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Michel Husson: a economia de Ernest Mandel, ontem e hoje

Um quarto de século após a morte de Ernest Mandel, seus escritos econômicos seguem sendo atuais e ensejam questões instigantes

 

14 de janeiro de 2021

Michel Husson, A l'Encontre, 13 de julho de 2020

Um quarto de século após a morte de Ernest Mandel (em 20 de julho de 1995), este artigo não pretende ser uma homenagem. Dentro do espírito do marxismo vivo, como foi o dele, nos limitaremos prioritariamente a mostrar como seus escritos econômicos seguem sendo atuais e a delinear as questões, antigas ou atuais, que eles ensejam. (1)

A difusão do marxismo
Mandel desempenhou um papel chave na difusão de um marxismo liberto das aparências enganosas do stalinismo, preocupado sempre em estabelecer um vínculo entre a análise econômica e a ação militante. Sua primeira contribuição importante foi o Tratado de Economia Marxista, publicado em 1962. Esta síntese teve uma ampla difusão internacional e contribuiu para a renovação de um marxismo vivo, ansioso por incorporar os últimos acontecimentos. O capítulo 11 [do Tratado] sobre as crises periódicas é um claro exemplo disso: Mandel esboça uma síntese entre as teorias baseadas no subconsumo e na desproporcionalidade, referindo-se às contribuições de economistas como Harrod, Kuznets, Samuelson, Goodwin, Kalecki e Joan Robinson. Mesmo que as considere “demasiado simplificadas”, estima que “seguem constituindo um material importante”.

Em 1963, Mandel realiza uma série de conferências durante um fim de semana de formações organizadas pela seção parisiense do PSU (Parti Socialiste Unifié - Partido Socialista Unificado). Essas conferências se tornam um folheto, Iniciação à teoria econômica marxista, que logo será reeditado várias vezes. Ainda que, obviamente, seja necessária uma atualização, se trata de um texto notável, extremamente pedagógico e ilustrativo da constante preocupação de Mandel em tecer pontes entre a teoria mais exigente e a formação dos militantes.

Em 1967, Mandel publica A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. Um dos principais propósitos deste livro era tornar conhecida uma das obras fundamentais de Marx - Grundisse (Elementos fundamentais para a crítica da economia política) - antes sequer que a primeira tradução francesa, de Roger Dangeville, fosse publicada. Deve-se ler, em particular, o capítulo sobre a “dialética do tempo de trabalho e do tempo livre”, que é uma introdução perfeita ao tema da redução do tempo de trabalho.

É evidente que Mandel buscava difundir o pensamento econômico de Marx, com o objetivo constante de propor uma versão não dogmática de marxismo. Portanto, não é casual que o tenham pedido para redigir o prefácio da edição inglesa de O Capital (Penguin), o que permite demonstrar o reconhecimento de Mandel no mundo anglo-saxônico. Lamentavelmente, essas introduções aos três livros de O Capital não foram publicadas em francês [nem em português], embora tenham sido traduzidas ao espanhol e reunidas em um livro intitulado El Capital - Cien Años de Controversias En Torno a la Obra de Karl Marx, que constitui uma excelente introdução à obra-prima de Marx.


O problema da “transformação”
Podemos, a título de exemplo, citar uma passagem dedicada ao problema da transformação dos valores em preços. Este problema teórico tem sua importância porque abriu as portas para uma crítica da teoria do valor em Marx: havia uma contradição insuperável entre o Livro I de O Capital (os valores são proporcionais ao gasto de trabalho) e o Livro III (os preços são proporcionais ao capital adiantado).


A resposta de Mandel consiste em rebater a hipótese fundamental dos críticos de Marx, segundo a qual os preços de produção dos insumos (inputs, o que entra em produção) são idênticos aos preços de produção (outputs, o que se produz): “os insumos dos ciclos de produção atuais são dados conhecidos no princípio do ciclo, e não produzem um efeito retroativo na análise da taxa de lucro entre as diferentes atividades industriais durante esse ciclo”. “Basta considerar que também se calculam em preços de produção e não em valores, mas estes preços de produção são o resultado da análise das taxas de lucro durante o ciclo anterior, então desaparecem todas as incoerências (...) Os preços de produção das matérias primas, como os de todos os insumos utilizados na produção (...) são o resultado da análise das taxas de lucro do período anterior”. Em poucas palavras, foi apresentada a solução. Porém, curiosamente, Mandel não insistiu nesta: na obra coletiva “Ricardo, Marx, Sraffa”, somente trata do problema da transformação sob o ponto de vista do papel que desempenham o ouro e o dinheiro.


