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Michael Roberts: guerra de capitais entre EUA e China

Para marxista estadunidense, guerra comercial e tecnológica entre duas potências é questão central do século XXI

1 de agosto de 2020

Michael Roberts, The next recession / Economia e complexidade, 19 de julho de 2020

Já examinamos aqui neste blog (The next recession blog) o argumento de que a principal questão global século XXI é a crescente guerra comercial e tecnológica entre os EUA e a China. Em seu livro, Trade wars are class wars, Matthew Klein e Michael Pettis afirmam que os atuais desequilíbrios comerciais são causados pela desigualdade, pela renda e pelo consumo tal como ocorrem nas duas potências: a China mantém “excesso de poupança” e os EUA dão suporte ao “excesso de consumo”. Num post anterior, argumentamos que esse argumento é falso.

Agora, é preciso examinar o livro Capital wars que apresenta uma visão diferente no que se refere à rivalidade entre a China e os EUA. Até agora, a concorrência entre os EUA e a China na esfera econômica tem ocorrido na esfera do comércio e da tecnologia. Pouco atritos aconteceram nos mercados financeiros. De fato, à medida que mais ações das empresas chinesas são incorporadas aos índices globais, os investidores americanos aplicam capital na China por meio de investimentos em fundos de rastreamento de índices.

No entanto, é improvável que isso dure. É o que sustenta Michael Howell, exdiretor de pesquisa do banco de investimentos Salomon Brothers, que agora dirige sua própria “boutique” financeira. Em Capital wars, ele ressalta que as linhas de swap oferecidas pelo Federal Reserve dos EUA aos outros bancos centrais, após a crise financeira de 2008 – algo que está se repetindo agora desde o ataque do coronavírus –, foram estendidas apenas às nações amigas. A China foi claramente excluída desse suporte financeiro. Portanto, o papel do Federal Reserve como credor global de última instância tem sido parcial e politizado.


Howell julga que a natureza do relacionamento entre esses dois poderes globais encontra-se desequilibrada. Apesar de sua participação em declínio na produção global, os EUA são o principal fornecedor da moeda de reserva que domina nos mercados mundiais. A sua economia está marcada por um baixo crescimento da produtividade ao mesmo tempo em que mantêm mercados financeiros altamente desenvolvidos. A China desfrutou de alto crescimento de produtividade nas últimas décadas, aproximou-se dos Estados Unidos, mas tem mercados financeiros subdesenvolvidos. Os superávits comerciais persistentes contribuíram para que acumulasse um enorme acúmulo de reservas cambiais – a maioria dos quais está em ativos em dólares. Tudo isso cria, segundo ele, uma interdependência fragmentada.


A ascensão econômica da China coincidiu com um longo período de liberalização nos mercados financeiros internacionais. Um tema central do livro de Howell é o aumento da liquidez global – formada por fluxos brutos de crédito, poupança e capital internacional, os quais facilitam os fluxos de dívida, de investimento e de capital para além das fronteiras nacionais. Em 2019, esse conjunto internacional de fundos foi estimado em US$ 130 trilhões, dois terços maior que o PIB mundial. A contribuição da China para esse montante foi cerca de US$ 36tn.

Não há nada de novo na visão de Howell aqui. De fato, vários autores, inclusive eu, apontaram o enorme aumento da 'liquidez', isto é, oferta de moeda, crédito bancário, dívida (pública e privada) e instrumentos de dívida como derivativos, particularmente desde o início dos anos 2000.

O que há de novo neste livro recém lançado é a ênfase de Howell sobre as novas maneiras que o sistema financeiro encontrou para expandir. Sob formas que Marx chamou de "capital fictício", isto é, ativos financeiros que supostamente representam novos valores e lucros futuros. Considerando que os bancos costumavam contar com depósitos de clientes para emprestar e especular; agora a principal fonte de fundos não são os depósitos, mas os acordos de recompra ou “recompras”, uma
forma de empréstimo que precisa ser apoiada por “cauções” na forma de ativos “seguros”, como títulos do governo.

Howell argumenta, como outros, que o sistema financeiro mudou do modelo do pós-guerra, onde os bancos eram os principais facilitadores dos empréstimos. Eles tomavam emprestado de seus depositantes de varejo e emprestaram a indivíduos e empresas. Hoje, os mercados atacadistas
predominam; e os principais provedores de fundos são instituições financeiras e grandes empresas como Apple ou Toyota. Os usuários variam: empresas, bancos, fundos de hedge e governos; o financiamento não bancário é agora chamado de “shadow banking”.

