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Michael Lowy, o ecossocialismo e o jardim encantado

Resenha do recém-lançado livro de Michael Lowy e Robert Sayre, Anticapitalismo romântico e natureza: o jardim encantado

2 de novembro de 2021

Acaba de ser lançado no Brasil o livro de Michael Lowy e Robert Sayre, Anticapitalismo romântico e natureza: o jardim encantado (São Paulo Editora da Unesp, 2021). Ele é um desenvolvimento e um complemento indispensável para a análise que estes autores haviam empreendido, em Revolta e melancolia, do romantismo como uma das cosmovisões inerentes à modernidade - junto com o iluminismo e a dialética. 

Ao focar esta obra na relação do romantismo com a natureza, os autores são capazes de ampliar a coerência de sua tese central e lhe dar uma enorme atualidade política, fornecendo uma chave de interpretação para conectar inúmeros fenômenos contemporâneos, aparentemente díspares, de crítica sistêmica ao capitalismo - algo estratégico quando o mal-estar sistêmico com a globalização neoliberal cosmopolita se amplifica e é capturado por protofascismos.

Resenha de José Correa Leite

O anticapitalismo romântico

Cosmovisão ou visão do mundo é um conceito que os autores recuperam de Lucien Goldmann, uma mentalidade fundamental de uma grande época histórica, dotada de características comuns, que anima e integra aspirações, sentimentos e ideias de alguns grupos sociais e se opõe a mentalidade de outros (ainda que com diferentes níveis de consistência). É nesse marco que o romantismo se torna um conceito e não apenas uma tipologia de formas de nostalgia. 

Michael Lowy e Robert Sayre já tinham dedicado ao romantismo uma extensa e ambiciosa análise em Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, originalmente publicado em 1992 e reeditado pela Boitempo em 2015. Esta obra é central para a compreensão do que Lowy frequentemente considera (acompanhando Ernst Bloch, o autor de O princípio esperança) a “corrente quente” do marxismo e do pensamento emancipador, que radicaliza a crítica anticapitalista levando-a ao ponto de ruptura com os parâmetros da civilização capitalista-moderna. Sem esta ruptura com as ideologias modernizantes, o marxismo - concebido como filosofia da práxis e sistema aberto de pensamento (para Goldmann estruturante da visão de mundo dialética) - perderia a capacidade de empreender um diálogo vivo com as críticas anticapitalistas mais contundentes da atualidade e perduraria apenas como um dogma de fé na luta de classes. 

A experiência moderna, que Marx sintetizou na frase famosa (e mais atual do que nunca) “tudo que é sólido se desmancha no ar”, encontra resistências por todas as partes. Ela vai dar origem a uma crítica específica, romântica, que denuncia aspectos fundamentais da modernidade e do capitalismo: 1) o desencantamento do mundo; 2) a quantificação do mundo; 3) a mecanização do mundo; e 4) a dissolução dos vínculos sociais. São todos aspectos centrais presentes na crítica que Marx empreende do capitalismo e que se intensificaram desde então através de um sem número de movimentos e pensamentos.

Para os autores, “o romantismo é uma crítica cultural ou rebelião contra a modernidade capitalista-industrial em nome de valores do passado, pré-modernos ou pré-capitalistas. Como cosmovisão, ele está presente em toda uma gama de criações culturais: literatura e arte, religião e filosofia, teoria política, historiografia, antropologia e até economia política. Ele considera que no advento da sociedade burguesa moderna houve uma perda decisiva dos valores humanos, sociais e espirituais que existiam em um passado real ou imaginário. (...) Ele pode assumir formas regressivas, sonhando com retornos imaginários ao passado, mas também com retornos revolucionários que avançam, ou tentam avançar, para uma futura utopia passando por um desvio no passado” (p. 11-12) . Esta crítica pode, assim, levar a posturas reacionárias mas também à formas de protesto anticapitalistas. Os autores afirmam que Marx não é nem iluminista nem romântico, mas integra as duas visões de mundo em uma nova, uma crítica moderna da modernidade capitalista, em que as concepções anteriores estão em uma tensão permanente, mas na qual a corrente fria deve estar a serviço da corrente quente - sem isso não há pensamento revolucionário vivo. Eles fazem parte de uma vertente da sociologia política que vai mapear, na política e na cultura, a existência de toda uma corrente marxista ou anticapitalista romântica e rebelde - expressa desde a obra do jovem Lukács (que depois se tornou um de seus mais ácidos críticos), Bloch e Mariátegui até à Gorz, de Debord e Wallerstein, mas também em distintos movimentos sociais por todo o planeta.