A trajetória do capitalismo
Os resultados do capitalismo do pós-guerra (baixo desemprego, crescimento do poder aquisitivo) estavam indo contra as teses do declive inevitável e da pauperização do proletariado defendidas pelos economistas stalinistas. Para analisar esta nova configuração, Mandel falou de neocapitalismo (um termo que logo rejeitaria) e começou a utilizar a ideia de ondas longas.


Logo em 1963 - em sua já mencionada Introdução à Teoria Econômica Marxista - Mandel se refere a Kondratieff e depois enfatiza que “a onda longa que se iniciou com a Segunda Guerra Mundial e em que ainda permanecemos - podemos chamá-la de ciclo 1940-1965 ou 1940-1970 - tem como característica, pelo contrário, a expansão”. Esta permite “um aumento tendencial no nível de vida dos trabalhadores”. Existe, portanto, uma previsão clara da mudança de rumos que isso iria produzir, e que está explicitada em um notável artigo publicado em 1964 no Les Temps Modernes, intitulado “Apogeu e porvir do Neocapitalismo” (“L’apogée du néo-capitalisme et ses lendermains”), em que Mandel previu o já próximo fim da expansão do pós-guerra, período esse que não havia ainda recebido o nome de “Os Trinta Gloriosos”.


Com a teoria das ondas longas, Mandel retoma as elaborações do princípio do século XX, sobretudo as de Parvus e Trotski. Reproduzimos abaixo a continuação da curva original do artigo (2) de Trotski de 1923 e sua transcrição em francês. Aí já se esboçava a ideia chave da teoria das ondas longas, de que o capitalismo atravessa períodos históricos: “20 anos de desenvolvimento capitalista muito gradual (A-B); 40 anos de ascensão firme (B-C); 30 anos de crise prolongada e de declínio (C-D)”, e Trótski pontua que não se trata de ciclos, como pensava erroneamente Kondratieff, porque “seu caráter e duração não estão determinados pelo jogo interno das forças capitalistas, mas pelas condições externas que constituem a base de seu desenvolvimento”.
 
A taxa de lucro
Mandel teve como referência sempre a formulação clássica da lei da tendência à queda da taxa de lucro, o que se pode ver, por exemplo, em seu texto “Variáveis parcialmente independentes e a lógica interna na análise marxista clássica”: “o aumento da composição orgânica do capital conduz a uma tendência para a diminuição da taxa média de lucro (...) A longo prazo, a taxa de mais-valia não pode aumentar em proporção à taxa de aumento da composição orgânica do capital, e a maioria das contratendências tende por sua vez, ao menos periodicamente (e também a muito longo prazo), a ser suplantada”.
 
Esta formulação tradicional é, no entanto, discutível, porque o aumento inquestionável da composição física do capital (o número de “máquinas” por trabalhador) não conduz necessariamente a um aumento na composição orgânica (em termos de valor), entre ambos se encontra a produtividade do trabalho. De fato, o processo de desenvolvimento das ondas longas tem algo a ver com a taxa de lucro. Porém, isso não significa que a fase expansiva se inicie automaticamente no momento em que a taxa de lucro alcança um certo ponto. É uma condição necessária, mas não suficiente. A forma como se recupera a taxa de lucro deve dar, porém, uma resposta adequada a outras questões, como a relativa à realização do produto.


A taxa de lucro é, todavia, um bom indicador sintético da dupla temporalidade do capitalismo, como Mandel insistia. O estabelecimento de uma ordem produtiva coerente significa manter [a taxa de lucro] a um nível alto e mais ou menos “garantido”. Ao cabo de certo tempo, a interação das contradições fundamentais do sistema degrada esta situação, e a crise aparece sempre e em todas as partes marcada por uma baixa significativa na taxa de lucro. Essa baixa reflete na dupla incapacidade do capitalismo em reproduzir o grau de exploração dos trabalhadores e em garantir a realização dos bens, em vez de uma tendência ascendente na composição orgânica do capital.

Desse modo, nos parece útil reformular a lei da tendência à queda na taxa de lucro: a taxa de lucro não diminui de maneira contínua, mas os mecanismos que a impulsionam para baixo terminam sempre prevalecendo sobre o que Marx chamava de contratendências. O giro é endógeno, de tal modo que a necessidade de uma reestruturação da ordem produtiva reaparece periodicamente.


