delas apaixonadas mas quase sempre insatisfatórias, que viveu nos seus anos de exílio. A silhueta de Dybenko, um dos heróis do Báltico, o “camarada” 17 anos mais novo com que casará de acordo com a nova lei em 1918 e que vai deixar quatro anos mais tarde, também parece perfilar-se por detrás de várias das personagens masculinas que surgem nos seus textos. Não foi a diferença de idades que os levou da dissensos tais que a levaram a decidir romper, mas divergências sobre a conceção dos seus papeis respetivos. “Não sou a esposa de que precisas”, escreve-lhe ela, “mas sou um indivíduo antes de ser mulher”. Na sua autobiografia redigida em 1926 afirma: “sempre e ainda, o homem tenta impor-nos o seu ego e submeter-nos inteiramente aos seus fins”.

Ela está assim consciente no plano pessoal, desta divisão de tarefas que mina as relações afetavas no casal e que torna a mulher dependente do homem. Quais são as vias que ele indica às mulheres para lutarem contra esta dominação?

Não se pode dizer que ao amor tradicional ela oponha um esquema liberal, ainda que vários dos seus exemplos digam respeito à situação de mulheres privilegiadas pela sua educação. Pelo contrário, ela escarnece das teorias sobre a “união livre” desenvolvidas pelas feministas burguesas, quer à direita quer à esquerda, mostrando que as mulheres da classe trabalhadora não têm os meios, não têm tempo, não têm a liberdade de espírito para viver em relações afetivas "livres" fora das que podem ter nas suas casas (quando têm uma). Para ela, as burguesas serão sempre inimigas das mulheres da classe operária. Apenas transformações económicas radicais permitirão que estas últimas vejam iniciar-se a sua libertação. É preciso assim que confiem nos seus irmãos de classe.

Um certo número de entre elas dão o exemplo decidindo permanecer celibatárias para evitar cair sob o domínio de um homem e decidem colocar o seu trabalho à frente dos seus problemas pessoais. Dão assim uma ideia do que será a existência das mulheres quando estiverem libertadas das velhas mentalidades e a “ideologia proletária” (à qual A. Kollontai faz referência em vários textos) tenha vencido os esquemas burgueses fundados sobre o egoísmo, o individualismo e a possessividade.

O que nos espanta atualmente é o carácter individual deste tipo de resposta. Parece que fora de uma muito pequena minoria, a maioria das mulheres deve não apenas esperar amanhãs melhores para ver as quebrarem-se as suas cadeias mas que cabe a cada uma delas encontrar o caminho da sua libertação no que diz respeito às relações sexuais e afetivas. Não é aparentemente questão de tomada de consciência coletiva, de associação das mulheres para tentar encontrar uma solução.

Sobre a organização autónoma das mulheres…

A questão da organização das mulheres entre si, da sua necessidade de falar, de trocar as suas experiências, de confiar nos seus próprios meios, foi colocada por A. Kollontai várias vezes ao longo da sua existência. Menos nos seus textos do que nos factos. Na batalha que trava, por exemplo, desde 1906, para que o partido admita a necessidade de organizar clubes de operárias em São-Peterburgo. Os homens poderiam ser admitidos aí mas a direção dos clubes deveria permanecer exclusivamente nas mãos das operárias. A sua ideia de formar um Secretariado das Mulheres Trabalhadores como órgão interno do partido enfrentou uma oposição muito forte da parte da direção (então dominada pelos mencheviques). Recusa de lhes atribuir salas para que pudessem fazer as suas reuniões, portas fechadas nas quais elas encontravam palavra do tipo: “a reunião não mista das mulheres foi anulada; amanhã terá lugar uma reunião não mista de homens…” Este era o género de obstáculos e piadolas de mau gosto com as quais se defrontavam as militantes.

A ambiguidade do estatuto destas reuniões é ilustrado de outra forma pelo facto de A. Kollontai se ter sempre defendido, nos textos, de ter querido criar estruturas autónomas do partido – ainda que admitindo que elas existiam de facto na maior parte do tempo dado o seu isolamento e não reconhecimento pela direção. As suas afirmações reiteradas que sobre a ortodoxia de tais reuniões que se inscrevia na conceção de um partido unido e centralizado fazia-se acompanhar contudo pela exigência contraditória de “manter a separação e a autonomia da agitação entre as mulheres da classe operária”.

