Voltar ao site

Mais uma contradição prospera no capitalismo

24 de março de 2022

Prabhat Patnaik, People's Democracy, 2 de janeiro de 2022. Tradução de Eleutério Prado.

Nos Estados Unidos ainda há quatro milhões de pessoas que permanecem desempregadas em relação à situação antes da pandemia; e, no entanto, a tentativa do governo Biden de estimular a economia já entrou em crise com o ressurgimento da inflação não apenas naquele país, mas também em outras partes do mundo capitalista. 

O Federal Reserve Board (o equivalente ao banco central dos EUA) planeja em breve aumentar as taxas de juros (atualmente próximas de zero). Ademais, mesmo a expansão fiscal será difícil de sustentar diante da inflação. Tudo contribui, portanto, para truncar a recuperação que vem ocorrendo. 

Em outras palavras, mesmo no principal país capitalista do mundo, cuja moeda é “tão boa quanto o ouro” e que, portanto, não precisa temer qualquer fuga de capital debilitante, a capacidade do Estado de estimular a atividade dentro de suas próprias fronteiras encontra-se seriamente constrangido.

Esta é uma nova contradição básica que surgiu no capitalismo mundial e que merece atenção séria. Segundo John Maynard Keynes, o mais importante economista burguês do século XX, embora o capitalismo espontâneo fosse um sistema falho que mantinha grandes massas de trabalhadores desempregadas, a intervenção do Estado poderia consertar essa falha. Ora, esse prognóstico já havia sido contraditado pela globalização de finanças. 

A finança globalizada enfraqueceu Estado-nação suficientemente que agora ele não pode mais, por meio de sua intervenção, cobrir o déficit de demanda agregada. Mas o único Estado que ainda parecia ter a capacidade de intervir era o Estado norte-americano, porque sua moeda era considerada, até mesmo pelas finança globalizada, como “tão boa quanto o ouro”. Supunha-se que a sua intervenção macroeconômica não desencadearia nenhum êxodo sério dos capitais financeiros. 

Mas agora, ao que parece, até essa perspectiva desapareceu. Vamos ver o porquê.

A razão pela qual os governos de outros países não conseguiam estimular suas economias adequadamente era porque suas políticas fiscais estavam restringidas por uma imposição feita pelas finanças. Eles deveriam restringir os déficits fiscais em relação ao PIB a um determinado valor estipulado; as suas políticas monetárias, por outro lado, tinham de estar vinculadas à política monetária dos EUA.

 As suas taxas de juros, por exemplo, tinham que ser suficientemente mais altas do que a taxa de juros dos Estados Unidos; caso isso não ocorresse, haveria sérias saídas de recursos financeiros do país. As mãos dos Estados nacionais, portanto, estavam atadas e isso valia até para os países capitalistas avançados. Os EUA, no entanto, tinham certa autonomia. 

Julgava-se que se houvesse um déficit fiscal superior ao de outros países, mesmo se as suas taxas de juros estivessem próximas de zero, isso não provocaria nenhuma saída financeira séria. O governo Biden seguiu essa suposição na formulação de sua política econômica. Ocorreu, no entanto, que um problema latente veio agora à tona.

A teoria econômica ensinada dos livros didáticos diz que taxas de juros baixas estimulam o investimento privado porque reduzem o custo dos empréstimos. Este é certamente o caso sob as suposições que são feitas. Mas, o que tem ocorrido na prática é que as taxas de juros baixas têm estimulado a formação de bolhas de ativos. 

Quando a “bolha ponto.com” nos EUA entrou em colapso no início deste século, o presidente do Fed, Alan Greenspan, baixou as taxas de juros, o que estimulou uma nova bolha, a bolha imobiliária, naquele país. Ao aumentar artificialmente a riqueza de muitos indivíduos, ele deu um impulso às despesas de consumo e ao investimento em habitação, assim como em outros projetos, os quais em conjunto originaram um novo boom.

A política de juros baixos do Fed, em suma, operou não apenas por meio de seu efeito direto na redução do custo dos empréstimos, mas também, significativamente, estimulando uma bolha especulativa nos preços dos ativos. Assim, o preço de um ativo aumenta muitas vezes mais do que o seu “verdadeiro valor”, qual seja ele, o valor garantido de seus ganhos descontados ao longo de sua vida útil.

Ora, essa anomalia acontece porque, embora todos esperem que o preço do ativo caia eventualmente, aqueles que detêm o ativo acreditam que ele vai subir ainda por mais algum tempo. Esperam vendê-lo dentro desse prazo e embolsar os ganhos de capital proporcionados. E essa demanda alimentada pela especulação pelo ativo é fortemente auxiliada se as taxas de juros forem mantidas baixas.

Mas as taxas de juros baixas podem estimular a especulação não apenas nos mercados de ativos, mas também nos mercados de commodities. E isso é precisamente o que vem acontecendo nos EUA, porque após o colapso da bolha imobiliária os especuladores tornaram-se particularmente cautelosos com a especulação no mercado de ativos. 

