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Michael Löwy: Guy Debord, consumido pelo fogo noturno

23 de agosto de 2021

Guy Debord é uma máquina infernal difícil de desativar. Experimentou-se fazê-lo, entretanto. Experimenta-se ainda. Tenta-se neutralizá-la, edulcorá-la, estetizá-la, banaliza-la. Em vão. A dinamite continua lá, e corre o risco de explodir nas mãos dos que a manipulam para torná-la inofensiva.

Michael Lowy, resenha de A sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997). Publicado na revista praga nº 5. Tradução de Maria Leonor Loureiro.

Eis um exemplo bem recente: Debord seria só um “escritor dandy” de estilo deslumbrante: “tudo o que resta dele é literatura”. De fato, em sua obra, “a ética fundou-se com a estética”. Como integrar a este enfoque asseptizante um livro revolucionário como A Sociedade do espetáculo? Simplesmente eliminando-o: não é digno de interesse, porque, enquanto “obra teórica pessoal”, não está redigido na primeira pessoa do singular. De resto, está excessivamente marcado pelo torneio de frases e léxico do jovem Marx e de Hegel, que estragaram seu belo estilo: “Quando ele abandonou esses grandes alemães, sua prosa sentiu as conseqüências. Para melhor.”

Ao invés de Hegel e Marx, o autor desse ensaio prefere referir-se a Rivarol e a Ezra Pound. Questão de estilo, sem dúvida [1].

Outros ao contrário, não consideram senão a obra de 1967, ou melhor, seu título, reduzindo suas teses a uma banal crítica dos mass-media. Ora, o que ele chamava “sociedade do espetáculo” não era somente a tirania da televisão – a manifestação mais superficial e imediata de uma realidade mais profunda – mas todo o sistema econômico, social e político do capitalismo moderno (e da sua cópia burocrática no Leste), baseado na transformação do indivíduo em espectador passivo do movimento das mercadorias, e dos conhecimentos em geral. Este sistema separa os indivíduos uns dos outros, inclusive por meio de uma produção material que tende a recriar continuamente tudo o que engendra isolamento e separação, do automóvel à televisão. O espetáculo moderno, escrevia Guy Debord numa das fórmulas esplêndidas das quais tinha o segredo, é “um campo épico”, embora não cante, como a “Ilíada”, os homens e suas armas, mas “as mercadorias e suas paixões” (A Sociedade do espetáculo, parágrafo 66).

Trata-se de uma evidência, mas hoje é preciso relembrá-lo com força: Guy Debord era marxista. Profundamente herético, sem dúvida, e formidavelmente inovador. Aberto às intuições libertárias. Mas sem deixar de apelar para o marxismo. Sua análise do espetáculo deve bastante a História e consciência de classe de Lukács, que já colocara no centro da sua teoria da reificação a transformação dos seres humanos em espectadores do auto-movimento das mercadorias. Como Lukács, Debord vê no proletariado o exemplo de uma força capaz de resistir à reificação: graças à prática, à luta, à atividade, o sujeito emancipador rompe com a contemplação. Desse ponto de vista, os conselhos operários, abolindo a separação entre produto e produtor, decisão e execução, são a antítese radical da sociedade do espetáculo [2].  Contra todas as neutralizações e castrações, é preciso relembrar o essencial: a obra de Guy Debord – que ainda será lembrada no próximo século – foi redigida por alguém que se considerava “um revolucionário profissional na cultura”. Sob sua influência, o situacionismo, ala dissidente do surrealismo, conjugou as melhores tradições do comunismo conselhista com o espírito libertário do anarquismo, num movimento para a transformação radical da sociedade, da cultura e da vida quotidiana – movimento que fracassou, mas ao qual o imaginário de 68 deve alguns de seus ímpetos mais audaciosos.

Pode-se criticar Guy Debord: espírito aristocrático, fechado numa solidão orgulhosa, admirador do barroco e dos estrategistas políticos astuciosos (Maquiavel, Castiglione, Baltazar Gracian, o cardeal de Retz), ele era bastante megalomaníaco e não escondia – sobretudo no fim – sua pretensão desmesurada de ser o único indivíduo livre numa sociedade de escravos. Mas é preciso reconhecer isto: contrariamente a tantos outros de sua geração, nunca aceitou, sob nenhuma forma, reconciliar-se com a ordem de coisas vigente.