É preciso dizer que, à época, a noção de “centralismo democrático” estava longe de ser uma teoria acabada para os membros dos partidos sociais-democratas como também não estava encerrada a questão de saber a que ponto a revolução russa iria corresponder ou não ao modelo clássico da revolução burguesa. A polémica interna que ocorrerá em 1908 sobre a participação ou não dos clubes de operárias na primeira Conferência não mista de mulheres convocada por mulheres da burgueses decorre deste debate. Mais do que uma rejeição da forma não mista desta iniciativa, a oposição feroz de uma ala do partido a que as militantes operárias participassem vinha da recusa determinada da sua parte de qualquer colaboração com a ala esquerda da burguesia no quadro da Duma (o “parlamento” convocado pelo tsar). Quem se mostrava favorável a tal participação defendia sobretudo as posições da ala direita do partido, a favor de uma política de cooperação e colaboração com certos “elementos burgueses” (10). O sucesso da intervenção das trabalhadores neste Congresso em que representavam apenas 10% das delegadas mas no qual não deixaram de desenvolver a sua posição teve um certo impacto sobre muitas mulheres proletárias dada a publicidade que a Conferência teve. Isto não foi suficiente para fazer mudar de ideias aqueles para os quais “grupo de mulheres” significava “organização burguesa”. As ideias da maioria das bolcheviques sobre a questão da opressão das mulheres e das tarefas que implicaria para o partido eram com efeito tudo menos claras: o medo de que qualquer atividade ou iniciativa encetada pelas militantes fosse influenciada pela burguesia dominará até 1917 e para além disso.

Os homens não eram os únicos a suspeitar, longe disso, como mostram os debates que atravessam as fileiras da direção bolchevique no momento da revolução de Outubro. Depois de ter decidido, em outubro de 1917, de voltar a organizar o “Secretariado” que já tinha existido dez anos antes, a direção do partido dá-se conta que um simples órgão “para agitação entre as mulheres dos camponeses e soldados” não era suficiente. O sucesso da primeira Conferência pan-russa das mulheres trabalhadoras e camponesas que juntará mais de mil delegadas acaba por vencer as resistências de quem, como Samoïlova, se contava ainda entre as pessoas mais hostis em 1917 à ideia de criar órgãos específicos para a intervenção entre as mulheres. Mas seria preciso ainda mais um ano antes que as comissões vissem a luz do dia depois da Conferência, definidas então apenas como simples aparelhos técnicos encarregues de aplicar as decisões do comité central, transformando-se em departamentos (Genotdel), com a tarefa de organizar localmente as mulheres que não eram membros do partido para as instruir dos seus direitos e ganhar a sua colaboração para a construção do Estado socialista. O seu funcionamento estava porém longe de ser homogéneo embora tenha sido tomada a medida de integrar representantes dos Genotdel em todos os comités do Partido.

A importância e o impacto da sua intervenção dependia amplamente da atitude das direções locais a seu respeito. Ainda assim, a possibilidade de criar uma organização autónoma de mulheres fora do partido foi sequer abordada. As resistências que as mulheres encontravam para participar nestes grupos, as ameaças de maridos hostis à ideia de ver as suas mulheres “fazer política” nunca pareceu abalar a convicção da maioria dos bolcheviques de que o envolvimento das mulheres trabalhadoras e camponesas na vida social dependia das mudanças económicas que o Estado soviético seria capaz de realizar e que as estruturas organizacionais específicas eram completamente secundárias. O aprofundamento da crise económica e o recurso à NEP em 1921 são acompanhados de um declínio evidente da atividade dos Genotdel sem reação por parte das direções.

O que importa sublinhar aqui é a atitude extremamente defensiva que A. Kollontai adopta na maior parte dos seus textos sobre este ponto. Desde os Fundamentos sociais sobre a questão das mulheres em 1909, em que deixa entender que o Partido Social-Democrático compreendia a importância da luta a travar contra a opressão específica das mulheres e no qual ironiza sobre as soluções organizacionais propostas pelas feministas burguesas, até aos cursos da universidade Sverdlov em que fica totalmente silenciosa sobre este tema revela as suas hesitações em envolver-se na polémica sobre este tema face às resistências da direção do partido. Contudo, as descrições que faz da atitude dos militantes sociais-democratas alemãs nas narrativas que formam a trama de Sobre a Europa dos Trabalhadores, redigidas em 1912, são tudo menos ternas. A recusa dos dirigentes locais de a levar a sério quando ela ia fazer uma conferência sobre a questão das mulheres numa qualquer localidade, o terrorismo exercido por militantes no sentido de tentar impedir as suas mulheres de assistir a estas reuniões estão aí para mostrar que ela está perfeitamente consciente das dificuldades que encontram as mulheres para se organizar politicamente.