A especulação pode surgir não apenas naqueles bens que, por uma razão ou outra, estão temporariamente em falta devido à gargalos temporários; nesse caso, os seus preços devem subir imediatamente. Ela também pode surgir nos mercados de commodities em que a demanda pelo bem é inelástica (ou seja, que não cai muito quando os preços sobem).  Assim, mesmo que não haja gargalos de oferta, uma escassez artificial pode ser criada para proporcionar lucros. Ora, a demanda torna-se particularmente inelástica quando o crédito está facilmente disponível – situação em que as pessoas tomam emprestado para manter a demanda.

Uma vez que tais aumentos de preços ocorrem, uma demanda por aumentos salariais se segue para compensar os trabalhadores por suas perdas reais de renda devido ao aumento de preços. Assim, toda uma espiral preço-salário pode ser iniciada mesmo quando não há gargalos de oferta suficientemente grandes para ameaçar o boom em ocorrência. E uma vez que essa espiral inflacionária tenha começado, então o estímulo da economia tem que ser interrompido, algo que está acontecendo nos EUA agora.

O petróleo é um candidato óbvio para um aumento tão artificial de preços. Não é de surpreender que os preços da gasolina nos EUA, em novembro de 2021, tenham sido mais altos do que os de novembro de 2020 em até 58%. Superou mesmo o mais alto preço em qualquer mês desde 1980.

O aumento, na década de 1970, veio quando aconteceu o segundo choque do petróleo; o atual aumento dos preços do petróleo ocorreu, no entanto, sem que houvesse qualquer aumento de preços administrado pelos países da OPEP. De fato, o governo dos EUA está considerando usar seu próprio estoque de petróleo para manter os preços do petróleo baixos.

A especulação com commodities tem sido geralmente ignorada na formulação de políticas econômicas nos países capitalistas avançados. Supõe-se que taxas de juros baixas estimulariam a demanda agregada ao causar bolhas nos preços dos ativos e, possivelmente, ao aumentar diretamente o investimento ao reduzir os custos dos empréstimos.

O fato de que as taxas de juros baixas também podem encorajar a especulação nos mercados de commodities, de modo que o aumento de preços resultante pode levar a uma redução da demanda agregada em vez de aumentá-la, dificilmente foi reconhecido. E, no entanto, isso está surgindo agora como consequência de uma política de juros baixos. E isso torna muito mais difícil qualquer intervenção estatal que vise elevar o nível de demanda agregada.

O capital financeiro internacional se opõe à intervenção fiscal de qualquer governo para estimular a demanda. Ele é mais tolerante com a intervenção por meio da política monetária, pois ela acontece por meio das decisões dos capitalistas. Assim, a política monetária não tem o efeito de deslegitimar o sistema capitalista: elas não tiram as decisões econômicas das mãos dos capitalistas. 

Mas se a política monetária também se tornar infrutífera, então o sistema fica sem instrumentos para reviver a atividade e superar o desemprego em massa. Ela está nos próprios EUA estimulando a inflação muito antes de o sistema encontrar qualquer grande gargalo do lado da oferta.

Até agora, a política monetária era considerada, na pior das hipóteses, um instrumento contundente. Quando mesmo com uma taxa de juros próxima de zero não houve muita recuperação do investimento, muitos argumentaram que a taxa de juros deveria ser empurrada para a região negativa. As taxas de lucro esperadas, ademais, por estarem muito baixas, não estão estimulando o investimento.

Ora, isso teria sido difícil de sustentar em qualquer caso, uma vez que qualquer sistema financeiro que cobrasse taxas de juros negativas aos potenciais investidores não pode continuar pagando taxas de juros positivas aos depositantes. As últimas taxas também teriam que ser negativas, caso em que, no entanto, não há razão para que alguém deposite dinheiro em qualquer instituição financeira em vez de apenas manter dinheiro.

Mas acontece que, além da ineficácia de uma taxa de juros próxima de zero para estimular o investimento, ela também tem o efeito de gerar inflação por meio da especulação em commodities. Isso basicamente deixa o sistema capitalista sob a hegemonia das finanças globais sem nenhum instrumento para estimular a demanda agregada, mesmo no país capitalista líder.

A persistência do desemprego mantém o nível dos salários reais na economia mundial quase estagnado, mesmo se o nível da produtividade do trabalho aumenta internacionalmente. Ora, isso proporciona uma elevação do excedente econômico (lucros) na produção mundial, mas, ao mesmo tempo, empurra a economia mundial para uma crise ainda mais profunda devido à queda da demanda efetiva. 

Se, ao mesmo tempo, não houver instrumentos disponíveis para elevar o nível de demanda agregada, ou seja, para combater a crise, o capitalismo mundial fica condenado a um estado de desemprego em massa perene, que só pode minar sua estabilidade política. As implicações de tal estado de coisas para economias dependentes são imensas e profundas.