Uma das razões do fascínio que seus escritos exercem é esta irredutibilidade que brilha com um sombrio esplendor romântico. Por romantismo, não entendo, ou não somente, uma escola literária do século dezenove, mas alguma coisa muito mais vasta e mais profunda: o grande movimento de protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna, em nome de valores do passado, que começa na metade do século dezoito, com Jean Jacques Rousseau, e que persiste, passando pela Frühromantik alemã, pelo simbolismo e surrealismo, até os nossos dias. Trata-se, como o próprio Marx já constatara, de uma crítica que acompanha o capitalismo como uma sombra projetada, desde seu nascimento até o dia (bendito) de sua morte. Como estrutura de sensibilidade, estilo de pensamento, visão do mundo, o romantismo percorre todos os domínios da cultura – literatura, poesia, artes, filosofia, historiografia, teologia, política. Dilacerando entre nostalgia do passado e sonho de futuro, ele denuncia as desolações da modernidade burguesa: desencantamento do mundo, mecanização, reificação, quantificação, dissolução da comunidade humana. Apesar da permanente referência a uma idade de ouro perdida, o romantismo não é necessariamente retrógrado: durante sua longa história, conheceu tanto formas reacionárias quanto revolucionárias [3]. 

É a esta última tradição, utópica e subversiva, do romantismo, que vai de William Blake a William Morris e de Charles Fourier a André Breton, que pertence Guy Debord. Ele nunca deixou de denunciar e de ridicularizar as ideologias da “modernização”, sem temer um instante sequer a acusação de “anacronismo”: “Quando ‘ser absolutamente moderno’ se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, o que o escravo honesto teme, acima de tudo, é que se possa suspeitar que ele seja passadista” (Panégy-rique).

Ele jamais escondeu uma certa nostalgia das formas pré-capitalistas da comunidade. O valor de troca e a sociedade do espetáculo dissolveram a comunidade humana, fundada numa experiência direta dos fatos, num verdadeiro diálogo entre os indivíduos e numa ação conjunta para resolver os problemas. Debord menciona freqüentemente as realizações parciais da comunidade autêntica no passado: a polis grega, as repúblicas medievais italianas, as vilas, os bairros, as tavernas populares. Retomando (implicitamente) por sua conta a célebre distinção de Ferdinand Tönnies entre Gesellschaft e Gemeinschaft, estigmatiza o espetáculo como “uma sociedade sem comunidade” (Sociedade do espetáculo, parágrafo 154).

Para ilustrar o romantismo noir - no sentido do “romance noir” inglês do século dezoito - de Guy Debord, eu tomaria como exemplo um único texto: o roteiro do filme In girum imnus nocte et consumimur igni. Este texto é um discurso esplêndido, ao mesmo tempo poético, filosófico, social e político. Tanto o roteiro propriamente dito quanto as imagens funcionam de maneira complementar no quadro de um uso iconoclasta, no sentido estrito, do cinema clássico. A palavra tem um valor intrínseco, independente da função da imagem. A esse respeito, é significativo que, em 1990, Debord tenha reeditado só o texto, sem o roteiro, acrescentando somente uma série de notas de rodapé.

Se o filme é feito de citações cinematográficas, o texto também é recheado de citações que, ora indicam suas fontes (Clausewitz, Marx, Swift), ora as silenciam (Bíblia, Victor Hugo). Mas, na realidade, as fontes não têm grande importância. Debord trata-as como os bandidos dos caminhos principais tratam os bens de suas vítimas. Ele tira as passagens citadas de seu contexto para integrá-las no seu próprio discurso que lhes atribui, assim, um novo sentido.

Profissional da provocação, Debord começa seu roteiro com um ataque em regra contra seu público. Público composto, em sua maioria esmagadora, por assalariados privilegiados da sociedade mercantil, vítimas consentidoras da sociedade do espetáculo, incapazes de subtrair-se “à concorrência do consumo ostentatório do nada”. Mas seu objetivo principal é outro. Ele conta como, na Paris dos anos cinqüenta, nasceu um projeto de subversão total. O título do filme, um anagrama latino –“Nós erramos pela noite e somos consumidos pelo fogo” – resume, numa imagem ambígua, os sentimentos e os dilemas de um grupo de jovens que tinha por lema “a recusa de tudo o que é comumente admitido”. Um grupo que se colocou nas primeiras fileiras de um “assalto contra a ordem do mundo”, na vanguarda de maio de 68. E se o inimigo não foi aniquilado, as armas dos jovens combatentes não deixaram de ficar cravadas “na garganta do sistema das mentiras dominantes” [4].

Não é somente a qualidade poética, a originalidade filosófica, o rigor crítico, a esplêndida impertinência que dão ao roteiro seu fascinante poder. São, também, a paixão e a imaginação de um pensamento inspirado pela tradição subversiva do romantismo noir.