Em 1913, em As Mulheres Trabalhadoras lutam pelos seus direitos (11), aborda até o problema de um ponto de vista diferenciados: defende a necessidade de estruturas autónomas e a recusa de considerar que se trata de um problema puramente tático. Nesta época, parece-lhe que tais estruturas serão decisivas para a entrada na luta das maior parte das mulheres. Mas o que significa para ela “organização separada e autónoma” nunca fica muito claro e das diversas resoluções votadas no partido sociais-democrata ou pelos bolcheviques antes e depois da revolução em nada clarificam esta matéria. Nunca sabemos bem se se tratam de estruturas puramente internas ao partido ou de órgãos abertos a mulheres não comunistas e, consequentemente, qual é o seu objetivo principal.

É preciso acrescentar que o sectarismo dos comunistas face aos socialistas depois da revolução apenas obscurece mais o problema.

É apenas em 1921 que os bolcheviques começarão a falar de frente única operária e, até então, parece subentendido que todas as mulheres que participam nas reuniões organizadas pelos Genotdel são potencialmente comunistas. A questão de um movimento autónomo que junte mulheres de diversas tendências políticas organizadas ou não podia assim ser colocada. Fosse qual fosse a prática local no que diz respeito às reuniões de mulheres, A. Kollontai tanto como outros dirigentes não propõe uma abordagem que permitisse fazer face ao problema do isolamento das mulheres no momento em que está a começar um refluxo político e em que o governo soviético é confrontado com dificuldades económicas que prejudicam todos os aspetos do trabalho dos revolucionários, a começar pelo trabalho na direção das mulheres.

Se A. Kollontai não tira neste momentos as conclusões que se poderiam ter imposto dado o grande eco encontrado pelos departamento femininos (em 1921 abrangem seis mil delegadas representando três milhões de mulheres) deve-se nomeadamente ao contexto geral tanto económico quanto político. É preciso ter em conta, com efeito, as prioridades económicas decretadas pela construção do novo Estado soviético depois da revolução. Prioridades plenamente assumidas por uma A. Kollontai que está por um período à frente do Departamento de Saúde Pública e não pode deixar de estar sensibilizada para a miséria particularmente gritante nesta época. Mas é preciso ter em conta também a incapacidade do partido em reconhecer a importância da luta pela libertação das mulheres (e das tarefas que dela resultam) e das dificuldades encontradas por aquelas que, como A. Kollontai, tentam fazer progredir a reflexão sobre este tema.

Mas esta explicação não é suficiente. A subestimação da divisão sexual do trabalho e a divisão de papéis nos escritos de Kollontai, acima referida, parece pelo menos tão importante para explicar o seu fracasso em abordar a questão da organização autónoma das mulheres. O facto dela nunca abordar de maneira precisa a forma como esta divisão opera em todos os momentos da vida de uma mulheres, nas suas descrições sobre a condição das trabalhadoras, leva-a a não compreender quanto a luta contra este aspeto da opressão das mulheres é decisivo para permitir-lhes sair do seu isolamento (e da sua passividade como dizer muitas vezes A. Kollontai).

Na maior parte do tempo ela apenas aborda a questão da divisão social do trabalho em termos de divisão entre trabalho doméstico não assalariado e trabalho assalariado exterior. Das divisões entre homens e mulheres no trabalho assalariado, as diferenças nos postos de trabalho e qualificações quase não fala ou refere-as para dizer que estão em vias de serem ultrapassadas. Claro, evoca nas suas narrativas a tendência que as mulheres têm de se comportarem de forma submissa e de interiorizar, mesmo quando são militantes revolucionárias, os esquemas tradicionais sobre o seu papel de mulher-objeto, considerando como normal não ter nem a mesma educação nem as mesmas responsabilidades do que os homens. Mostra também, através de exemplos concretos, como se exprime o sexismo dos homens, as suas atitudes dominadoras. Mas não tira qualquer conclusão quanto às mudanças que poderiam ocorrer nas relações homens-mulheres a partir de uma luta coletiva.

Através de uma série de detalhes dos seus texto, pode-se mesmo concluir, como se manifesta nas suas conferências na universidade Sverdlov, que ela não coloca em causa alguns aspetos da divisão das tarefas, em particular no que diz respeito aos mil e um gestos quotidianos que aumentam o fardo das relações na vida doméstica. Quantas vezes ela exclama, no decurso de uma frase, aludindo ao fardo para as mulheres de cuidar de crianças ou de coser um botão: "Os homens têm sorte, não precisam de se preocupar com tais coisas!” Este tipo de consideração repete-se constantemente nos seus escritos desde os anos 1910 até ao final dos anos 20.