De qualquer forma, Mandel nunca fez dessa lei o “alfa e ômega” da explicação das crises. No capítulo do seu livro As Crises: 1974-1982 dedicado a esta questão, Mandel enumera as causas invocadas por várias escolas marxistas: “A sobreacumulação de capital? Sem dúvida alguma (...) O subconsumo das massas? Sem dúvida alguma (...) A anarquia da produção e a desproporção entre os diferentes ramos? Sem dúvida alguma (...) A queda na taxa de lucro? Sem dúvida alguma”. Quanto a este último enfoque, explica: “mas não no sentido mecanicista do termo, que sugere uma cadeia causal retilínea”. Portanto, Mandel rechaça claramente qualquer explicação monocausal da crise e, em particular, da tendência à queda na taxa de lucro, que, para alguns marxistas, é uma garantia de ortodoxia.
 
Em que onda nos situamos?
É lógico que é fundamental refletirmos sobre onde estamos. Nossa resposta é que ainda estamos na longa onda de recessão que se iniciou com a recessão geral de 1974-75, e logo em seguida com a recessão de 1981-82. Entender isso requer várias explicações.

A primeira é que a teoria de Mandel nunca postulou que cada onda longa devia durar entre 25 e 30 anos. Evidentemente, assim se deu mais ou menos no passado, mas isso não significa que essa deva ser a regra, simplesmente porque as ondas longas não são ciclos. É absolutamente necessário rechaçar essa assimilação errônea, que aparece, por exemplo, nos escritos de Robert Boyer, um dos fundadores da chamada escola da regulação: “não podemos nos conformar com a interpretação bastante mecânica proposta por N.D. Kondratieff, recentemente retomada por E. Mandel, que representa a história do capitalismo como a sucessão de ondas de forte acumulação seguidas por ondas de fraca acumulação que duram aproximadamente um quarto de século (...) Nenhum princípio teleológico permite garantir a sucessão mecânica de fases ascendentes e descendentes, nem a transição automática de um regime de acumulação principalmente extensivo para um regime de acumulação principalmente intensivo”. (3)

Se trata de um grave erro de leitura que deve ser comparado ao que Mandel explicou na primeira edição de seu livro sobre as ondas longas em 1980: “A aparição de uma nova onda longa expansiva não pode, portanto, ser considerado um produto endógeno - mais ou menos espontâneo, mecânico, autônomo - da onda longa depressiva precedente, qualquer que seja a duração e a gravidade desta última. Não são as leis do desenvolvimento capitalista, mas sim os resultados da luta de classes durante todo um período histórico que determinam essa reviravolta decisiva. Em outras palavras, nossa tese é a seguinte: o desenvolvimento histórico está entranhado em uma dialética de fatores objetivos e subjetivos, em que os fatores subjetivos se encontram caracterizados por uma relativa autonomia. Eles não são direta e inevitavelmente predeterminados pelo que aconteceu anteriormente em termos de tendências fundamentais da acumulação do capital, tendências de transformação tecnológica, ou o impacto destas tendências no processo de organização de trabalho em si mesmo”.

Ou para resumir: “as ondas longas são mais que simples movimentos de ascensão e queda na taxa de crescimento das economias capitalistas. São, no mais profundo sentido do termo, períodos históricos específicos”.

A partir desse ponto de vista, devemos analisar a trajetória do capitalismo desde a virada dos anos 1980. De fato, a taxa de lucro se recuperou, ao menos até a crise de 2008, mas isso não é suficiente. Nada é mais estranho à teoria do que postular que basta alcançar um certo ponto de lucratividade para iniciar uma nova fase expansionista. A novidade é que a recuperação da taxa de lucro (com a qual alguns autores marxistas discordam) não foi acompanhada de uma retomada da acumulação, do crescimento e do aumento da produtividade. Este último ponto é, na nossa opinião, de suma importância: a desaceleração ou mesmo o esgotamento das melhoras na produtividade é o indicador mais significativo de uma perda de dinamismo do capital.
 
Entretanto, esses aumentos de produtividade são possíveis graças à introdução de consideráveis inovações tecnológicas. Na teoria das ondas longas, existe um vínculo orgânico entre a sucessão das ondas largas e as das revoluções científicas e técnicas, mas esta relação não pode se reduzir a uma visão inspirada na de Schumpeter, em que a inovação seria em si mesma a chave para a abertura de uma nova onda longa. Desse modo, as transformações vinculadas às novas tecnologias constituem, sem dúvidas, um novo “paradigma técnico-econômico”, mas isso não basta para fundar uma nova fase expansiva. Esse é precisamente o debate sobre a estagnação secular, que se baseia na observação de que as inovações significativas em todos os âmbitos não geram necessariamente aumentos na produtividade.