Como seus antepassados românticos, Debord não tem senão desprezo pela sociedade moderna: denuncia incessantemente suas “más construções doentias e lúgubres”, suas inovações técnicas que quase sempre beneficiam unicamente os empreiteiros, seu “analfabetismo modernizado”, suas “superstições espetaculares”, e sobretudo sua “paisagem hostil”, a qual  responde às “conveniências concentracionárias da indústria atual”. Ele é particularmente feroz quanto ao urbanismo néo-haussmaniano e modernizador da Quinta República, promotor de uma sinistra adaptação da cidade à ditadura do automóvel. Política responsável, segundo Debord, pela morte do sol, do escurecimento do céu de Paris pela “falsa bruma da poluição” que cobre permanentemente “a circulação mecânica das coisas, neste vale de desolação”. Logo, ele não pode senão recusar “a infâmia presente, na sua versão burguesa ou na sua versão burocrática”, e não vê outra saída para suas contradições senão “a abolição das classes do Estado” [5].

Este anti-modernismo revolucionário é acompanhado por um olhar nostálgico para o passado – pouco importa que se trate da “residência antiga do rei de Ou”, reduzida a ruínas, ou da Paris dos anos 50, transformada também, graças ao urbanismo contemporânea, numa ruína escancarada. O lamento pungente das “belezas que não voltarão”, das épocas em que “as estrelas não estavam apagadas pelo progresso da alienação”, a fascinação por “damas, cavaleiros, armas, amores” de uma época finda percorrem, como um murmúrio subterrâneo, o texto todo [6].

Mas não se trata de voltar ao passado. Poucos autores do século 20 conseguiram, tanto quanto Guy Debord, transformar a nostalgia numa força explosiva, numa arma envenenada contra a ordem de coisas vigente, e numa abertura revolucionária para o futuro. O que ele busca, não é a volta à idade de ouro, mas “a fórmula para destruir o mundo”. Esta busca, ele e seus amigos fazem-na primeiramente nas derivas – esta “busca de um outro Graal nefasto”, com seus “surpreendentes encontros” e seus “encantamentos perigosos” – que lhes permitiram pôr as mãos no “segredo de dividir o que era unido” [7].

“Encantamento perigoso”. Esta expressão é importante. Se o ethos da civilização moderna é, como tão bem o percebera Max Weber, die Entzauberung der Welt, o romantismo é, antes de tudo, uma tentativa, freqüentemente desesperada, de reencantamento do mundo. Sob que forma? Enquanto os românticos conservadores sonham com restauração religiosa, os românticos noirs, de Charles Mathurin a Baudelaire e Laautréamont, não hesitam em escolher o campo do Mefistófeles fáustico, este “espírito que nega sempre”.

É também o caso de Guy Debord e de seus amigos, partidários da dialética negativa que tomaram “o partido do Diabo”, “quer dizer deste mal histórico que leva à sua destruição as condições existentes”... Face a uma sociedade corrompida que se pretende unida, harmoniosa e estável, sua mais ardente aspiração é tornarem-se “os emissários do Príncipe da Divisão”. E confrontados com a “claridade enganosa do mundo ao contrário”, querem ser os discípulos do “príncipe das trevas”. “Belo título, afinal de contas: o sistema das luzes presente não concede nenhum  tão honroso”. 

Como os poetas românticos (Novalis), Debord prefere os símbolos da noite àqueles de uma Aufklärung excessivamente manipulada pela classe dominante. Mas enquanto para eles, a luz noturna preferida é a da lua – como no célebre verso de Tieck que resume em duas palavras o programa literário e filosófico do primeiro romantismo alemão, die mondberglanzte Zaubernacht (“a noite de encantos iluminada pela lua”) – para o roteirista de In girum imnus nocte consumimur igni trata-se, antes, do clarão dos incêndios: “Eis como se inflamou, pouco a pouco, uma nova época de incêndios, cujo fim nenhum dos que vivem neste momento verá: a obediência está morta” [9].

As chamas atingem já as muralhas da fortaleza espetacular? Pode-se já perceber, como acreditava Debord em 1979, a inscrição babilônica Mane, Mane, Thecel nos muros? Talvez. Em todo caso, ele não estava errado ao concluir: “ Os dias desta sociedade estão contados; suas razões e seus méritos foram pesados, e achados leves; seus habitantes dividiram-se em dois partidos, dos quais um quer que ela desapareça” [10]. Fiel às injunções do romantismo noir, Guy Debord foi uma espécie de aventureiro do século vinte. Mas pertencia a uma espécie particular, definida nos seguintes termos por um apelo da Internacional letrista em 1954, assinado, entre outros, por “Guy-Ernest Debord”: “O aventureiro é aquele que faz acontecerem as aventuras, mais do que aquele a quem as aventuras acontecem”.

Esta máxima poderia servir de epígrafe para a sua vida.