Como vimos, ela apoia-se na confiança sobre a construção de uma sociedade diferente e um mundo melhor para assegurar a libertação das mulheres e insiste a justo título nas medidas económicas elementares sem as quais nenhuma mudança será possível. Mas o que ela parece não ver é a dimensão e a duração da batalha que se terá de travar para impor tais medidas.

A prioridade a dar aos investimentos para multiplicar as creches, abrir lavandarias e restaurantes para aliviar as mulheres das suas tarefas domésticas não é evidente num período em que a maioria da população passa fome, e, que as necessidades mais elementares não estão satisfeitas. Não apenas não são evidentes como se podem demonstrar concretamente impossíveis durante um certo período. E mesmo quando a situação não é assim tão dramática, as preocupações prioritárias de quem dirige as instâncias de decisão do partido e do governo (e as duas coisas confundem-se a partir de 1917) não vão geralmente no sentido de favorecer este tipo de investimentos sociais na repartição das somas de que dispõem.

As ilusões que ela desenvolve sobre a evolução da mentalidade dos proletários explicam que ela não viu claramente este problema. Entre 1909 e 1918, e de forma repetida, ela desenvolve a ideia de que o operário é menos possessivo do que o burguês ou do que o pequeno-burguês em relação à sua mulher porque não são laços económicos que os ligam (o problema da herança, da descendência e da pureza da mulher não entrariam em jogo na sua relação). Ela conclui que “não podem existir conflitos agudos entre a psicologia em formação da mulher nova e a ideologia da classe operária”. É ignorar a importância do trabalho doméstico, do papel económico que ele desempenha e da forma subtil como ele modela as relações no seio da família.

A. Kollontai passa ao lado deste problema durante todo o período em que desempenha um papel preponderante na organização das mulheres na Rússia. O peso da realidade encarregar-se-á de a fazer evoluir nas suas considerações.

Numa das suas novelas de 1923, sublinha com efeito que o homem está atrasado na tomada de consciência e que “ele continua a considerar a mulher ou como um “meio agradável” de satisfazer as necessidades carnais ou como a sua sombra legítima e fiel, a sua esposa”. O conflito é assim inevitável, diz.

Mas em 1923 já não está na Rússia. Aceitou, em 1922, um posto diplomático na Noruega – em parte para não se opor frontalmente à direção do partido com a qual já não partilha os pontos de vista desde a sua adesão à Oposição Operária. A sua capacidade de influenciar o debate em curso é por isso mais que limitada. A sua participação na vida política reduz-se a partir daí a algumas intervenções pontuais sobre o estatuto das mulheres, nomeadamente na altura do debate sobre a modificação da lei do casamento em 1926,

A partir de 1922, as posições que ela tinha desenvolvido durante perto de 15 anos sem encontrar resistência aberta nem teorizada vão passar a ser atacadas sistematicamente na impressa bolchevique por ideólogos retrogrados (como Zalkind) que começam a impor os seus pontos de vista a uma direção cada vez mais sob a alçada de Estaline e o debate sobre uma organização autónoma de mulheres é interrompido.

A partida de A. Kollontai em 1922 e a sua recusa de um confronto direto são bastante representativas da atitude que ela adota em várias ocasiões quando se encontra em conflito com a direção bolchevique sobre a questão das mulheres – enquanto que, noutros pontos, dá mostras, pelo contrário, de uma grande dose de independência política. Em 1914, no momento do voto dos créditos de guerra dessolidariza-se imediatamente da direção sociais-democrática e desenvolve um trabalho de propaganda contra-corrente. É também a única a apoiar Lenine no momento em que ele se opõe à orientação adotada pela direção bolchevique no seu regresso à Rússia em abril de 1917. Por fim, não hesitar em travar uma batalha contra a decisão dos dirigentes bolcheviques de assinar o tratado de Brest-Litovsk e apoia as teses da Oposição Operária, criticando o rumo adotado pelo partido. Mas quando se encontra em desacordo com os outros dirigentes sobre a questão das mulheres, bate em retirada muito mais rapidamente. O que é compreensível: num domínio em que há poucas certezas, tanto do ponto de vista da teoria como da prática, é mais difícil a A. Kollontai, muitas vezes alvo de escárnio e de hostilidade, até da parte de outras mulheres dirigentes do partido, fazer referência a outras experiências para fundar os seus argumentos e para fazer valer o seu ponto de vista.