A automatização
Há quem pense que as novas tecnologias implicam um potencial de aumento da produtividade, o que também implicaria uma grande redução do emprego. Supondo que esse prognóstico esteja certo, é preciso interrogar sobre o modelo social associado a estas transformações. Sobre esse ponto, convém referir-nos a um texto chave de Mandel, escrito em 1986: “Marx, a crise atual e o futuro do trabalho humano”. Mandel apresenta um quadro muito pessimista - mas bastante premonitório - dos efeitos da automatização capitalista, evocando a perspectiva de uma “sociedade dual que dividiria o proletariado atual em dois grupos antagônicos: os que seguem participando do processo de produção da mais-valia, ou seja, do processo de produção capitalista (com tendência à redução dos salários); os que são excluídos deste processo, e que sobrevivem por todos os outros meios que não sejam a venda da sua força de trabalho aos capitalistas ou ao Estado burguês: assistência social, aumento das atividades ‘independentes’, campesinos dispersos ou artesãos, retorno ao trabalho doméstico, comunidades lúdicas’ etc. , e que compram mercadorias capitalistas sem produzi-las. Uma forma transitória de marginalização do processo produtivo ‘normal’ se encontra no trabalho precário, o trabalho de tempo parcial, o trabalho informal, formas que afetam particularmente às mulheres, aos jovens, aos imigrantes etc.”


Mandel e o coronavírus
Este anacronismo é deliberado: com ele pretendemos salientar que o interesse pelos trabalhos econômicos de Mandel não reside apenas nas análises que fornecem, mas também nas ferramentas metodológicas que por eles nos são dadas. Por isso, sua leitura (ou releitura) segue sendo útil passados um quarto de século da morte de Mandel. A teoria das ondas longas se baseia em grande medida na distinção entre fatores endógenos (que se referem ao funcionamento “normal” do sistema e a suas contradições internas) e fatores exógenos (que de certa forma são externos ao sistema). Mandel dedicou grande parte de suas reflexões a esta distinção, e nos referimos aqui ao texto de Francisco Louçã, “Ernest Mandel et la pulsation de l’histoire” (“Ernest Mandel e o pulsar da história”) (4). Mas esta discussão segue muito atual: devemos considerar a crise do coronavírus como uma crise exógena ou não? Em um recente artigo (5), Philippe Légé responde positivamente a esta pergunta.


Todos os impactos exógenos infligidos ao capitalismo não lhe permitem, no entanto, a possibilidade de alcançar uma nova fase de expansão. Obviamente, o capitalismo terá que reagir para que possa voltar aos negócios como de costume (“business as usual”). Seu objetivo, certamente, será o de restaurar a taxa de lucro, já que ela é seu único barômetro. Salários e gastos sociais congelados ou cortados, automatização acelerada, redução de pessoal: vemos claramente para onde se dirige a recuperação. Mas estas reações, que são, em certa medida, reflexos próprios do capitalismo, não atenuam, de modo algum, as contradições que já existiam antes da erupção da crise.


Precisamos, mais uma vez, recorrer à contribuição de Mandel: para que se produza uma onda expansiva, não basta recuperar a taxa de lucro ou o aparecimento de inovações tecnológicas; é preciso estabelecer uma ordem produtiva que assegure as condições para a reprodução do sistema. Porém, essas condições não são atendidas agora por uma razão que é essencial em nosso ponto de vista, a saber, o esgotamento das melhorias na produtividade. Sem poder recuperar aquela que é sua força motriz e a fonte de uma relativa legitimidade, o capitalismo está condenado a uma reprodução instável e fundamentalmente anti-social. Isto era certo antes do coronavírus, e é, portanto, mais certo depois.


Notas

(1) As referências aos textos de Mandel com (na maioria dos casos) os links respectivos, podem ser consultados na página seguinte: http://hussonet.free.fr/mandel.htm. Textos em francês, em inglês e em castelhano.
(2) Léon Trotsky, «A curva do desenvolvimento capitalista», 1923; https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2179206&forceview=1
(3) Robert Boyer, «La crise actuelle: une mise en perspective historique»
(4) Publicado em “El marxismo de Ernest Mandel” (Actuel Marx-PUF, París, febrero de 1999), com textos de vários autores, dirigido por Gilbert Achcar (Redacción Correspondencia de Prensa): https://www.puf.com/content/Le_marxisme_dErnest_Mandel
(5) Philippe Légé, «Une crise mixte aux conséquences décisives», junho de 2020.

Publicado originalmente em A l'encontre. Tradução de Lucas Claudino.