O principal argumento de Howell é que a principal fonte de instabilidade no sistema financeiro moderno tem sido a falta de ativos seguros para manter tais criadores de liquidez, pois não havia dívida pública suficiente e o retorno está agora muito baixo. De fato, antes da crise financeira de 2008, os bancos de investimento tentaram inventar novos “ativos seguros” empacotando obrigações hipotecárias garantidas. Sabemos agora – e isto ficou muito claro – que esses ativos não eram "seguros", mas formavam um esquema gigante de crédito Ponzi que se mostrou para além de "fictício" no colapso financeiro global em 2007-9.

A questão apresenta por Howell quer saber se a enorme injeção de dinheiro de crédito pelo Federal Reserve e outros bancos centrais para resgatar as empresas e os governos na crise pandêmica do COVID produzirá um “choque” financeiro semelhante ao seu devido tempo. A diferença agora é que é o Estado que está comprando esses "ativos seguros" diretamente – e não o sistema bancário oficial ou paralelo, tal como ocorreu em 2008-9. No entanto, o tamanho das compras de títulos corporativos e hipotecários pelos bancos centrais, bem como de papéis do governo, são tão grandes que, se houvesse uma forte explosão de falências, os credores em última instância (ou seja, os bancos centrais) – tornar-se-iam agora os detentores principais de capital fictício morto. Ora, isto pode resultar em enormes prejuízos para os governos absorverem.

Um mérito do livro de Howell sobre outros da mesma classe é que ele oferece uma explicação sobre porque houve essa mudança drástica do "banco tradicional" para o “sistema da financeirização” de ativos governamentais e corporativos. Para ele a causa se encontra diretamente no colapso da lucratividade nos setores produtivos da economia.

Howell calcula que a queda da rentabilidade no capital industrial levou ao aumento da “liquidez” global. E isto contribuiu em sequência para a queda das taxas de juros dos ativos de risco, o que, por sua vez, levou a busca de ativos financeiros seguros, ou seja, dívidas dos governos e “operações compromissadas” em detrimento do investimento produtivo.

Howell apresenta a história dos 30 anos que antecederam o colapso financeiro global e a Grande Recessão que a ele se seguiu. Infelizmente, apesar de se referir ocasionalmente à análise de Marx, de fato Howell passa ao largo dela. Em vez disso, ele recorre às identidades macroeconômicas keynesianas habituais para explicar por que as crises ocorrem. Ora, em todas essas identidades, os lucros desaparecem das equações.

Howell toma a identidade macroeconômica básica: poupança = investimento e a transforma em sua equação principal: liquidez = investimento fixo mais a aquisição líquida de ativos financeiros. Ora, a liquidez é realmente o lucro acumulado mais o montante de crédito em suas várias formas. Mas, para Howell, a força motriz do capitalismo moderno não é a parte lucrativa da "liquidez". É a parte formada pelo crédito. Para ele, os fluxos financeiros e o comportamento de risco dos investidores impulsionam a economia real e os preços dos ativos, e não vice-versa. Mais liquidez leva a mais compras de ativos financeiros. E mais compras de ativos financeiros exigem mais liquidez. Assim, passamos de uma visão do capitalismo como um modo de produção centrado no lucro, para um capitalismo como um modo de especulação financeira e instabilidade financeira. Essa teoria é semelhante à abordagem de Minsky e das modernas teorias de "financeirização".

Para Howell, a próxima guerra entre os EUA e a China será travada não tanto por meio do comércio ou da tecnologia, mas através dos fluxos financeiros e do controle das moedas internacionais, à medida que as potências rivais lutam para oferecer os ativos financeiros “mais seguros” ao capital global: em dólar ou em renminbi?

Há claramente alguma verdade nisso. Se a China pudesse oferecer uma moeda forte e líquida que substituísse o dólar, o imperialismo americano estaria em apuros. Mas uma moeda forte não pode ser "criada" pelos mercados financeiros; ela decorre da força relativa da produtividade do trabalho e da criação de valor no sistema econômico. É aí que a guerra econômica se dá: o comércio, a tecnologia e o sistema financeiro são os campos de batalha. Nesse campo, o valor-trabalho decide – e não o crédito.