O jardim encantado

Anticapitalismo romântico e natureza: o jardim encantado é uma contribuição às “humanidades ambientais”, que ao lado da ciência da ecologia, sistematiza a nova relação que parcelas da nossa espécie busca estabelecer com o planeta. Nossos autores vão mapear o protesto contra a civilização burguesa moderna e sua destruição do meio ambiente natural em seis autores, que compreendem dois séculos de trajetória da modernidade, dedicando a um capítulo para cada: William Bartram, um naturalista e botânico norte-americano da virada do século XVIII para o XIX; o pintor de paisagens anglo-americano Thomas Cole, que viveu na primeira metade do século XIX; o artesão, artista e militante socialista inglês da segunda metade do século XIX William Morris; o filósofo frankfurtiano Walter Benjamin; o teórico e inspirador inglês dos estudos culturais Raymond Williams; e a ativista ambiental canadense Naomi Klein. Não vamos recuperar as análises específicas que são feitas destes personagens por Lowy e Sayre, destacando aqui apenas seu enquadramento geral e algumas conclusões.

O subtítulo é tomado de empréstimo, de forma muito livre, dos estudos de sociologia da religião de Max Weber que, em sua análise do hinduísmo e do budismo, afirma que as culturas asiáticas vivem em um “jardim encantado” e que este conceito também pode ser aplicado à visão romântica (principalmente ocidental) da natureza. Lowy e Sayre vão, na introdução do livro, localizar os primeiros degraus da narrativa romântica em Jean-Jacques Rousseau, com sua crítica feroz da civilização moderna e celebração do “selvagem” (estabelecida a partir do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1755). 

Essa “ecocrítica romântica” vai marcar a filosofia clássica alemã, espiritualizando a natureza e concebendo o cosmos como algo divino. Mas ela também dá o impulso inicial para a pesquisa do maior cientista e naturalista da primeira metade do século XIX, Alexander von Humboldt, que integra o ser humano e a natureza em uma ampla visão holística e não religiosa. Apoiando-se na notável biografia intelectual que Andrea Wulf faz do cientista alemão em A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, nossos autores mostram sua capacidade de integrar “as respostas sensuais, emotivas imaginativas e artísticas do sujeito humano em relação a ela” [a natureza] (19). Esquecido na deriva positivista e fragmentação das ciências na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX (que afetou também o marxismo), Humboldt é hoje “cada vez mais reconhecido como um precursor genial da ciência ecológica em sua abordagem global e interrelacional a este mundo, visto como uma rede ampla de conexões que cobre todo o planeta, e mais especificamente em sua teorização e estudo de ‘zonas climáticas’ e da mudança climática” (20).

A característica comum definidora de todos os autores analisados “é a crítica apaixonada à civilização moderna em nome de valores enraizados em uma era pré-moderna, com ênfase especial na questão de sua relação com o mundo natural” (188). Eles “projetam uma forte identificação emotiva com o mundo da ‘natureza’, não importa como seja vivenciada ou percebida, e são dolorosamente cientes de que a modernidade o danifica e o põe em risco” (189). Essa perspectiva romântica se projeta hoje em algumas das correntes mais radicais do movimento ecológico: a ecologia profunda, o ecofeminismo e o ecossocialismo. E fornece um marco conceitual para analisar “um fenômeno cultural  amplo que acreditamos ser crucial para os desenvolvimentos presentes e futuros na arena ecológica, um fenômeno que forma o pano de fundo para a visão romântica de Naomi Klein: o indigenismo” (191). 

Lowy e Sayre argumentam que “a dinâmica do capital exige a transformação de todos os bens mantidos de forma comum, o que, cedo ou tarde, leva à destruição ambiental (...) As populações que vivem em contato mais direto com esses meios ambientes são as primeiras vítimas desse ecocídio e, com razão, tentam se opor à expansão destrutiva do capital em suas terras como uma questão de sobrevivência. Além dessas motivações imediatas e concretas, porém, entra em cena um antagonismo mais profundo entre o modo de vida dessas comunidades e o ‘espírito do capitalismo’” (192). Ao contrário da afinidade eletiva existente entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, há uma afinidade negativa entre a ética indígena e o espírito do capitalismo, que permite que o indigenismo possa adquirir um caráter não apenas ecológico, mas também anticapitalista.

Este livro é, portanto, explicitamente concebido, como também era o caso de Revolta e melancolia, não como uma análise acadêmica e ahistórica, mas como uma chave de interpretação de fenômenos contemporâneos centrais, um reposicionamento necessário do marxismo para vertebrar a visão de mundo dialética e um pensamento anticapitalista diante das vagas de “destruição criativa” que caracterizaram o último meio século - impulsionadas pela globalização neoliberal do capitalismo, pelas tecnologias digitais, pelas alterações estruturais da estrutura de classes e pela escalada da crise ambiental.