A isto se junta um outro elemento, parece. É a dificuldade de Kollontai de relacionar de forma muito constante a questão da opressão das mulheres com as questões políticas gerais. Isso vê-se em 1908, na altura do debate sobre a participação na Conferência organizada pelas mulheres burguesas. A. Kollontai faz pouco caso então, pelo menos é o que resulta dos seus comentário, das clivagens que atravessam o partido e que opõem os bolcheviques à ala direita. Por outro lado, não diz nada sobre a questão das mulheres numa brochura que redige para defender as posições da Oposição Operária (cujos objetivos “concretos” no plano económico não tomam em consideração as dificuldades do momento). Vê-se por fim que se esforça, no quadro Departamento de Proteção Social que lhe foi atribuído, por romper as barreiras hierárquicas tradicionais instituindo a prática de reuniões associando todas as pessoas do serviço, seja qual for a sua função. Mas não tira daí conclusões explícitas quanto às medidas a tomar para encorajar uma plena participação das mulheres na vida política (a sua adesão à Oposição Operária far-se-á antes de mais na base da sua concordância com as críticas relativas ao processo burocrática que ele vê desenvolver-se no partido).

Evidenciar ao mesmo tempo as forças e as fraquezas das conferências feitas na universidade tal como no resto da sua obra não deve contudo levar a subestimar a importância do combate travado por Alexandra Kollontai no seu tempo. Porque de todos os dirigentes revolucionários do princípio do século foi ela que nos legou a obra mais variada e mais rica sobre a “questão das mulheres”.

Jacqueline Heinen é professora de sociologia na Universidade de Franche-Comté. Artigo escrito originalmente para a revista Critique communiste (n° 150, outono de 1997). Publicado no número 34 da revista Contretemps(link is external). Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net

Notas:

1) Publicado em sueco em 1971, o texto foi retomado de uma edição sueca de 1926 baseado nas notas de Kollontai e num manuscrito estenográfico.

2) A este propósito ver igualmente Marxisme et révolution sexuelle, anthologie de textes de Kollontaï présentée par Judith Stara-Sandor, Maspero, 1973.

3) A supressão das medidas de requisição, substituídas por um impostos progressivo, o restabelecimento da liberdade de comércio, o ressurgimento de um mercado, o regresso à economia monetária, a tolerância de uma pequena e média indústria privada e o apelo a investimentos estrangeiros sob controlo do Estado são vários exemplos desta reorientação.

4) Entre as leis essenciais que introduziram um estatuto de igualdade entre homens e mulheres sublinha-se nomeadamente: a independência das mulheres casadas que deixam de ter obrigação de seguir o seu marido; o direito destes escolherem livremente a sua profissão; o direito de todas as mulheres de obterem um salário igual para trabalho igual e a garantia de acesso a todos os empregos nos serviços do Estados. Os despedimentos das mulheres grávidas passam a ser interditos, o aborto torna-se livre e gratuito e a educação mista torna-se regra. A lei prevê igualmente cantinas abertas a todos para aliviar as mulheres das suas tarefas domésticas. Por fim, a simplificação do procedimento de divórcio colocando homem e mulher é pé de igualdade.

5) É verdade que alguns dirigentes masculinos do partido bolchevique vão mais longe na sua compreensão política e teórica deste problema. É o caso de Trotsky quando, dirigindo-se às trabalhadoras e camponesas no início dos anos 1920, incita sistematicamente a tomar medidas para favorecer o surgimento de um modo de vida novo, em bases coletivas. O facto do Estado soviético não ter sido capaz, dadas as dificuldades financeiras, de cumprir todos os compromissos que assumiu no que dizia respeito à criação de creches, cozinhas e lavandarias coletivas não deve, segundo ele, ser um freio à criação de comunidades que permitirão a criação de relações diferentes entre indivíduos. As discussões que ele organiza em 1923 com um grupo de dirigentes do partido sobre os problemas colocados pela mudança no modo de vida mostram claramente as suas preocupações em não se contentar com mudanças no plano material. Ele diz-se convencido “que é neste momento que é preciso edificar as bases económicas e as relações sociais inseparáveis do novo modo de produção”.

6) Cf. Os extratos publicados em Selected Writings, Alison & Busby, Londres 1977, p. 58 à 73.

7) Ibid., p. 39 a 58.

8) Cf. Os extratos publicados em Marxisme et révolution sexuelle, op. cit., p. 101 à 134.

9) Ibid., p. 254 a 282. Ver também o extrato Les Sœurs em Selected Writings, p. 216 à 225.

10) Eram muitas vezes os mesmos que, dois anos antes, se tinham erguido mais ferozmente conta a criação dos clubes de operárias.

11) Cf. Edição inglesa publicada por Falling Wall Press (1971): Women workers struggle for their rights.