Pensar o socialismo para além do progresso

Um ponto colocado logo na introdução do livro percorre toda a obra como um alicerce das diferentes análises específicas. A perspectiva romântica está em contradição direta com o “‘regime moderno de historicidade’, baseado na crença na inevitabilidade do ‘progresso’ e na rejeição do passado pré-moderno como ‘arcaico’” (12). Citando Baschet e Hertog, os autores lembram que "um regime romântico de historicidade” acompanha como uma sombra este “regime moderno”. Nele, o passado é invocado para criticar o presente moderno e imaginar o futuro - uma crítica à civilização burguesa muito mais ampla do que a simples crítica ao modo de produção capitalista-industrial.

Michael Lowy é o autor de vários livros sobre um dos autores que é aqui tratado centralmente em sua relação com a natureza, Walter Benjamin. Anticapitalismo romântico e natureza: o jardim encantado destaca que as Teses sobre o conceito de história, redigidas por Benjamin em 1940, são “talvez o documento mais importante da teoria revolucionária desde as célebres Teses sobre Feuerbach (1845) de Marx” (p. 129), uma afirmação que tem enormes consequências. É nesse texto do filósofo frankfurtiano que se estrutura, com toda força, uma visão alternativa ao conceito de tempo linear e vazio do progresso, da abstração e da escalada quantitativa do capital sobre o mundo, um contraponto ao regime moderno de historicidade do liberalismo, mas que é incorporado por um certo marxismo de chave positivista, frequentemente assimilado pelo pensamento progressista e reformador do capitalismo (a social-democracia é alvo explícito da crítica de Benjamin). Nela, emerge a concepção de revolução como freio de emergência, o único que parece racional na atualidade e que faz tremer o marxismo dogmático e positivista, formatado pelas revoluções anticoloniais e anti-imperialistas do século XX, todas recuperadas pelo capitalismo. Esta concepção pode ser considerada, simultaneamente, o coroamento de um anticapitalismo romântico mas também um dispositivo central para a reorganização conceitual de uma esquerda marxista antissistêmica na atualidade - uma concepção que Michael Lowy compartilha com Daniel Bensaid.

É possível pensar a luta pela superação do sistema fora da ideia do futuro como progresso e desenvolvimento das forças “produtivas” capitalistas? Certamente que sim. A luta ambiental da juventude contra a destruição inerente à economia do lucro, a luta milenar dos povos indígenas em defesa de seus territórios, as revoltas anti-racistas ou a luta feminista das mulheres contra o patriarcado não são regressivas, mas não podem compartilhar do otimismo histórico que marcou o movimento do operariado industrial do passado, exigindo e impondo outro enquadramento conceitual. Ao costurar sua análise do romantismo anticapitalista tanto em sua com a relação com a natureza e como com outra concepção de história, Lowy e Sayre nos auxiliam a enfrentar as realidades candentes da emergência climática e do colapso da biodiversidade, de um lado, e da crise profunda dos laços de solidariedade e da reprodução social que vivemos, de outro.

O que significa o marxismo aberto?

Para Daniel Bensaid, o marxismo aberto se apoiava, depois de seu giro benjaminiano dos anos 1980, em boa medida, na mobilização conceitual do pensamento científico desenvolvido após a morte dos fundadores do materialismo histórico, em especial pelas ciências naturais. Seus conceitos eram utilizados para uma releitura de Marx como o introdutor das caóticas temporalidades do capital e da história moderna (veja-se seu notável Marx o intempestivo, publicado em 1999 pela Editora Civilização Brasileira, mas praticamente desconhecido pela esquerda brasileira, e sua contraparte, La discordance des temps, ainda inédito em português). É a partir desse giro e dessa releitura da obra de Marx que seu pensamento se abre para o diálogo com a filosofia política crítica.

O marxismo de Michael Lowy é, desse ponto de vista, simultaneamente mais “ortodoxo”, ao defender a especificidade das ciências sociais frente às ciências da natureza (sua epistemologia já tinha sido explicitada em As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, uma obra de 1985), e mais aberto, ao enfatizar o diálogo e a incorporação da agenda política de quase todos os movimentos contemporâneos de rebelião antissistêmica desde uma ótica emancipatória. 

O marxismo aberto de Michael Lowy está hoje estruturado a partir do projeto político ecossocialista, constituindo-se em uma ferramenta conceitual indispensável para articular as alianças necessárias para construir outro mundo. Isso é possível apenas fora da miragem de uma abundância fantasiosa para tod@s - um dispositivo político que boa parte da esquerda utiliza como válvula de escape dos conflitos redistributivos inevitáveis quando se coloca a ecologia no centro da luta e não é mais possível afirmar que todos se beneficiarão do “crescimento”. Um mundo onde coexistam o respeito aos direitos, diversidade e dignidade dos seres humanos, a liberdade política e a autonomia individual e a reconstrução de um sentido de comunidade só pode ser visualizado através de uma relação sustentável com a natureza, fora dos impulsos suicidas de um crescimento infinito em um planeta finito. Anticapitalismo romântico e natureza: o jardim encantado rastreia esta busca de convergência possíveis na defesa da Terra.